por Leonardo Boff
A amplitude da crise brasileira é de
tal gravidade que nos faltam categorias para elucidá-la. Tentando ir além das
clássicas abordagens da sociologia crítica ou da história, tenho-me valido da
capacidade elucidativa das categorias psicanalíticas da “sombra”e da “luz”
generalizadas como constantes antropológicas, pessoais e coletivas. Ensaiei uma
compreensão possível que nos vêm da teoria do caos, capítulo importante da nova
cosmologia, pois deste caos, em situação de altíssima complexidade e jogo de
relações, irrompeu a vida que conhecemos, inclusive a nossa. Esta mostrou-se
capaz de identificar aquela Energia Poderosa e Amorosa que tudo sustenta, o
Princípio Gerador de todos os Seres e abrir-se a Ele em veneração e respeito.
Perguto-me que outra categoria
estaria no repositório da sabedoria humana que nos poderia trazer alguma luz
nas trevas nas quais estamos todos mergulhados. Foi então que me lembrei de um
diálogo instigante entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku
Ikeda, eminente filósofo japonês (cf. Elige la vida, Emecé. B.Aires 2005) que
durou vários dias em Londres. Ambos creem na realidade do karma, seja pessoal,
seja coletivo. Prescindindo das várias interpretações dadas a ele, me parecia
ter encontrado aqui aqui uma categoria da mais alta ancestralidade, manejada
pelo budismo, hinduismo, jainismo e também pelo espiritismo para explicar
fenômenos pessoais e coletivos.
O karma é um termo sânscrito
originalmente significando força e movimento, concentrado na palavra “ação” que
provocava sua correspondente “re-ação”. Este aspecto coletivo pareceu-me
importante, por que, não conheço (posso estar equivocado) no ocidente nenhuma
categoria conceptual que dê conta de um sentido de devir histórico de toda uma
comunidade e de suas instituições nas suas dimensões positivas e negativas.
Talvez, devido ao arraigado individualismo, típico do Ocidente, não tenhamos
tido as condições de projetarmos um conceito suficientemente abrangente.
Cada pessoa é marcada pelas ações que
praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa mas conota todo o
ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em
constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os
“debitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista,
carrega esta conta por mais renascimentos possa ter, até zerar a conta
negativa.
Toynbee dá-lhe outra versão que me
parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco nossa história. A história é
feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada
com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na
história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e
justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria
uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
Não se requer a hipótese dos muitos
renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um
povo (p.384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens,
configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica
atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos. C.G.Jung em sua
psicologia arquetípica notara, de alguma forma, tal fato.
Apliquemos esta lei kármica à nossa
situação. Não sera difícil reconhecer que somos portadores de um pesadíssimo
karma, em grande escala, derivado do genocídio indígena, da super-exploração da
força do trabalho escravo, das injustiças perpretadas contra grande parte da
população, negra e mestiça, jogada na periferia, com famílias destruídas e
corroídas pela fome e pelas doenças. A via-sacra de sofrimento desses nossos
irmãos e irmãs tem mais estações do que aquela do Filho do Homem quando viveu e
padeceu entre nós. Excusado é citar outras maldades.
Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam
nisso:”a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga
kármica, através de uma revolução espiritual no coração e na mente(p.159), na linha
da justiça compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas. Sem
esta justiça minima a carga kármica não se desfará. Mas ela sozinha não é
suficiente. Faz-se mister o amor, a solidariedade a compaixão e uma profunda
humanidade pra com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no
fundo “é a última realidade”(p.387). Uma sociedade incapaz de efetivamente amar
e de ser menos malvada, jamais desconstruirá uma história tão marcada pelo
karma. Eis o desafio que a atual crise nos suscita.
Não apregoaram outra coisa os mestres
da humanidade, como Jesus, São Francisco, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e
o Papa Francisco? Só o karma do bem redime a realidade da força kármica do mal.
E se o Brasil não fizer essa reversão
kármica permanecerá de crise em crise, destruindo seu próprio futuro.
Leonardo Boff escreveu O
destino do homem e do mundo, 12. ed., Vozes 2012.
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