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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

DIA DA CRIAÇÃO

Por Marcelo Barros



Pela primeira vez na história, diversas Igrejas cristãs e até outras religiões se unirão nessa semana para orar e meditar sobre o cuidado com a Terra, a água, o ar e todo o universo no qual nós, seres humanos somos inseridos e ao qual pertencemos. Desde a década de 70, a cada ano, o patriarca de Constantinopla propõe que todas as Igrejas Orientais dediquem o 1o  de setembro como "dia de oração e cuidado com a Criação". Em agosto do ano passado, o papa Francisco enviou uma carta a todas as dioceses pedindo que a Igreja Católica também se una a essa celebração. Por sua vez, o Conselho Mundial de Igrejas convidou as Igrejas evangélicas, membros do Conselho para entrarem nessa mesma sintonia de cuidado com o ambiente. E, nesses dias, algumas notícias da internet contam que grupos hindus e budistas quiseram também unir-se a essa iniciativa ecumênica e ecológica.

Orar e meditar sobre a natureza como criação significa contemplar nela uma presença ativa do Criador que, permanentemente, continua conduzindo o universo no rumo do seu amor. O ser humano só mudará a sua forma de relacionar-se com os seus semelhantes e com os outros seres vivos se optar por um olhar de amor sobre o universo. Ao aprofundar a relação consigo mesmo e com os outros, é fundamental pressentir uma marca divina por trás de cada ser do universo.

Atualmente, o planeta Terra abriga mais de sete bilhões de pessoas. Nos próximos 50 anos, a previsão é de que o mundo tenha entre 8, 5 a 9 bilhões de habitantes. Mas, como viverá essa população, se metade dos recursos hídricos disponíveis para consumo humano e 47% da área terrestre já são utilizados? E ainda assim mais de um bilhão de pessoas passa fome e, a cada dia, mais de 30 mil morrem por este motivo?  Estudos afirmam que a relação entre crescimento populacional e o uso de recursos do Planeta já ultrapassou em 20% a capacidade de reposição da biosfera e esse déficit aumenta cerca de 2,5% cada ano. Isso quer dizer que a diversidade biológica – de onde vêm novos medicamentos, novos alimentos e materiais para substituir os que se esgotam – está sendo destruída muito mais rápido do que está sendo reposta. Esse desequilíbrio está crescendo. Até 2030, 70% da biodiversidade poderá ter desaparecido...”[1].

Apesar de tudo, uma profunda esperança brilha sobre a Terra. Ela vem do fato de que, no mundo inteiro, a cada dia, cresce o número de pessoas e grupos que aprofundam a espiritualidade e se põem em diálogo para buscar novos caminhos. O resgate da dignidade da Terra, da Água e do Ar está na ordem do dia de grupos espirituais das mais diversas tradições. As próprias Igrejas cristãs que, durante séculos, pareciam não ligar o ato criador de Deus com sua atuação salvadora na história, nas últimas décadas têm todas aprofundado essa questão. Em maio do ano passado, o papa Francisco dirigiu a toda humanidade uma carta sobre o cuidado com a casa comum. Nessa carta, ele se une a Bartolomeu, patriarca de Constantinopla, na insistência em unir o cuidado ambiental com a preocupação pela justiça social e econômica. Ao mesmo tempo, ensina que a raiz de tudo é um novo olhar espiritual sobre o universo como criação amorosa de Deus. 

 Na América Latina, um dos mais importantes sinais de esperança para a causa ecológica é o fortalecimento dos movimentos indígenas. Esses têm proposto como novo paradigma civilizatório o cuidado com o Bem-Viver que implica priorizar a vida comunitária, as relações humanas e a relação harmoniosa com a natureza como formas de organizar a sociedade. O cuidado com a Terra, a Água e todos os seres vivos se torna elemento central do processo social e político, assim como de uma nova sensibilidade espiritual. Todos nós somos convidados a participar ativamente dessa celebração de amor, como um casamento entre o céu e a terra.  


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

[1] - INSTITUTO SOCIO-AMBIENTAL, Almanaque Sócio-ambiental Brasil 2008, São Paulo, 2007, p. 33. 

AMOR PELA SABEDORIA

por  Maria Clara Lucchetti Bingemer




         Nunca soube que existisse o Dia do filósofo. Descobri recentemente, quando soube que no dia 16 de agosto festejam-se aqueles e aquelas que escolheram em suas vidas amar a Sabedoria. Sim, pois é isso que, no grego, significa a palavra filosofia: amor pela sabedoria.

       A origem da palavra está na Antiga Grécia, berço da civilização ocidental, onde, em meio à riquíssima mitologia que povoava o panteão de deuses e deusas, alguns começaram a perguntar-se: Quem sou eu? De onde vim e para onde vou? Qual a origem do mundo?

       Interpretada comumente como o marco do fim da era do mythos, com o apogeu do logos e da razão, a filosofia, na verdade, desde o início conjugou ambos.  Suas origens se encontram em uma interpretação des-sacralizada dos mitos cosmogônicos, difundidos pelas diversas religiões.  Para os que desejariam uma filosofia completamente “vacinada” contra o mito, aí está uma pedra de tropeço intransponível. 

         Segundo Aristóteles e Platão, a matéria inicial da reflexão dos filósofos foram os mitos.  Estes se tornaram campo comum da reflexão da religião e da filosofia, revelando que a pretensa separação entre esses dois modos de o ser humano interpretar a realidade não é tão nítida como aparentemente se julga.

       Nem só razão nem só mitologia, diz a amiga sabedoria que já desde o tempo de Tales de Mileto, 5000 anos antes de Cristo, nos ensina que o mundo está cheio de deuses.  E Platão viria a ser aquele que encontrou a raiz de seus mais belos pensamentos pela meditação dos mitos. Para a filosofia antiga, portanto, o mito  dá o que pensar, provoca a razão e a faz produzir sabedoria. A meditação e a interpretação dos mitos serão, então,  o que conduzirá o filósofo em sua busca da verdade.

         Pois disso se ocupa o filosofar: buscar a verdade.  Não poderia haver sabedoria se não houvesse verdade.  O bom e o belo são outros nomes da verdade.  Verdade que não se rende ao pensamento humano com a evidência laboratorialmente controlada do empirismo, mas  vai des-velando seus segredos com o exercício espiritual da busca atenta e amante da filosofia. A filosofia acaba por ser, assim, a porta de entrada para pensar o mistério. 

         Ao pensar os mitos, o filósofo toca na universalidade das intuições e das experiências ancestrais, referindo a sua pertença comum e originária ao gênero humano.  Por isso, os mitos são lugar privilegiado do enraizamento das pessoas e dos povos, conectando-os a seu passado. Tornam-se assim o fundamento da cultura humanista. Contemplando com atenção o mito, o filósofo vai se aproximando da raiz das recorrências humanas, o que lhe permitirá então tocar nas essências, elaborar definições, construir sínteses, montar harmoniosas arquiteturas de conhecimento.
         Em seus tempos iniciais, a filosofia se auto compreendia como responsável por tudo que era cognoscível e, portanto, passível de ser conhecido.  Sob sua égide repousava o conhecimento humano em todas as suas especialidades, e até hoje a ela devem sua origem enquanto campos do pensar e do saber: os valores  - a ética;   a beleza - a estética;  a busca da verdade – a lógica.

       O tempo passou, o mundo mudou e a filosofia também.  Fragmentou-se em muitas especialidades e muitos genitivos.  No entanto, ainda é um marco de oposição ao desenraizamento e à atomização da sociedade moderna, alienada justamente porque perdeu o contato com o passado, permanecendo degenerada na busca e fixação em ídolos.

       Enquanto houver filósofos apaixonados pela verdade e amigos da sabedoria, podemos ter esperança em que o que constitui o humano não se perdeu.  Por isso, é digno e justo saudar e louvar aqueles que hoje continuam cultivando essa amizade e esse amor, impedindo nossa desumanização. 

Na próxima terça-feira, 30 de agosto, a partir de 19hm será lançado, na Livraria Travessa de Ipanema, o livro Fé, justiça e paz – O testemunho de Dorothy Day(editoras Paulinas e PUC-/Rio), organizado por Maria Clara Bingemer e Paulo Fernando Carneiro de Andrade.

  Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A PROPÓSITO DA CONDENAÇÃO DE UMA GOVERNANTA INOCENTE: CORRUPÇÃO E CORRUPÇÕES


Por Leonardo Boff



A presidenta Dilma está sendo condenada mediante um tribunal de exceção por um Congresso Nacional no qual 60% dos membros enfrentam acusações criminais. O Senado que a julga não possui nenhuma moral pois mais da metade dele, 49 senadores, estão sob acusação por distintos crimes.  

Contra Dilma não se conseguiu provar nenhum crime. Por isso inventam-se outras razões como pelo “conjunto da obra”, coisa que contradiz a matéria do processo vindo da Câmara: alguns atos governamentais somente do ano 2015.

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo bem resumiu a tônica geral deste processo perverso:”Trata-se de uma reação conservadora, retrógrada que se exprime em tentativas autoritárias de impedir o avanço da sociedade. Somos uma sociedade profundamente antidemocrática, preconceituosa e mais que isso, culturalmente deformada. Estamos assistindo hoje uma degeneração do que já é degenerado. Aqui não prosperaram os ideais de democracia e o Estado de Direito. Tudo é feito com truculência, com arbitrariedade, mesmo aquilo que pretensamente é feito em nome da lei”(em Carta Maior 27/06/2016).

Uma outra crítica contundente nos vem do sociólogo, ex-presidente do IPEA, que escreveu um instigante livro: A tolice da inteligência brasileira (Leya 2015): “O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata. Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia”(Quem deu o golpe e contra quem, em FSP,04/2016).

O que estamos assistindo é a retomada deste segundo projeto, socialmente perverso e negador de nossa soberania. Basta observar a truculência do ministro das relações exteriores que de diplomata não possui nada. É um agente das privatizações e do alinhamento do Brasil à lógica do neoliberalismo dos países centrais, rompendo com nossos aliados vizinhos, do Mercosul e traindo os ideais de uma diplomacia “ativa e altiva”em diálogo com todos os povos e tendências ideológicas.

Há muitas formas de corrupção. Comecemos pela palavra corrupção. Santo Agostinho explica a etimologia: corrupção é ter um coração (cor)  rompido (ruptus) e pervertido. O filósofo Kant fazia a mesma constatação:“somos um lenho tão torto que dele não se podem tirar tábuas retas”. Em outras palavras: há a força do Negativo em nós que nos incita ao desvio. A corrupção é uma das mais fortes.

Antes de tudo, o capitalismo aqui e no mundo é corrupto em sua lógica, embora aceito socialmente. Ele simplesmente impõe a dominação do capital sobre o trabalho, criando riqueza com a exploração do trabalhador e com a devastação da natureza. Gera desigualdades sociais que, eticamente, são injustiças, o que origina permanentes conflitos  de classe. Por isso, o capitalismo é por natureza antidemocrático, pois  a democracia supõe uma igualdade básica dos cidadãos e direitos garantidos, aqui violados pela cultura capitalista.

Pensando no Brasil podemos dizer que a maior corrupção de nossa história é o fato de as oligarquias haverem mantido grande parte da população, durante quase 500 anos, na marginalidade e terem empreendido um processo de acumulação de riqueza dos mais altos do mundo, a ponto de 0,05% da população(71 mil pessoas) controlarem grande parte da renda nacional.

Temos exemplos escandalosos de corrupção, denunciados ultimamente pelo “Petrolão”, pelo Zelotes e pelo Panamá Papers. Mas não nos enganemos. Há coisa pior. O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, em seu “Sonegrômetro” denunciaram que em 2015 somente em cinco meses houve uma sonegação de 200 bilhões de reais (Antônio Lassance, em Carta Maior 02/05/2015). Isso é muito mais do que o “Petrolão” em apenas 5 meses. Atrás desse dados, se escondem os grandes corruptores e corruptos que procuram sempre se esconder.

Bem dizia Roberto Pompeu de Toledo em 1994 na Revista Veja: “Hoje sabemos que a corrupção faz parte de nosso sistema de poder tanto quanto o arroz e o feijão de nossas refeições”.

A condenação da Presidenta Dilma se inscreve nesta lógica da corrupção que tomou conta de grande parte da casta politica. O que se faz contra ela é uma injustiça sem tamanho perpetrada pelos senadores: condenar uma inocente e uma governante honesta.

A história não os perdoará. Carregam em suas biografias o estigma de golpistas, merecedores de uma soberana repulsa dos que buscam caminhos transparentes e éticos para o nosso país.
Leonardo Boff é professor emérito de Ética da UERJ e escritor.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

FRADES DOMINICANOS: 800 ANOS

Hoje, 25 de agosto, é o aniversário de Frei Betto. Parabéns, a esse grande guerreiro na luta pela dignidade de todos e todas.

Por Frei Betto


       Fundada em 1216, na França, pelo padre espanhol Domingos de Gusmão, a Ordem dos Pregadores, mais conhecida como dominicana, celebra este ano oito séculos de atividade apostólica.

       Desde a vida comunitária, os frades conjugam oração e pregação, vida intelectual e opção pelos pobres. Entre os primeiros dominicanos, vários procediam da Universidade de Bolonha (a mais antiga do mundo), e outros se encontram nos primórdios das universidades de Oxford, Inglaterra, e Sorbonne, Paris. Os dominicanos fundaram as duas primeiras universidades da América Latina: a de Santo Domingo, na República Dominicana (1538), e a São Marcos, no Peru (1551).

       Desde que chegaram ao Brasil, em fins do século XIX, os frades se dedicaram, primeiro, ao mundo indígena; em meados do século XX, ao mundo estudantil; e, hoje, aos movimentos sociais e à defesa dos direitos humanos.

       Entre os dominicanos mais conhecidos se destacam Alberto Magno, Mestre Eckhart, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória, Giordano Bruno, Savonarola, Campanella, Bartolomeu de Las Casas e Lebret. No Brasil, Pedro Secondi, Carlos Josaphat, Mateus Rocha, Tito de Alencar Lima, Hilton Japiassu e Tomás Balduíno.

       Santo Tomás releu a tradição filosófica e teológica pelos óculos do pagão Aristóteles e deu à Igreja uma consistente doutrina cristã. Las Casas, ao defender a dignidade dos índios, elaborou a primeira carta de direitos humanos da América Latina. Vitória lançou as bases do Direito Internacional. Lebret se empenhou em imprimir à economia um caráter humanista. Mateus Rocha fez da Ação Católica um movimento progressista, que nos deu Betinho e outros líderes políticos. Tomás Balduíno se tornou o bispo do povo indígena e fundou a Comissão Pastoral da Terra.

       Nem tudo são luzes. Dominicanos fomentaram cruzadas contra supostos hereges, e a figura sinistra de Torquemada comandou o tribunal da Inquisição.

       Três compromissos definem o nosso carisma: 1) lutar por justiça e por uma sociedade de partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano (pobreza); 2) fidelidade ao carisma de São Domingos (obediência); 3) gratuidade na entrega amorosa e solidária de nossas vidas a todos, e em especial aos que carecem de condições dignas de vida (castidade).

       Durante a ditadura militar, impelidos pela renovação da Igreja no Concílio Vaticano II, alguns frades se engajaram na luta por democracia e padeceram anos nos cárceres, enquanto outros abraçaram a “opção pelos pobres”, de modo a fazer das classes populares protagonistas na implantação do direito à justiça e das condições de paz.

     No Brasil, a Comissão Dominicana de Justiça e Paz tornou-se uma expressão “sacramental” das prioridades definidas pela Ordem, e do compromisso de frades, religiosas e leigos com os movimentos populares voltados à busca de “outros mundos possíveis”.

       A família dominicana no Brasil inclui, além de quase uma centena de frades, monjas dominicanas contemplativas, religiosas dedicadas à educação, leigos identificados com o nosso carisma, e o Movimento Juvenil Dominicano.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
        

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terça-feira, 23 de agosto de 2016

RESISTIR, ESPERAR, INVENTAR

Por Marcelo Barros


Esse foi o tema geral do 7o Fórum Mundial de Teologia e Libertação em Montreal, no Canadá. Durante quase uma semana, Montreal abrigou o 12o Fórum Social Mundial. Pela primeira vez, esse encontro dos movimentos sociais e da cidadania internacional se reuniu em um país rico do norte do mundo. Ligado ao fórum social, teólogos/as cristãos de várias Igrejas se reuniram em um Fórum Mundial de Teologia e Libertação para refletir sobre como viver a fé e testemunhar a esperança em meio a esse mundo tumultuado e cheio de desafios. Esse encontro de teólogos/as reuniu mais de 400 pessoas, de todas as províncias do Canadá e ainda irmãos e irmãs, vindos de 23 países do mundo.

Nunca como agora tem sido tão importante nos reunir e nos animar na resistência e na esperança. O mundo está mergulhado na maior crise ecológica de sua história. Essa crise, provocada pelo sistema social e econômico que a sociedade dominante impõe à maioria da humanidade tem consequências terríveis para o planeta e torna a sociedade cada vez mais desigual e injusta. Em 2015, um relatório da Oxfam, instituição ligada à ONU, confirma que menos de 20% da população se apropria de 94% de todas as riquezas do mundo. E mais da metade dessa riqueza está nas mãos de apenas 1% da humanidade.

Não podemos ser coniventes com esse modo de organizar o mundo e, ao mesmo tempo, nos sentimos frágeis para mudá-lo imediatamente. Por isso, a resistência se torna um imperativo para esses tempos difíceis. Essa palavra (resistência) foi o termo usado na França ocupada pelos alemães nazistas. A resistência era, então, a organização de grupos clandestinos nos quais as pessoas arriscavam a vida para esconder judeus e suas crianças da sanha assassina dos nazistas e também para empreender ações armadas para libertar o país. Agora, apesar de não termos um regime nazista, temos uma ditadura econômica. E não é mais apenas um país que é ocupado. Esse modo cruel e assassino de organizar a sociedade domina e maltrata continentes inteiros. E conta com o apoio dos grandes meios de comunicação para convencer a população que não há alternativas e a única forma de organizar o mundo é essa.

Quem tem consciência ética não pode ser conivente com essa situação. Atualmente, entrar na resistência significa revelar ao mundo as contradições e a face cruel do sistema que tenta apresentar-se como ético. Mesmo se somos obrigados a viver nesse mundo, de acordo com suas regras e valores, podemos nos esforçar por nos manter o mais possível livres e comprometidos em defender a liberdade de nossos irmãos e irmãs mais frágeis. Gandhi e Martin-Luther King propunham para a resistência dois princípios fundamentais da ação não violenta: a não cooperação com o sistema e a desobediência civil. Como não podemos fazer isso sozinhos e isolados, precisamos nos integrar nos grupos que buscam outro mundo possível e promovem ações comunitárias alternativas.

No latim, resistir (resistere) é um modo novo de existir (ex-sistere) no sentido de manter-se de pé diante das dificuldades.  No plano pessoal, isso exige de nós um estilo de vida simples, baseado na cooperação e não na competição. Supõe que fortaleçamos os laços de partilha e amizade. Ao mesmo tempo, precisamos nos abrir, cada vez mais, à arte e à beleza da natureza. Assim, manteremos nosso equilíbrio pessoal na relação justa entre silêncio e palavra, tempo e infinito. Uma canção chilena nos adverte:

"Deixa de pensar que tudo está perdido,
 Torna a descobrir que sempre há um motivo,
Deixa de pensar que não tem sentido,
Volta a imaginar que os rios sempre dão para o mar".


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 



segunda-feira, 22 de agosto de 2016

OLIMPÍADA: EXERCÍCIOS CORPORAIS E ESPIRITUAIS


   Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



Dizia o grande mestre espiritual Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, que os exercícios corporais e espirituais contêm em si uma profunda e positiva analogia.  Assim podemos ler o que escreve no primeiro parágrafo do livrinho dos Exercícios Espirituais, seguramente o mais importante manual de espiritualidade da história do cristianismo.

“ Primeira Anotação. Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de outras operações espirituais, conforme adiante se dirá. Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma, se chamam exercícios espirituais.”

Com esta concepção do ser humano como ser em movimento, ser dinâmico, que só cresce e se realiza no bojo do exercício que o faz movimentar e exercitar o corpo e o espírito, Santo Inácio nos presenteia com uma revolucionária e muito atual visão antropológica.  O ser humano não é um corpo de morte decaído e fadado à destruição com uma alma imortal.  Não.  O ser humano é um corpo animado pelo Espírito divino.  E esse conjunto harmonioso e transcendente criado por Deus deve exercitar-se sob pena de esclerosar-se e fracassar nas metas mais importantes de sua vida. 

Igualmente, em tempos de Olimpíada, quando os olhos do mundo inteiro se voltam para a Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro, vemos que o que esta secular competição nos traz não é apenas uma mensagem centrada no desempenho corporal, na eugenia e na estética dos corpos desvinculados de subjetividade e interioridade. 

Pelo contrário, ao contemplar a maravilha dos atletas que se prepararam durante meses e anos para enfrentar as provas, podemos ver igualmente atletas do espírito, que renunciaram a muitos prazeres e alegrias, legítimas ou não tanto, para poder dedicar-se inteiramente àquilo a que se propõem.  E alguns deles e delas integram o mesmo amor e dedicação exercitando o corpo e o espírito, estejam ou não vinculados a alguma religião ou igreja.

Assim é que a superginasta Simone Biles, que já se comenta que superará a até então insuperável e mítica Nadia Komaneci, treina desde pequena com uma disciplina inquebrantável, acompanhada da reza do terço e da frequência à missa.  Católica, Simone Biles confessa que a fé é uma das únicas constantes em sua vida atribulada, ao lado do esporte que é sua paixão.  Criada pelos avós, Simone os chama de pai e mãe, e vai com eles à missa.  Carrega consigo um terço branco que, esclarece, não é para rezar antes da prova, mas na vida de todo dia.

Também os atletas estadunidenses David Boudia e Steele Johnson ganharam medalha de prata na plataforma de dez metros da natação ornamental masculina.  Após a prova, rezaram juntamente com o treinador e a cena foi transmitida ao vivo pela mídia. E testemunharam que a fé os mantém conectados à Terra, independente do êxito olímpico.  E a fé de ambos é saber que sua identidade se encontra em Cristo.

O grande tenista Juan Martin del Potro, um homem de profunda fé, considera o encontro com o Papa Francisco um momento único que jamais esquecerá.  Porém sua fé, Del Potro a demonstrou mesmo na quadra, após a luta com o pulso quebrado, as cirurgias que teve de fazer e o cansaço até a exaustão para chegar a uma prata que equivale a ouro.  O abraço fraterno e emocionado no inglês campeão do tênis nestas Olimpíadas, Andy Murray, mostrava ao mundo que para além das Malvinas ou das Falklands, guerra que já dividiu os dois países, ocasionando a morte de mil jovens argentinos, a fraternidade e o espírito de respeito e amor ao outro é possível.

Mencionamos aqui três atletas cristãos.  Mas os há de várias religiões e mesmo sem religião, mas com profunda abertura para a transcendência e a espiritualidade.  Por isso mesmo, os jogos olímpicos no Rio de Janeiro contam com um centro inter-religioso, onde atletas e treinadores podem desfrutar de momentos para meditar, fazer preces e celebrações. O cardeal do Rio, Dom Orani Tempesta, declarou:  “É muito bom ver o Rio de Janeiro como um povo acolhedor, onde as religiões se entendem”. E o capelão judeu para os atletas olímpicos, o rabino Elia Haber, comentou:  “Esperamos conseguir prover este balanço entre o físico e o espiritual. É muito importante para o atleta trabalhar isso”.

Neste momento, atletas somos todos, concentrados que estamos nesta bela experiência de sediar os jogos olímpicos.  Já vemos que se trata de algo que abre para além de esforços físicos e treinamentos exaustivos, embora estes sejam parte constitutiva das provas.  Como nos relembra Santo Inácio, o verdadeiro jogo é a vida e nela há que exercitar constantemente corpo e espírito, integrados em harmoniosa síntese que visibiliza no mundo o sonho de Deus para a humanidade.  

   Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
  Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A AGROECOLOGIA COMO ANTÍDOTO À PRODUÇÃO TRANSGÊNICA


Por Leonardo Boff


O atual sistema politico e econômico parece obedecer à lógica das bactérias dentro de uma “placa de Petri”. Esta é um recipiente achatado de vidro com nutrientes para bactérias. Alguma espécies, quando pressentem que os nutrientes estão prestes a acabar, se multiplicam espantosamente para, em seguida, todas morrerem.

Algo parecido, a meu ver, está ocorrendo com o sistema do capital. Ele está se dando conta de que, devido aos limites intransponíveis dos recursos naturais e da ultrapassagem da pegada ecológica da Terra, pois precisamos já agora de um pouco mais de um planeta e meio (1,6) para atender as demandas humanas, ele  não terá mais condições de, no futuro, se autoreproduzir. E não há outra alternativa, como advertiu o Papa em sua encíclica Laudato Si senão ter que mudar de modo de produção e de consumo e ter que cuidar da Casa Comum, a Terra.

Qual a reação dos capitais produtivos e especulativos? À semelhança das bactérias da “placa de Petri” multiplicam exponencialmente as formas de lucro, acumulando cada vez mais e se concentrando de forma espantosa. Segundo dados publicados pelo economista L.Dowbor em seu site ((dowbor.org de 15/12/2015: A rede do poder corporativo mundial)), “apenas 737 principais atores (top-holders) detém 80% do controle sobre o valor de todas as empresas transnacionais.”

O poder econômico, politico e ideológico que se esconde atrás destes dados é espantoso. Adorador do ídolo-dinheiro, este sistema se torna, no dizer do Papa no avião de regresso da Polônia, como  “o verdadeiro terrorismo contra a humanidade”.

Será que o sistema, inconscientemente, não está pressentindo como as referidas bactérias, de que pode desaparecer, caso não mudar? E ousa mudar?

Não pensem os leitores/as que esta situação isenta a sétima economia do mundo, o Brasil. Pertence à “estupidez da inteligência brasileira” no dizer de Jessé Souza não inserir esse dado geopolítico nos debates sobre o impeachment e sobre a economia nacional, como por exemplo vem sendo feita há anos no programa Painel da Globonews. Aí domina soberanamente o neoliberalismo. A ecologia e os movimentos sociais não existem para esse programa.

O real problema é esse: com o PT, Lula e Dilma, o sistema mundial não consegue enquadrar o Brasil na lógica predadora do capital globalizado. O povo e os pobres, diz-se, ganham demais em prejuízo do mercado e das grandes corporações nacionais articuladas com as transnacionais. Por isso há que se dar um golpe, sob qualquer forma, na democracia para assim liberar o caminho para a acumulação dos endinheirados. As políticas do vice-presidente Temer visam um desmonte completo das políticas sociais do governo Lula-Dilma. O Ministério de Desenvolvimento Agrário foi extinto. A Secretaria da Economia Solidária virou um departamento, chefiado por um policial.
Mas onde há poder, surge também um contra-poder. Por todos os lados no mundo estão se reforçando as resistências ao capitalismo insustentável que não consegue mais dar certo sequer nos países centrais.

É neste contexto, como antidoto, que entra  a agroecologia, a produção orgânica e o surgimento de cooperativas agrícolas sem pesticidas e transgênicos.

Entre os dias 27 e 30 de julho de 2016 ocorreu em Lapa-Paraná a 15º Jornada de Agroecologia, reunindo mais de três mil participantes de diferentes regiões do Brasil  e de outros sete países. A tema central era a preservação das sementes crioulas, criando bancos e casas de sementes contra o assalto das grandes corporações, como a Monsanto e a Syngenta entre outras. Estas procuram tornar estéreis as nativas para obrigar os camponeses a comprar suas sementes geneticamente modificadas que não podem mais ser replantadas.

Sabemos que as sementes constituem um bem comum da humanidade e não podem ser apropriadas por grupos privados. O acesso às sementes estabelece um direito humano básico, ferido pelas poucas transnacionais que controlam praticamente todas as sementes. Para que a vida continue a reproduzir-se é fundamental defender a riqueza ecológica, patrimonial e cultural das sementes.

 Curiosamente,  Cuba ocupa, na agroecologia, o primeiro lugar no mundo e na criação de cooperativas em todos as esferas. É a forma pela qual o socialismo evita ser absorvido pelo capitalismo.

Era comovente assistir na “mística” final da Jornada, a troca de sementes e de mudas de plantas entre todos os presentes. Havia muitas crianças, jovens, indígenas, homens e mulheres que lutam pela vida sã para todos, contra um sistema anti-vida. Eles carregam a esperança de que o mundo pode ser sadio e melhor.

*Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu Sustentabilidade: o que é e o que não é, Vozes 2012.



quinta-feira, 18 de agosto de 2016

FIDEL, 90 ANOS


 Por Frei Betto



       Fidel é o primeiro revolucionário a atingir a idade de 90 anos. Conheci-o no primeiro aniversário da Revolução Sandinista, em Manágua, em 19 de julho de 1980. Lula e eu atravessamos a noite em conversa com ele, na casa de Sergio Ramirez, escritor e vice-presidente da Nicarágua.

       Na ocasião, perguntei-lhe: “Por que o partido e o Estado cubanos são confessionais?” “Como confessionais?” reagiu. E completou: “Somos ateus!” Objetei: “Comandante, professar ou negar a existência de Deus é confessionalidade. A modernidade exige partidos e Estados laicos.”

       Ele admitiu jamais ter encarado a questão por esse ângulo e descreveu as dificuldades de diálogo com os bispos católicos de seu país. Convidou-me, então, para ajudá-lo a se aproximar do episcopado.

       No ano seguinte, fiz a minha primeira viagem a Cuba, assumi o apelo com a anuência da conferência episcopal cubana e, desde então, mantemos contatos que já deram como resultados: a longa entrevista que me concedeu, em 1985, na qual faz autocrítica da relação da Revolução com a Igreja Católica, e opina positivamente sobre a religião; o estatuto do Partido Comunista e a Constituição do país reconhecem, desde a década de 1990, essas instituições como laicas; o excelente diálogo atual entre governo e episcopado católico; e o fato de Cuba ter merecido, desde 1998, quatro visitas papais.
       Em se tratando de Fidel, comemorar 90 anos é quase um milagre. Não lembro de outro chefe de Estado que tenha sofrido tantas tentativas de assassinato. Dizem os cubanos que somam centenas.

       Com todas as suas contradições e falhas, a Revolução vitoriosa em 1959 fez de Cuba uma nação de reconhecida qualidade de vida. Os índices de organismos internacionais, como ONU, Unesco, OMS e FAO, comprovam os significativos avanços na educação, na saúde e na segurança alimentar dos 11,2 milhões de habitantes da ilha.

        Admirado como líder revolucionário por uns, considerado ditador por outros, o fato é que Fidel conseguiu que Cuba resistisse ao efeito dominó causado pela derrubada do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética. E apesar do bloqueio imposto ao país pelos EUA desde 1962, criou as condições para evitar ali bolsões de miséria, tão comuns nos demais países do continente, e destacar Cuba no cenário internacional através do talento de seus cientistas, escritores, artistas e desportistas.

       Hoje, Fidel vive recolhido na casa em que sempre morou, em companhia de sua mulher Dalia Soto del Valle, mãe de cinco dos sete filhos que ele tem. Seu irmão Raúl é quem comanda o processo de reaproximação de Cuba com os EUA e as mudanças que visam a modernizar o país. Aceleram-se a desestatização, os empreendimentos privados, os investimentos estrangeiros e a melhoria das relações de Cuba com países do Primeiro Mundo.

       Fidel já não interfere nas ações de governo. Mantém-se muito bem informado sobre as conjunturas nacional e internacional; lê avidamente, desde análises políticas a biografias, de cosmologia a ficção científica; e eventualmente recebe personalidades que visitam Havana.

       Cuba superou o Japão e, agora, é o país com a maior proporção demográfica de pessoas com mais de 100 anos. Sartre, ao visitar a ilha em 1960, escreveu Furacão sobre Cuba. Referia-se à turbulência política provocada pela Guerra Fria e ao desafio de se implantar o socialismo em uma pequena ilha tão próxima das barbas de Tio Sam.
       Hoje, o crescente número de turistas constatam que os furacões continuam, mas já não passam de fenômenos climáticos. E Fidel se mostra satisfeito com a obra que lhe foi inspirada por José Martí.

Frei Betto é escritor, autor deFidel e a Religião (Fontanar), entre outros livros.
            
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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

QUANDO FOI QUE A IGREJA CATÓLICA CONDENOU FORMALMENTE A ESCRAVIDÃO?


Por Eduardo Hoornaert



A escravidão acompanhou a maior parte da história do cristianismo.  Nos primeiros séculos a própria Igreja foi, em amplos setores, escravocrata sem que isso, aparentemente, causasse estranhamento. Prova é a escassez de documentação a respeito. É por puro acaso que sabemos, por exemplo, (pela leitura da Carta a Filemon), que o apóstolo Paulo tinha um escravo a seu serviço. Esse dado passa despercebido. Mas quando lemos hoje, em livros de história, que naqueles tempos um escravo normalmente não vivia mais que 25 anos, de tanto labutar e sofrer, compreendemos que essa situação não tinha nada de inocente.

Na era dos colonialismos modernos, a partir do século XVI, o escravismo recrudesceu de forma virulenta e se tornou sistêmico, ou seja, era uma fator fundamental da vida econômica. Também a Igreja (com suas estruturas hierárquicas estabelecidas desde séculos) não tinha como se sustentar em países como o Brasil senão por meio de trabalho escravo, como bem assinalou o Padre Nóbrega no seu famoso dilema: ou viver num Brasil com escravos ou abandonar a missão do Brasil.  Não existia paróquia ou convento sem escravos. Aproximadamente quatro  milhões de africanos foram importados ao Brasil, ao longo de quatro séculos, sem que se alguma voz eclesiástica autorizada aparecesse a condenar a escravidão formalmente. Temos, decerto, o caso dos Padres Gonçalo Leite e Miguel Garcia bem no início da missão jesuítica na Bahia, que apresentei em meu livro ‘História da Igreja no Brasil (período colonial), Vozes, Petrópolis, 5ª edição, 2008, 308), mas isso é muito pouco. Quando, na segunda parte do século XIX, abolicionistas como Luís Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, fizeram suas campanhas contra a escravidão,  não encontraram apoio na Igreja. Tiveram de apelar para a Maçonaria, como escreveu Joaquim Nabuco. Ele mesmo  chegou a viajar a Roma, mas não foi recebido pelo papa Leão XIII. O resultado: o Brasil foi o último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão.

O tempo passou e a Igreja continuou calada, não disse nada acerca da escravidão. Temos de esperar até o Concílio Vaticano II (1962-1965) para ver aparecer o termo ‘escravidão’ em um texto tão genêrico e tão abstrato que precisa prestar muita atenção para perceber que se trata aqui da condenação de algo que sustentou os trabalhos missionários durante séculos. No parágrafo 27 da Constituição ‘Gaudium et Spes’ se lê:

São infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja, toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis.

É no meio de um monte de condenações genéricas que aparece (ou melhor, fica escondido) o termo ‘escravidão’. Trata-se da única passagem em que o termo aparece num sentido econômico, social e político, pois, nas demais passagens de documentos do Vaticano II, o termo ‘escravidão’ tem um sentido metafórico. A frase, em que o termo aparece, segue o modelo dedutivo, tradicional em textos eclesiásticos: a partir de um texto bíblico, de uma afirmação dogmática ou de um princípio filosófico se entabula uma reflexão. A formulação contrasta com o modelo de leitura que o Papa João XXIII quis imprimir aos textos do Concílio, quando falou em ‘sinais dos tempos’. Ele recomendou o método indutivo: em primeiro lugar, analisar a realidade vivida e só depois, num segundo momento, investigar a Palavra de Deus acerca dela e finalmente agir (ver, julgar, agir).

Acontece que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes é um texto híbrido. Em alguns parágrafos, segue o modelo dedutivo, em outros o indutivo. Na Introdução e nos parágrafos 4 a 10, por exemplo, o modelo indutivo prevalece, mas é logo abandonado na Primeira Parte do documento, entre os parágrafos 12 e 63. Na segunda Parte da Constituição (‘Alguns Problemas mais urgentes’), no parágrafo 46, a leitura indutiva é retomada e se estudam cinco setores da vida (família, cultura, economia, política, comunidade internacional) a partir de uma descrição da realidade vivida. É nesse bloco, que que a problemática da escravidão e de suas consequências merecia ser abordada, o que infelizmente não aconteceu. A menção à escravidão ficou no parágrafo 27, numa citação tão escondida em meio à longa lista de ‘coisas infames’ (homicídio, suicídio, aborto, eutanásia, prisões arbitrárias, deportações, prostituição, etc.) que o leitor menos avisado passa por cima dela, sem perceber seu alcance.

A questão de fundo é a seguinte: como a Igreja se afastou tanto e por tanto tempo de um dos princípios fundantes do movimento de Jesus, que é a misericórdia e a ação a favor do ser humano que chega ao último degrau da despersonalização, sendo tratado como ‘peça’ a ser vendida, comprada, explorada e utilizada até a exaustão? Como ela não revela de vez essa história com toda clareza, num documento como Gaudium et Spes? É estarrecedor ter de constatar que a alusão passageira à escravidão, no parágrafo 27 de Gaudium et Spes, constitui a primeira condenação eclesiástica da escravidão, autorizada pela mais alta instância, em toda a história da Igreja Católica. Numa referência meio escondida, redigida depois que o instituto formal da escravidão foi abolida na maioria dos países civilizados.

Será que o Concílio, para corresponder aos problemas que a humanidade enfrenta, teria de se expressar de forma mais clara sobre esse ponto? Penso que sim, pois há de se considerar que, de diversos modos, a escravidão persiste, embora de forma camuflada.Só destaco aqui a situação em que muitas mulheres brasileiras vivem atualmente.  O universo dos empregados domésticos no Brasil conta hoje com aproximadamente 600.000 pessoas, das quais 96 % são mulheres. 20 % das mulheres negras do país são empregadas domésticas. Entre a atual situação das babás e a das amas-de-leite do final do século XIX, no Rio de Janeiro, quando 92 % delas eram proibidas de alimentar seus próprios filhos, pois a ‘indústria’ das amas-de-leite estava no auge, há mais continuidade que ruptura. A babá de hoje, como a ama-de-leite do passado, cuida dos filhos dos outros e frequentemente não tem como cuidar convenientemente de seus próprios filhos. Esse é apenas um aspecto de uma realidade que continua viva em nossos dias. É urgente voltar à leitura bíblica em torno da escravidão e perceber como ela foi distorcida ao longo dos tempos. Nesse sentido, você pode consultar um trabalho meu já antigo, dos anos 1980: ‘A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-Colônia: um Inventário’ (Estudos bíblicos 17, Vozes, 1988, 11-30).

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/