O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

ÁGUA E ENERGIA, DIREITOS DA CIDADANIA


Por Frei Betto

       De 1 a 5 de outubro deste ano, o Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB) realiza, no Rio, seu 8º. encontro nacional. O tema, “Água e energia com soberania, distribuição de riqueza e controle popular”.

       Do encontro participarão também a Plataforma Operária e Camponesa de Energia, Via Campesina, Frente Brasil Popular, Movimentos de Afetados por Represas (MAR) e entidades internacionais. O objetivo é formular as bases de um projeto energético popular.

       Países ricos, como EUA, China, Alemanha e Inglaterra, altamente dependentes de energia, possuem reservas insuficientes, o que os motiva a tentar controlar as reservas estratégicas de países periféricos. O Brasil é alvo prioritário por deter potencial energético de grande qualidade e quantidade, como o pré-sal e a hidroeletricidade.

       Há décadas, governo a governo, nosso país abre mão de sua soberania energética. Hoje, a indústria de produção e distribuição de energia se encontra em mãos do capital privado. Hidrelétricas, linhas de transmissão e distribuidoras pertencem ao capital transnacional, sendo a Petrobras uma exceção.

       Embora a maior parte da energia do Brasil seja fornecida por hidrelétricas, consideradas de baixo custo de produção, o brasileiro paga uma das contas de luz mais caras do mundo. Há, porém, grandes empresas consumidoras que têm tratamento especial. A Samarco, por exemplo, responsável pelo crime socioambiental de Mariana (e ainda impune), recebe energia a preço de custo, o que equivale a dez vezes menos do que paga uma família pelo consumo da mesma quantidade de quilowatts. E tudo isso é controlado pelo Estado, a serviço do grande capital, através da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), sem nenhuma participação popular.

       O apetite das empresas transnacionais por nosso potencial energético impõe ao governo afrouxar o licenciamento ambiental, permitir a construção de hidrelétricas em áreas indígenas e forçar o deslocamento predatório das populações ribeirinhas.

       A soberania energética do Brasil vem sendo substituída pelo conceito de “segurança energética”, ainda que se paguem valores exorbitantes às empresas controladoras. Os trabalhadores do setor são terceirizados e precarizados pela reforma trabalhista do governo Temer, e seus movimentos sofrem criminalização, enquanto a população arca com o aumento das tarifas, do gás de cozinha e dos combustíveis de veículos.

       O encontro nacional do MAB visa a reforçar a luta pela soberania energética do Brasil; pelo controle popular sobre o planejamento e execução do setor; e pela adequada destinação da riqueza por ele gerada, de modo a garantir os direitos dos atingidos por barragens e melhor qualidade de vida aos trabalhadores.

       Água e energia são bens essenciais à vida humana e planetária, e não podem ser consideradas meras mercadorias. Portanto, deveriam estar excluídos do direito de apropriação privada.

       Há que pressionar o governo para que os recursos do pré-sal sejam aplicados em saúde e educação, geração de empregos e garantia de direitos da cidadania.

Frei Betto é escritor, autor de “Ofício de escrever” (Anfiteatro), entre outros livros.

Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgareste artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
  
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


quarta-feira, 30 de agosto de 2017

ROMPENDO O CASULO (por ocasião do falecimento de Dom José Maria Pires).


Por Eduardo Hoornaert


1. Quando o jovem bispo de Araçuaí viajou a Roma em 1959 para se encontrar com o papa João XXIII, atrapalhou-se com o ferraiolo (roupão cerimonial de um bispo) e o papa gentilmente ajeitou-lhe o apetrecho. Isso deve ter impressionado Dom José, pois 46 anos mais tarde, em 2005, ele contou esse episódio numa conferência em Recife[1]. Criado em um rígido casulo clerical, ele deve ter estranhado a ‘quebra do protocolo’ do papa. O seminário em que se formara era dirigido por padres lazaristas, convidados pelo bispo de Diamantina, Dom João Antônio dos Santos, no final do século XIX. Com esse convite, o bispo demonstrara sua adesão a um movimento proveniente de Mariana, onde o lazarista Dom Viçoso tinha aplicado com vigor, ao longo de 34 anos (entre 1844 e 1876), um modelo de formação sacerdotal diferente da tradição anterior e que cultivava o ‘amor à batina’, a disciplina e principalmente a seriedade nos estudos. Era a primeira romanização da igreja católica no Brasil. Os lazaristas difundiram um estilo de ‘ser padre’ que se destacava por meio de pequenos, mas significativos detalhes, como o cuidado com a boa pronúncia e articulação das palavras, a clareza na exposição do pensamento, a escrita aprimorada, a pontualidade nos horários, o rigor no comportamento e o hábito da leitura, como pude pessoalmente observar em Dom Helder, um dos mais destacados ex-alunos dos lazaristas (que soube ‘abrasileirar’ esse estilo, de cunho marcadamente francês). Quanto a Dom José, sempre me chamou atenção sua cuidadosa articulação das palavras e a clareza com que expõe seu pensamento, qualidades que dele fizeram um apreciado orador. Por esses e outros detalhes se verifica como foi grande a influência dos lazaristas na formação do clero brasileiro entre 1850 e 1960. O historiador americano Serbin escreve que ‘de meados do século XIX a meados do século XX, os lazaristas prepararam mais de mil padres seculares brasileiros. Até o ano 2000 tinham formado 158 bispos do Brasil moderno’[2].

Foi paradoxalmente por meio da ingerência de Roma na sua vida que Dom José recebeu o primeiro impulso para se libertar das idéias romanas recebidas no seminário. Com apenas 38 anos (em 1957), foi apontado como candidato a bispo por Armando Lombardi, núncio apostólico no Brasil entre 1954 e 1964. Naqueles tempos, o núncio tinha ampla liberdade para indicar bispos, pois a cúria romana não conhecia bem a América latina e não costumava interferir em nomeações episcopais. Monsenhor Armando Lombardi soube aproveitar dessa oportunidade e, num lapso relativamente curto de dez anos, indicou nada menos de 109 bispos, na maioria pessoas de espírito aberto e progressista, que geralmente não simpatizavam com o ideal de uma igreja romanizada. Aliás, ainda falta ser colocada em plena luz a influência de Lombardi sobre os rumos da igreja católica no Brasil entre 1950 e 1990, aépoca dos ‘grandes bispos’.

Um segundo impulso romano veio, é claro, do concílio Vaticano II. Três anos depois de ordenado bispo, com a idade de 42 anos, Dom José participou das quatro sessões do concílio, mais para aprender que para falar. Beozzo, que estudou a fundo o concílio, apenas menciona uma fala dele (em latim) no plenário[3] e nas circulares conciliares de Dom Helder seu nome só é mencionado de passagem, a respeito de um assunto que pouco tem a ver com o concílio[4]. O nome de Dom José não aparece tampouco entre os participantes do ‘grupo da pobreza’ que desembocou, no final do concílio, no famoso ‘pacto das catacumbas’[5]. Numa conferência pronunciada por ele em 2005 encontrei uma análise de sua parte que caracteriza bem seu modo de entender o concílio Vaticano II[6]. É uma análise de determinados temas intra-eclesiásticos tratados pelo concílio, referentes à liturgia atualizada, à missa em língua vernácula, ao abandono das pompas clericais. O espírito prático de Dom José enxerga em primeiro lugar as reformas internas. O tom dessa sua análise não é tão resolutamente mundano (no sentido de voltado para os problemas do mundo) como os posicionamentos de Dom Helder.



2. Uma nova página na vida de Dom José começa no domingo de páscoa de 1966, quando ele é acolhido em João Pessoa na qualidade de arcebispo da Paraíba. Armou-se um alto palanque na praça Dom Adauto, em frente ao palácio episcopal e aí estão as autoridades civis, militares e religiosas. Dom Helder veio de Recife e pronuncia um discurso tipicamente mundano: aborda temas como reforma agrária, ‘colonialismo interno’ e modelo de desenvolvimento (grande trunfo dos militares da época). Dom José, ao contrário, é simples e direto: ‘Tenho 47 anos de idade. Sou filho de uma doméstica e de um carpinteiro’[7]. É como se estivéssemos ouvindo o eco de sua apresentação ao papa João XXIII em 1959. Dom Helder sai satisfeito de João Pessoa e escreve: ‘Está formado o eixo Recife-João Pessoa. Estamos perfeitamente sintonizados (eu e Dom José)’[8].

Como arcebispo, Dom José sucede a Dom Mário de Villas Boas (arcebispo 1959-1965), um eclesiástico tradicional em sintonia com um clero igualmente tradicionalista em sua maioria. Sabendo disso, o novo arcebispo faz seus primeiros passos com circunspeção. Pois ele tem plena consciência de que ele mesmo necessita de tempo para assimilar as orientações do Vaticano II, principalmente do pacto das catacumbas. Ele sabe que doravante é representante oficial de um sistema sólido, construído por séculos e que não se abala facilmente e que, portanto, ele não pode brincar em serviço. Pressentindo oposição por parte de uma parcela do clero, dos poderosos usineiros da várzea paraibana e da própria instituição católica, Dom José avança devagar, ‘mineiramente’. O ex-ministro Bresser Pereira, que conheceu na época seu trabalho na Paraíba, o chama de ‘herói prudente’.

O primeiro ponto consiste em concretizar, em sua maneira de viver, o compromisso básico do ‘pacto das catacumbas’ que reza: ‘viver segundo o modo ordinário de nosso povo no que concerne a casa, a habitação, os alimentos, os meios de locomoção e o que daí decorre (Mt 5, 3; 6, 33-34; 7, 20)’[9]. Ele abandona o palácio episcopal e se muda para a ‘casa dos padres’ (perto da igreja São Francisco), dispensa motorista e doravante dirige pessoalmente seu fusquinha, veste roupa simples (sempre com colar romano e paletó), mantém uma vida despojada e alimentação frugal. Com o tempo ele assume explicitamente compromissos sociais e para tanto aprende com Dom Helder e outros colegas como exercer a não-violência ativa (também chamada ‘pressão moral libertadora’), ou seja, como enfrentar os grandes problemas sociais da Paraíba sem recorrer a métodos de força, quaisquer que sejam. Ao mesmo tempo, suas declarações se tornam sempre mais impregnadas de uma mundanidade característica da teologia da libertação. Assim me lembro que ele disse certa vez (não recordo as circunstâncias) que o pecado social é mais grave que o pecado sexual. Essa frase me impressionou e não me lembro de ter ouvido da boca de Dom Helder uma afirmação que defina de forma tão lapidar a passagem entre a moral católica tradicional e a moral da libertação. É por essa e outras manifestações que não se pode considerar Dom José um seguidor de Dom Helder. Ambos têm seu modo próprio de se posicionar e de se explicar, mas são ao mesmo tempo colegas de compromisso e pensamento. Ambos andam pela mesma estrada, o que todos sempre perceberam, pois Dom José é sempre lembrado quando se trata de falar em público para reanimar a memória de Dom Helder. Assim ele foi orador oficial nas comemorações dos 50 e dos 65 anos de sacerdócio do arcebispo de Recife (16/8/1981 e 15/8/1996).



3. A partir de 1971 vai diminuindo aos poucos a projeção de Dom Helder no Brasil[10] e vem surgindo uma nova geração de bispos a sustentar o compromisso dos pioneiros do Vaticano II, de Medellín e principalmente do pacto das catacumbas. Surgem lideranças como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Tomás Balduino, Dom Pedro Casaldáliga e outros. Entre elas está Dom José Maria Pires, que toma iniciativas sempre mais ousadas, como a criação do primeiro centro de defesa dos direitos humanos do Brasil em João Pessoa, uma iniciativa que projeta o arcebispo da Paraíba a um nível latino-americano. Ele se torna responsável pelo setor social do Conselho episcopal latino-americano (CELAM). Em 1981, ele publica pela editora Vozes um livro com título significativo: ‘Do centro para a margem’. Um título que demonstra como Dom José sempre mais rompe o casulo eclesiástico e vê na sua função hierárquica um trampolim que possibilita o mergulho em questões relativas à vida na sociedade como um todo. No dizer de José Comblin, é esse tipo de bispo que o terceiro milênio vem solicitar: ‘Doravante, o lugar do bispo é o mundo. Ele encarna a presença da igreja no meio do mundo. É homem de relações públicas, é a visibilidade da igreja’[11]. Um sinal disso é a ‘missa dos quilombos’ (1981) que ele celebra em Recife com Dom Pedro Casaldáliga na frente da igreja do Carmo, onde a cabeça de Zumbi fora exposta séculos atrás. É, como todos observam na época, uma missa de dimensões antes societárias que eclesiásticas. Os sons dos tambores sinalizam um compromisso societário com o segmento negro da população. E a partir desse momento Dom Pedro Casaldáliga chama o bispo da Paraíba de ‘Dom Zumbi’, uma palavra bem mais carregada de simbolismo que o ‘Dom Pelé’ que lhe foi atribuído por Dom Helder em 1966 por ocasião da posse em João Pessoa. A partir de 1981, Dom José não é mais ‘moreno’, ele é ‘negro’, ou seja, assume a carga simbólica que o termo negro tem dentro da sociedade brasileira. Nos anos seguidos, ele celebra repetidamente missas negras, nas quais troca a mitra romana pela toca africana. Nos últimos anos de seu episcopado, ele alarga o leque de movimentos societários que resolve apoiar: indígenas, mulheres, presos, padres casados, mas principalmente negros.



4. Em 1995, Dom José volta à vida comum. Com o término das obrigações hierárquicas ele abandona definitivamente o casulo eclesiástico e abraça com entusiasmo a vida eclesial comum. Eu diria: a vida leiga. É verdade que em 2005 ele ainda declara em Recife, com uma pitada de humor: ‘Sou pároco de duas paróquias distantes’[12], mas ele quer dizer com isso que vai regularmente visitar seu ‘povo de Deus’ e celebrar missa para ele. Quem hoje visita Dom José em Belo Horizonte pode testemunhar que o termo ‘igreja, povo de Deus’ (núcleo da mensagem do concílio Vaticano II) não é uma palavra vazia para ele. Para todos e todas ele serve o vinho de sua simplicidade, cordialidade, simpatia e facilidade na comunicação. Entretempo, não deixa de cutucar de vez em quando a igreja eclesiástica com palavras incisivas: ‘A igreja será fiel ao evangelho quando for além da opção pelos pobres’ (palavras colhidas de sua boca no final do ano 2010)[13]. Dom José quer dizer que não basta falar em ‘opção pelos pobres’, é preciso agir. Aliás, numa conferência de 1998 ele já tinha mencionado alguns pontos dessa agenda: a libertação das mulheres do domínio machista, a coibição do poder da cúria romana, a formação dos leigos, a abertura diante dos padres casados[14]. Livre do casulo eclesiástico, Dom José ficou sendo um cidadão do mundo com rara capacidade de atuação. Faleceu em Belo Horizonte em 27 de agosto de 2017.



[1] A conferência fazia parte da oitava jornada teológica de Recife, organizada pelo movimento ‘igreja nova’. O título era: ’40 anos do concílio Vaticano II: ontem e hoje. Testemunho de um padre conciliar’. Veja Igreja Nova VIII, Oitava jornada teológica do Recife, 22-26/08/2005, Escola Don Bosco de Artes e Ofícios, Recife, s/d., pp. 17-33.
[2] Serbin, K. P., Padres, celibato e conflito social: uma história da igreja católica no Brasil, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, 108.
[3] Beozzo, J.O., A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965), São Paulo, Paulinas, 2005, 255. O livro contém informações sobre Dom José nas páginas 23, 86, 106, 255, 356 e 474.
[4] Trata-se de uma eleição para o secretariado do ministério sacerdotal na CNBB, realizado em Roma, na qual ele apareceu como o candidato da esquerda e foi derrotado. Veja Câmara, H., Circulares conciliares I, III, 229. Beozzo 2005 menciona o mesmo fato na p. 356.
[5] Você pode encontrar informações sobre o ‘grupo da pobreza’ e o ‘pacto das catacumbas’ em: Câmara, H., Circulares conciliares, Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), Recife, 2009, Tomo III, 20-21, 35-36, 64, 80, 90, 265, 301-302, 304-305. O pacto das catacumbas em 301-302 e 304-305.
[6] A referência a essa conferência encontra-se na nota 1.
[7] Piletti, N. & Praxedes, W., Dom Hélder Câmara, Entre o poder e a profecia, Editora Ática, São Paulo, 1997, 330. O livro menciona Dom José Maria nas páginas 323, 330, 374-75, 437-9, 448.
[8] Piletti, 331.
[9] Circulares conciliares I, III, 301-302 (veja também 304-305).
[10] Veja Comblin, J., Dom Helder e o novo modelo episcopal do Vaticano II, em: Vários, Dom Helder, pastor e profeta, Edições paulinas, São Paulo, 1983, 38.
[11] Comblin, J., Dom Helder, bispo do terceiro milênio, em: Rocha, Z. (org.), Helder, o Dom. Uma vida que marcou os rumos da igreja no Brasil, Vozes, Petrópolis, 1999, 91.
[12] Veja nota 1 (VIII jornada teológica), p. 32.
[13] Agradeço ao padre Mauro Passos a transmissão dessas palavras ditas por telefone.
[14] Veja a conferência ‘A igreja na América Latina a partir de Medellín’ em: Igreja Nova I, Primeira Jornada teológica do Recife, 03-07/08/1998, Editora Universitária UFPE, Recife, s/d, 31-44. Veja também: ‘Esta jornada teológica quebra um tabu e marca um tento significativo na caminhada do povo de Deus que vive em Recife’ (p. 44) e ‘Vocês são o futuro’ (ibidem).

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/


terça-feira, 29 de agosto de 2017

O GRITO QUE SE FAZ ORAÇÃO


Por Marcelo Barros

Em carta enviada a todos os bispos do Brasil, a presidência da CNBB convida os bispos a mobilizarem as suas dioceses em um "dia de oração e jejum pelo Brasil". E dizem claramente: "o dia sugerido é o 7 de setembro próximo". A carta é assinada pelo presidente, vice-presidente e secretário-geral da CNBB e se conclui com um modelo de oração já publicada por ocasião da recente festa do Corpo e Sangue de Cristo.

Todas as pessoas que buscam viver a espiritualidade compreendem que os pastores de uma Igreja cristã estimulem o povo de Deus à oração e, sem dúvida, todos estão de acordo que o Brasil atual precisa de oração. No entanto, é bom esclarecer: Oração é um termo genéricoRezar é orar, mas o termo oração engloba um sentido bem mais amplo. Na Bíblia, o termo mais próximo do que chamamos de "oração" é tefillah que significa mais profundamente "serviço do coração".

No primeiro testamento e na espiritualidade judaica, a oração mais consagrada, que as pessoas costumam fazer diariamente, é o Shema Israel. Trata-se de uma oração inspirada no Deuteronômio (Dt 6, 4). Começa por "Escuta, Israel", o que é mais um chamado ao povo e não tanto uma palavra dirigida a Deus. Na Bíblia, o povo de Deus fez uma coleção de suas orações e juntou em um só Livro dos Salmos (Salmo quer dizer Louvor). Dos 150 salmos, a maioria junta, em uma só conversa, 1. a pessoa que ora, 2. a comunidade crente e 3. o povo.

Muitos salmos alternam na mesma oração versos dirigidos a Deus e palavras à comunidade, assim como também denúncias e acusações aos opressores. Treze salmos não são diretamente para Deus. São gritos dos oprimidos contra seus opressores (Vejam, por exemplo, o salmo 2, o salmo 13, o 52, o 73 e assim por diante).

Essa é a espiritualidade que os profetas bíblicos ensinam: nunca separar a oração do grito dos oprimidos. Quando os sacerdotes reduzem tudo ao culto, Deus fala pela boca dos profetas: "Eu rejeito as liturgias e festas de vocês. Tenho horror à fumaça dos incensos" (Is 1, 10 ss). "Eu detesto as festas que vocês fazem. As celebrações não me agradam se o direito e a justiça não escorrerem como água e se tornarem uma corrente poderosa" (Am 5, 21. 24).

Na volta do exílio da Babilônia, um discípulo do profeta Isaías resume isso em uma oração que diz: "Por causa de Sião, não me calarei. Por causa de Jerusalém (do povo), não ficarei quieto, até que a justiça surja como a aurora e a salvação brilhe como uma lâmpada. (...). Sobre tuas muralhas, Jerusalém, coloquei guardiães. Sentinelas para vigiá-las. Dia e noite, eles não se calarão. Vocês que estão lembrando as promessas do Senhor (vocês que rezam), não descansem e não deixem Deus descansar até que ele restaure o seu povo"(Is 62, 1. 6- 7).

Na realidade brasileira, parece que esses profetas de Deus que não se calam até que a justiça seja restaurada são os movimentos e pastorais sociais que vão às ruas no Grito dos Excluídos. É isso que aprendemos no evangelho de Jesus. Ele disse: "Não é a pessoa que diz: Senhor, Senhor, que entra no reino dos céus, mas quem faz a vontade do Pai" (Mt 7, 21). Não podemos resumir aqui tantas palavras de Jesus contra o modo de orar e a espiritualidade religiosa dos escribas e fariseus que desligavam a oração da justiça (Mt 6, 5. 7-8; Mc 12, 38- 40).

Diversas vezes, os evangelhos nos mostram Jesus em oração e em silêncio, durante as noites, como em vigília preparatória para descer da montanha e se inserir na missão de testemunhar o reino de Deus como prática de saúde, de integração social e de libertação para os oprimidos. 

A nossa oração não pode ser a um Deus tapa-buraco, cuja função seria preencher os problemas que não podemos ou não sabemos resolver. Deus não anda esquecido do Brasil e nem precisa que o lembremos de suas obrigações. Certamente, somos nós que não estamos cumprindo bem as nossas responsabilidades, como pessoas de justiça e solidariedade. Não seria sincero manifestar atitudes ambíguas em relação aos poderosos de plantão e depois pedir a Deus que venha corrigir os erros e maldades que os mesmos poderosos executam.

Não podemos propor oração, jejum e silêncio no dia 07 de setembro, sem deixar claro que é para preparar o Grito dos Excluídos. Caso contrário, seria desmoralizar a oração, voltando a fazer como os antigos sacerdotes e escribas do templo um tipo de oração que Jesus criticou. Propor oração sem compromisso social claro e como inserção no meio dos pobres e dos seus gritos por justiça é usar o nome de Deus como a tal bancada que se diz evangélica está fazendo no Congresso. Nesse 07 de setembro, nossa oração deve tomar a forma do 23º Grito dos/as Excluídos/as que tem como tema “Vida em primeiro lugar!” e como lema “Por direitos e democracia, a luta é todo dia”.

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países 




segunda-feira, 28 de agosto de 2017

BARCELONA: O TERROR E A SOLIDARIEDADE


   Maria Clara Lucchetti Bingemer 

            O terror sabia que ali encontraria muita gente.  De inúmeras raças, nacionalidades, proveniências. Gente despreocupada, que vinha de longe para experimentar algo de liberdade, lazer e diversão.  Desejavam justamente, em boa parte, experimentar aquele espírito cosmopolita que a cidade de Barcelona oferece hoje talvez mais do que nenhuma outra.  E de forma diferente de outras capitais como Nova York por exemplo.

            Na Península Ibérica, em plena Europa Mediterrânea, a capital da Catalunha tem um raro perfil: combina história, antiguidade e tradição com arte, modernidade, arrojo. Podem ser encontrados em Barcelona tesouros de épocas passadas, como a belíssima igreja de Santa Maria del Mar e também monumentos de artistas dos séculos XIX e XX, como a Sagrada Família de Antoni Gaudi. E igualmente a Vila Olímpica com suas linhas modernas e arrojadas construída na ocasião das Olimpíadas de 1992. 

            No coração da Catalunha, a cidade de Barcelona, representa a prosperidade espanhola. Desde sempre comerciantes, industriosos e laboriosos, os catalães são responsáveis por uma fatia importante da riqueza espanhola que tem conseguido atravessar a crise europeia.   Além disso, a cidade é Meca do futebol, com o time do Barsa, onde até há pouco jogava o craque Neymar, mas onde ainda se encontra o craque argentino Messi.  O futebol catalão atrai a sensibilidade esportiva do mundo inteiro. 

            No meio da leveza e do bem-estar, tudo aconteceu.  Foi na Rambla, via de pedestres situada no coração da cidade, onde sempre se aglomera grande quantidade de gente, em boa parte turistas que por ali caminham.  São famílias, jovens, adultos, uma enorme diversidade, prototípica da época em que vivemos - de globalização e relativização de fronteiras e geografia.

            A caminhonete terrorista entrou pelo meio da multidão, em ziguezague, procurando atingir o máximo possível de pessoas.  Arrastou em sua trajetória letal desde crianças de três anos até uma senhora idosa de mais de 70.  Separou famílias. Matou e feriu gravemente espanhóis, europeus, e muitos outros de países e continentes mais ou menos distantes.  Era mais um atentado do Estado Islâmico, que tem marcado a vida do mundo inteiro com o medo e a apreensão, a todos sobressaltando com a imprevisibilidade e a violência de seus ataques.

           É a segunda vez de um atentado terrorista na Espanha vindo de um grupo radical islâmico.  A primeira foi em 2004, com a explosão de vários trens em Madri e seus arredores. Mas para a Europa não é a segunda vez.  Contam-se já vários atentados na França, na Alemanha, na Inglaterra.  E nos perguntamos apreensivos: quando e onde será o próximo?

            A reação da população local e estrangeira de Barcelona foi semelhante à das outras capitais em alguns aspectos: não permitir que o medo tome conta da vida cotidiana, não se deixar paralisar e seguir com normalidade.  Mas distinguiu-se em um aspecto: a solidariedade não só de catalães e espanhóis, mas também de estrangeiros residentes e visitantes adquiriu proporções além do esperado.

            São incontáveis as manifestações de solidariedade que se seguiram ao atentado Em 24 horas chegava a 8000 o número de pessoas que ofereceram acolhida, ajuda, das mais variadas formas.  Desde o momento em que a van riscou a Rambla de sangue e pânico e se deteve forçada pela ativação do air bag sobre o mosaico do artista Joan Miró até o dia de hoje, milhares de pessoas fazem filas para doar sangue ou oferecem suas casas para alojar as famílias dos feridos que vêm de fora.  Há hotéis que disponibilizaram hospedagem gratuita para parentes de vítimas do atentado, motoristas de táxis e vans que transportam pessoas gratuitamente de um lado para o outro, percorrendo hospitais em busca de seres queridos cujo paradeiro é ignorado. Supermercados oferecem alimentos e gêneros de primeira necessidade.

            Não se sente na reação da luminosa cidade catalã raiva ou desejo de vingança.  Mas tenacidade em ajudar, proteger a vida ali onde ela se fez mais frágil e vulnerável pelo fanatismo assassino que tem causas tão complexas. Muitos muçulmanos se manifestaram, deixando claro que o Islã não se resume a um grupo radical djihadista.  O Islã é e quer paz e não morte e destruição. E mesmo as famílias dos terroristas sofrem as consequências de seu fundamentalismo que se torna violento e acaba atingindo elas próprias. 

            O recado dos djihadistas parece claro: na tentativa de islamizar o mundo inteiro, eliminam aqueles que não são islamizados e atacam os locais e ícones simbólicos do estilo de vida ocidental, diferente daquele por eles proposto e idealizado. 

            O que mais nos intriga, porém, é o fato de tudo isso acontecer em nome de Deus.  O Deus Uno, o Deus Grande, o Único que é clemente e misericordioso.  Em meio à dor e à perplexidade de mais um atentado assustador e inexplicável, nos vemos diante de uma interrogação para a qual não temos resposta.  Até quando?  Por quê? Que sentido tem tudo isso?

            Enquanto não se encontram soluções que sejam ao mesmo tempo eficazes e pacíficas e não penalizem inocentes, a melhor atitude é a que o povo de Barcelona e seus amigos encontraram: ser solidários, entrar em comunhão.  Ajudar, prover, proteger e socorrer. Fazer do atingido um irmão, não importa de onde venha, nem para onde vá.  Assim se reafirma a condição humana de todos que foram atingidos, seja perdendo a vida, sendo feridos, traumatizados, ou sofrendo profundamente perdas e danos.  Somos todos um e estamos em comunhão.  Isso é ser imagem daquele que nos criou à sua semelhança.

            Atingida e sangrando, a bela Barcelona dá um testemunho ao mundo da fé em que o bem é capaz de vencer a violência e o amor é mais forte do que a morte.  

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros.

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

BRASIL: UM BARCO DESGOVERNADO E À DERIVA


Por Leonardo Boff

A gravidade de nossa crise generalizada nos faz sentir como um barco à deriva, entregue à mercê dos ventos e das ondas. O timoneiro, o presidente, é acusado de crimes, cercado de marujos-piratas, em sua maioria (com nobres exceções) igualmente, corruptos ou acusados de outros crimes. É inacreditável que um presidente, detestado por 90% da população, sem nenhuma credibilidade e carisma, queira timonear um barco desgovernado.

Nem sei se é obstinação ou vaidade, elevada a um grau estratosférico. Mas, impávido, continua lá no palácio, comprando votos, dispensando benesses, corrompendo a já corruptos para evitar que responda junto ao STF a pesadas acusações que lhe são imputadas. Está pondo 57 empresas à privatização que inclui terras amazônicas e até a Casa da Moeda, símbolo da soberania de qualquer país.
É uma vergonha internacional  apresentarmos tal figura apagada e sombria e termos, como país, chegado a este ponto e conhecido a admiração de tantos outros países pelas políticas corajosas feitas em favor das grandes maiorias empobrecidas graças aos governos progressistas Lula-Dilma.
Pode a difamação dos opositores, apoiados por grupos ligados ao stablishment internacional que a todos quer alinhar a suas estratégias, tentar satanizar a figura de Lula e desfazer o mérito dos benefícios que ele propiciou aos deserdados da terra. Mas não estão conseguindo chegar ao coração do povo. Este sabe e testemunha: “Apesar de erros e equívocos, é inegável que Lula sempre amou os pobres e esteve do nosso lado. Mais que o pão, a luz, a casa, o acesso à educação técnica ou superior, ele nos devolveu dignidade; somos gente e não somos mais condenados à invisibilidade social”.
Querem destruir Lula, como líder politico e como pessoa. Não o conseguirão, porque a mentira, a distorção, a vontade raivosa e persecutória de um juiz justiceiro que julga mais pela raiva do que pelo direito, jamais irão desfigurar alguém que se transformou em um símbolo e em um arquétipo no Brasil e no mundo.
Dizem seguidores da psicologia profunda de C. G. Jung que quem se transformou em símbolo pela saga de sua vida e pelo bem que fez para os outros, se torna indestrutível. Virou símbolo de um poder político benfazejo para os mais desvalidos de nossa história, marcados por muitas chagas. O símbolo penetra o profundo das pessoas. Dispensa palavras. Fala por si mesmo. O símbolo possui um caráter numinoso que atrái a atenção dos ouvintes, até dos céticos. O carismático carrega uma estrela dentro e sua irradiação é a mais potente que conhecemos. Lula possui este carisma e essa luz que se traduz pela ternura que abraça e beija os mais humildes e pelo vigor com que leva avante sua causa libertária. Aqueles antes silenciados, se sentem representados por ele.
Além de símbolo, Lula se transformou num arquétipo do lider cuidador e servidor. O arquétipo é uma figura ponderosa que serve de referência a outros e por isso os anima e os  transforma. Este tipo de líder, consoante os mesmos analistas junguianos, serve a uma causa que é maior do que ele próprio, a causa dos sem nome e dos sem vez. Tais psicólogos sustentam que este tipo de líder faz coisas que parecem impossíveis. Evoca nos seguidores os arquétipos escondidos neles de também de se autosuperarem e de se sentirem parte da sociedade. Isso se expressa nas palavras de muitos que dizem: “ao votar nele, nós estamos votando em nós mesmos. Até hoje tínhamos que votar em nossos opressores, agora votamos em alquém que é um dos nossos e que pode reforçar a nossa libertação”.
A atuação política de Lula possui uma relevância de magnitude histórica. Ele tem a consciência deste desafio formulado por um dos melhores dentre nós, Celso Furtado, em seu livro “Brasil: a construção interrompida”(1992): ”Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um um Estado-nação”(p.35).
O que nos dói é constatar que o atual governo se empenha em interomper esse processo, pela violação da constituição e da democracia, pelos ajustes e pelas privatizações que promove e até pela venda de terras nacionais a estrangeiros. Celso Furtado que conhecia as práticas dessas elites constatava pesaroso:”tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional”(obra citada,p.35). Mas recusamos este prognóstico. Lutaremos para que o Brasil se tansforme numa nação pujante que sirva aos desígnios maiores da própria humanidade, carente de bens e serviços naturais, que nós dispomos em abundância e principalmente que reforce aqueles valores humanísticos da solidariedade, da compaixão e da alegria de viver que nos tornam mais felizes.
As elites dos endinheirados deixam-se neocolonizar,  para serem meros exportadores de commodities, ao invés de criar as condições favoráveis para concluirmos a fundação de nosso país. Além de corruptos, são vendilhões da pátria, cinicamente indiferentes à sorte de milhões que da pobreza estão caindo na miséria e da miséria, na indigência.
Temos que guardar os nomes destes politicos traidores dos anseios populares. Representam mais seus interesses pessoais e corporativos ou daqueles empresários que lhes financiaram as campanhas do que os interesses coletivos do povo. Que as urnas os condenem, negando-lhes a vitória pelo voto.
Leonardo Boff é articulista do JB on line, teólogo, filósofo e escritor; escreveu A grande transformação na economia, ma política e na ecologia, Vozes 2015;


quinta-feira, 24 de agosto de 2017

ROUBARAM A ESPERANÇA?


Por Frei Betto

       Se você já não enxerga perspectiva de futuro, despreza políticos e a política, recolhe-se à sua esfera privada, é sinal de que lhe roubaram a esperança.

       Se já não suporta o noticiário, acredita que a espécie humana deu errado e todas as libertações resultam em opressões, saiba que lhe roubaram a esperança.

       Se destila ódio nas redes digitais, desconfia de todos que proferem discursos sobre ética e preservação do meio ambiente, e confia apenas em sua conta bancária, esteja certo, roubaram-lhe a esperança.

       Se não curte mais sonhos de um futuro melhor, não injeta utopia na veia e não assume seu protagonismo como cidadão, preferindo se isolar em sua redoma de cristal, é sinal de que lhe roubaram a esperança.

       Os amigos de Jó tudo argumentaram para que ele abdicasse da esperança. Como teimava em mantê-la acesa se havia perdido terras, riquezas e família? Jó não introjetou a culpa, não jogou sobre os ombros de outrem os males que o afligiam, não abominou os revezes que o acometeram.

       Reza o poema de Franz Wright, inspirado na prece da poeta persa Rabi’a al-Adawiyya, “Deus, se pronuncio meu amor por você por medo do inferno, incinere-me nele; / se pronuncio meu amor por ansiar pelo paraíso, feche-o em minha face. / Mas se com você eu falo apenas porque você existe, pare / de esconder de mim sua / infinita beleza.”

       Nessa gratuidade da fé, da esperança e do amor é que Jó se sentiu recompensado ao contemplar a infinita beleza: “Te conhecia só por ouvir dizer. Mas, agora, meus olhos te viram” (42, 5).

       Como escreveu Spinoza em seu “Tratado teológico político”, “um povo livre se guia pela esperança mais do que pelo medo; o que está oprimido se guia mais pelo medo do que pela esperança. Um almeja cultivar a sua vida. O outro, suportar o opressor. Ao primeiro, eu chamo livre. Ao segundo, chamo servo.”

Você, como eu, é vítima de promessas que se transformaram em ilusões que desembocaram em frustrações. Nem por isso admito que me roubem a esperança.

       O segredo? Simples. Não me prendo ao aqui e agora. Olho as contradições do passado, marcado por retrocessos e avanços. Quantas batalhas perdidas resultaram em guerras vitoriosas? E quantos imperadores, senhores da vida e da morte, dos Césares a Átila, o huno; de Napoleão a Hitler; acabaram enxovalhados pela história?

       Encaro o futuro em longo prazo. Sei que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.

       Não creio em discursos nem amarro a minha esperança no paraquedas de algum avatar que promete salvação em curto prazo. Exijo programas e projetos, e julgo seus portadores por critérios rígidos. Procuro conhecer-lhes a vida pregressa, o compromisso com os movimentos sociais, sua ética e valores.

       Sei que o futuro será o que fizermos no presente. Não espero milagres. Arregaço as mangas, convicto de que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

       A esperança é uma virtude teologal. A fé crê; o amor acolhe; a esperança constrói. Assim como o caminho se faz ao caminhar, a esperança se tece como o alvorecer no poema de João Cabral de Melo Neto: "Um galo sozinho não tece a manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro: de outro galo / que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzam / os fios de sol de seus gritos de galo / para que a manhã, desde uma tela tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.”

       Gosto do verbo esperançar – estender o fio de Ariadne que nos conduz a todos para fora do labirinto. É um esforço coletivo, uma ação comunitária, um mutirão que nos irmana na certeza de que de dentro da pedra corre o filete de água que forma o córrego, faz o riacho, vira rio e rasga a terra, rega campos, alimenta ribeirinhos, até se somar ao leito do oceano.

       Como diz Mário Quintana em “Das utopias”, “Se as coisas são inatingíveis... ora! / Não é motivo para não querê-las... / Que tristes os caminhos, se não fora / A mágica presença das estrelas!”

Frei Betto é escritor, autor de “Ofício de escrever” (Anfiteatro), entre outros livros.
      
Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com