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terça-feira, 30 de abril de 2019

REDESCOBRIR A SUA FONTE INTERIOR




Por Marcelo Barros

Há certo tempo, quem andava pelas estradas de terra e trilhas do interior de Goiás, aqui e ali descobria à margem do caminho uma placa, às vezes, escrita quase improvisadamente: “Aqui se redescobriu e se salvou uma nascente d’água que se tinha perdido”. Um amigo que viu muitos desses letreiros quis saber dos cuidadores/as das nascentes como podiam saber que tal terreno baldio, ou sítio atualmente seco, continha escondido debaixo da terra ou do areal uma fonte d’água. Também queria saber o que faziam para fazê-la brotar. As explicações foram diversas, desde informações de antigos moradores até técnicas ancestrais como radiestesia e outras novas como pequenas perfurações e limpezas do terreno até chegar ao molhado e aí ajudar à antiga fonte novamente aparecer e renascer. 

Essa experiência suscita em nós a pergunta: E nós, eu e você, às vezes, não nos sentimos como um terreno, no qual a fonte interior que nos abastecia parece ter para sempre secado? Como fazê-la voltar a surgir do mais interior do nosso ser para irrigar as securas de nossas vidas e com águas puras e cristalinas dessedentar nossa sede mais íntima e profunda?

Na Alemanha nazista, em 1943, Etty Hillesun era uma jovem judia de 28 anos que, em um campo de concentração, tinha sido condenada à morte e esperava a sua execução. Em meio às barbaridades que sofreu e via outros sofrerem, ela escrevia um diário que escapou da censura dos seus algozes. Nesse diário, ela nos surpreende por sua atitude positiva de esperança e amor. No campo de concentração, condenada à morte, ela escreveu em seu diário: “Dentro de mim, há um poço muito profundo. Nem consigo ver o seu fundo. Às vezes, me parece coberto de pedras e lixo. E então, para mim, Deus está sepultado. Em alguns momentos, consigo desenterra-lo e posso até ajudar outras pessoas a desenterrá-lo em seus corações. Percebo que em uma situação como essa, ó Deus, tu não podes nos ajudar. Mas, nós podemos sim fazer muito por ti. Podemos ajudar-te a não te deixar sepultado em nós e a ser testemunhas do teu amor em uma realidade na qual todo amor é abolido e chacinado”.

 Será que essas palavras não caberiam hoje para muitos de nós? Será que a sociedade atual não vive também essa realidade na qual todo amor é abolido e chacinado? Não temos, cada um dentro de si mesmo um poço profundo, coberto de pedras e de todo tipo de lixo?

Para os cristãos que nesses 50 dias celebram a Páscoa, a fé na ressurreição de Jesus nos faz descobrir que, mesmo se a superfície parece árida como o sertão nordestino em tempos de seca, no mais profundo do nosso ser há uma fonte escondida, na qual a água cristalina do Espírito só espera nossa disposição para libertá-la. Então, ela jorrará como torrente de vida a renovar nossa esperança e encher de doçura nossa aridez.

Quem lê o diário de Etty Hillesun poderá constatar como ela tinha clareza de posições contra os nazistas, denunciava a opressão, sentia a indignação profética contra o mal e o combatia, mas não deixava que o ódio e o desejo de vingança a dominassem. Ao saber do extermínio de sua família, ela escreveu: “nessas circunstâncias tão terríveis, a minha contribuição para o meu povo é que não podemos abrir mão da misericórdia. Precisamos nos tornar incapazes de odiar, aconteça o que acontecer conosco. Essa será nossa única força”. 

Esse tipo de resistência interior e energia espiritual não se improvisa. Geralmente, as tradições insistem que, para realizar essa peregrinação interior para a fonte de águas vivas que é o Espírito Divino presente em nosso próprio coração, é preciso que a pessoa simplifique a sua vida, busque a sobriedade, ame o silêncio e, principalmente, aprofunde a sua capacidade de amar. O próprio Jesus, no Evangelho propôs, como condição para o discipulado, o despojamento pessoal e a disposição de partilhar com o outro tudo o que se tem e o que se vive.

A espiritualidade bíblica insiste que o cuidado com a interioridade não pode isolar a pessoa em si mesma. Ao contrário, é para torná-la mais capaz de sair de si e viver a comunhão com os outros.  Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano, mártir do nazismo, dizia: “Deus está em mim para você e em você, para mim. Ele está em mim, mas eu o encontro melhor em você e, então, você o revela presente em mim, assim como eu o mostro presente e atuante em você”.

Há quem pense na Mística e na Espiritualidade como coisas complicadas e exóticas, acessíveis apenas a pessoas muito especiais. A fé cristã nos assegura que, ao contrário, este caminho se realiza pela graça divina e é totalmente gratuito e democrático. É acessível a todos. Basta querer e aceitar o chamado divino. Vale para nós, hoje, o que Paulo escreveu aos cristãos de sua época: “Vocês não vivem mais sob o domínio dos instintos egoístas (carne), mas sob o Espírito e o próprio Espírito Divino habita em vocês” (Rm 8, 9).


 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O FOGO EM NOTRE DAME E AS PROMESSAS DO BATISMO




Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Com ela, a majestosa e bela senhora do Sena, ardeu nosso coração também.  Seja por fé, seja por estética, doeu muito em toda pessoa que se entende humana ver as chamas, indomáveis, devorando a imponente e majestosa catedral de Notre Dame de Paris, sob o combate competente e constante dos bombeiros.

           É importante não deixar passar as lições e ensinamentos que ficam do fogo. E o primeiro é o valor imenso da história.  Ali em Notre Dame queimavam diante dos olhos atônitos do mundo inteiro séculos de história.  Como disse o presidente Emmanuel Macron, em belo discurso imediatamente posterior à tragédia: “Vamos reconstruir Notre Dame.  Nossa história merece.” As velhas pedras que os turistas vão ver muitas vezes sem alcançar todo o seu significado importam.  E muito.  São nossa história, testemunhos imóveis e artísticos daquilo que uma civilização é capaz de fazer e construir.

            Fica igualmente a certeza de que a beleza salva.  Salva da mediocridade, da falta de horizonte, da obscuridade.  Salva da tentação de achar que a vida é apenas o que os sentidos alcançam e a razão circunscreve. Salva da depressão de afundar na tristeza de que tudo acaba, perece e, portanto, nada vale a pena, pois a alma – ao contrário do que diz o poeta -  é pequena. 

            No entanto, a lição mais luminosa do incêndio que vitimou a catedral está em imagens que passaram pelas redes sociais e pelos meios de comunicação.  A primeira é de um grupo de jovens sérios e serenos, ajoelhados, rezando o terço e cantando uma versão da Ave Maria.  Bela, cheia de sentido, a oração daqueles jovens falava por si só. A catedral ardia e isso era doloroso, mas Maria, em cuja honra Notre Dame foi construída, estava viva nos corações e na fé de todos eles.

            A segunda foi de uma mulher de uns cinquenta anos que chorava desconsoladamente. Entrevistada pelos jornalistas, ela dizia que não sabia por que chorava.  Não era religiosa, não tinha fé.  Era ateia, mas ver Notre Dame sob as chamas lhe partia o coração. 

Em ambas as imagens vejo o retrato não só da França hoje, mas de um mundo que continua buscando o sentido, segue sedento de absoluto, mas às vezes não consegue mais encontrar seu rumo. 

            A França é considerada a filha mais velha da Igreja.  Foi importantíssima na história do Catolicismo, religiosa, artística e intelectualmente.  Dali saíram grandes livros de teologia, fantásticas obras de arte, estupendas realizações culturais e religiosas.  Hoje, vemos uma França laicista, que parece perder a cada dia sua cultura católica e vê crescer em seu seio a secularização por um lado e outras religiões, sobretudo a islâmica, por outro. 

            Digo parece propositalmente.  Os jovens rezando e cantando ajoelhados diante da catedral em chamas me faz duvidar.  A mulher ateia chorando também.  Pelo contrário, me falam de um povo que não pode mais voltar a uma pré-modernidade perdida, mas busca febrilmente a transcendência que deixou escapar há muito tempo e da qual ainda não fez uma nova síntese. Um povo que continua guardando as festas religiosas talvez mais do que qualquer outro no mundo ocidental: Páscoa, Pentecostes, Assunção.  As raízes cristãs não desapareceram e emergiram do fogo sob a forma de lágrimas desoladas ou de oração confiante. 

            Desde que o incêndio aconteceu, lembrei-me incessantemente da homilia que João Paulo II fez em sua visita a Paris, em 1980. Naquela ocasião, o Papa dirigiu-se à França secularizada e lançou uma pergunta inquietante: “França, filha mais velha da Igreja, tens sido fiel às promessas do teu Batismo?” Como os catecúmenos, no momento de receber o sacramento de iniciação que os insere na Igreja como filhos, confessam crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a França era interrogada e instigada a fazer um exame de consciência.

            Quase quarenta anos depois, o fogo lambeu as velhas e belas pedras da catedral de Notre Dame.  E a tristeza de todos, crentes ou não crentes, católicos, muçulmanos, judeus ou de qualquer outra religião dá testemunho de que esse fogo não foi somente destruidor.  Foi também purificador. 

            Não só a França é chamada a prestar contas das promessas do seu Batismo, ou seja, da firmeza e da solidez de sua fé e seu compromisso com o amor, a beleza, a justiça.  Todos nós, que fomos tocados pelo que aconteceu em Paris, somos interpelados por esse fogo.

            A mim, católica que conhece Notre Dame, havendo inclusive já assistido várias missas celebradas em seu interior, fica a convicção de que não se pode descuidar a memória, a beleza, os traços deixados pelo Absoluto na história contingente e tão desfigurada dos seres humanos. Notre Dame desfigurada e sempre bela continua nos convidando a não desistir de buscar e não perder a capacidade de nos deslumbrarmos e extasiarmos, sempre, com a Transcendência que mora em nós e ao redor de nós.  É ela que, enfim, nos faz humanos. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

Maria Helena Guimarães Pereira
mhgpal@gmail.com


sexta-feira, 26 de abril de 2019

SÃO JORGE: OS POBRES MATAM TODO SANTO DIA UM DRAGÃO





por leonardo boff

Tempos atrás escrevi dois estudos sobre São Jorge, um histórico e outro interpretativo. A situação atual da maioria do povo empobrecido e humilhado tem que matar um dragão cada dia para poder sobreviver. Vale invocar a força e a coragem de São Jorge.Por isso atualizo o escrito anteriormente publicado e válido especialmente para o atual momento.
A história de São Jorge e o combate feroz com o dragão são dados de grande significação. Vamos tentar interpretar sua figura, o dragão e a sua luta.Veremos que tem a ver com a existência de cada ser humano, especialmente dos que precisam lutar muito para viver. Primeiramente, o dragão é dragão, portanto, uma serpente. Mas é apresentada alada, com enorme boca que emite fogo e fumaça e um cheiro mortífero. É um dragão simbólico.
No Ocidente representa o mal e o mundo ameaçador das sombras. No Oriente é positivo, símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade (long). Entre os aztecas era a serpente alada (Quezalcoatl), símbolo positivo de  sua cultura. Para nós ocidentais o dragão é sempre terrível e representa a ameaça à vida ou as dificuldades duras da sobrevivência. Os pobres dizem: “tenho que matar um dragão por dia tal é a luta pela sobrevivência”.
Mas o dragão, como o mostrou a tradição psicanalítica de C. G. Jung com Erich Neumann, James Hillmann. Etienne Perrot e outros, representa um dos arquétipos (elementos estruturais do inconsciente coletivo ou imagens primordiais que ordenam a psique) mais ancestrais e transculturais da humanidade.
Junto com o dragão sempre vem o cavaleiro heroico que com ele se confronta numa luta feroz. Que significam essas duas figuras? À luz de categorias de C. G. Jung e discípulos, especialmente de Erich Neumann que estudou especificamente este arquétipo (A história da origem da consciência, Cultrix 1990) e da psicoterapia existencial-humanística de Kirk J. Schneider (O eu paradoxal, Vozes 1993) procuremos entender o que está em jogo nesse confronto. Ele ensina e nos desafia.
O caminho da evolução leva a humanidade do inconsciente ao consciente, da fusão cósmica com o Todo (Uroboros) para a emergência da autonomia do ego. Essa passagem é dramática, nunca totalmente realizada; por isso, o ego deve continuamente retomá-la caso queira gozar de liberdade e se impor na vida.
Mas importa reconhecer que o dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas dimensões do mesmo ser humano, de cada um de nós.  O dragão em nós é o nosso universo ancestral, obscuro, nossas sombras de onde imergimos para a luz da razão e da independência do ego. Por isso que em algumas iconografias, especialmente uma da Catalunha (é seu patrono) o dragão aparece envolvendo todo o corpo do cavaleiro São Jorge. Numa gravura de Rogério Fernandes o dragão aparece envolvendo o corpo do Santo, que o segura pelo braço e tendo o rosto, nada ameaçador na altura do de São Jorge. É um dragão humanizado formando uma unidade entre o ser humano e São Jorge. Noutras (no Google há 25 páginas de gravuras de São Jorge com o dragão) o dragão aparece como um animal domesticado sobre o qual São Jorge de pé o conduz, sereno, não com a lança mas com um bastão.
A atividade do herói, no caso de São Jorge, na sua luta com o dragão mostra a força do ego,da consciência, corajoso, iluminado e que se firma e conquista autonomia, mas sempre em tensão com a dimensão escura do dragão. Eles convivem mas o dragão não consegue dominar o ego.
Diz o psicanalista Neumann:”A atividade da consciência é heroica quando o ego assume e realiza por si mesmo a luta arquetípica com o dragão do inconsciente, levando-a a uma síntese bem sucedida”(Op.cit. p.244), A pessoa que fez esta travessia não renega o dragão, mas o mantem domesticado e integrado como seu lado de sombra.
Por esta razão, em muitas narrativas, São Jorge não mata o dragão. Apenas o domestica e o reinsere no seu lugar, deixando de ser ameaçador. Ai surge a síntese feliz dos opostos; o eu paradoxal encontrou seu equilíbrio pois alcançou a harmonização do ego com o dragão, do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra,  da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e com a religião.
A confrontação com as oposições e a busca da síntese constitui a característica de personalidades amadurecidas, que integraram a dimensão de sombra e de luz. Assim o vemos em Buda, Francisco de Assis, Jesus, em Gandhi, em Luther King e no Papa Francisco.
Os cariocas tem grande veneração por São Jorge tão forte quanto a de São Sebastião, patrono oficial da cidade. Mas este é um guerreiro, cheio de flechas, portanto “vencido”.Por isso há um movimento para faze-lo o segundo patrono do Rio de Janeiro.
O povo sente necessidades de um santo guerreiro corajoso “vencedor” das adversidades. Ai São Jorge representa o santo ideal. Numa famosa  novela “Salve Jorge”ele é o herói que salva as mulheres traficadas contra o dragão do tráfico internacional de mulheres.
Por certo, aqueles que veneram São Jorge diante do dragão não saibam nada disso. Não importa. Seu inconsciente sabe; ele  ativa e realiza neles sua obra: a vontade de lutar, de se afirmar como egos autônomos que enfrentam e integram as dificuldades (os dragões) dentro de um projeto positivo de vida (São Jorge, herói vitorioso). E saem fortalecidos para a luta da vida.
Leonardo Boff coordenou a publicação da obra completa de C. G. Jung junto à Editora Vozes.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

O DESFILE DE PEN




Por Frei Betto

          O Banco Mundial divulgou, a 4 de abril, relatório no qual destaca que a pobreza triplicou no Brasil entre 2014 e 2017. Hoje, atinge 21% da população, ou seja, 43,5 milhões de pessoas, o que equivale a toda a população do estado de São Paulo. São brasileiros e brasileiras que dispõem de renda diária de R$ 20,9, ou de apenas R$ 627 por mês!

          Entre 2003 e 2014, a parcela da população brasileira vivendo com menos de R$ 20,9 por dia (na paridade do poder de compra de 2011) caiu de 41,7% para 17,9%. Essa tendência se reverteu em 2015, quando a pobreza aumentou para 19,4% da população.

          Dados do Banco Mundial mostram que a contração da economia brasileira, em 2015 e 2016, freou uma década de redução continuada da pobreza. “As crescentes taxas de pobreza do Brasil têm sido acompanhadas por um salto na taxa de desemprego, que cresceu quase seis pontos percentuais do primeiro trimestre de 2015, e chegou a 13,7% da população no primeiro trimestre de 2017”, aponta o organismo financeiro. Em 2018, com o crescimento econômico de apenas 1,1%, as taxas de pobreza se mantiveram altas.

          O Banco Mundial utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) 2017, e do Conselho Nacional de Justiça.

          O banco ressalta ainda a importância dos programas sociais “como amortecedores do choque”. No entanto, o atual governo do Brasil caminha na direção contrária. Propõe uma reforma da Previdência que penaliza ainda mais os pobres, em especial os trabalhadores rurais e os que recebem Benefício de Prestação Continuada. E o Ministério da Economia quer que o reajuste anual do salário mínimo seja feito sem ganho real para os trabalhadores.

          Hoje, o cálculo de reajuste do salário mínimo leva em conta o resultado do PIB dos dois anos anteriores, mais a inflação do ano anterior medida pelo INPC. Isso garante que o aumento do salário mínimo supere a inflação, reduza a desigualdade social e amplie o consumo das famílias. 

          Agora o governo propõe que o reajuste seja feito levando em conta apenas a inflação, o que representaria uma economia de R$ 7,6 bilhões para os cofres públicos. 

          Vale ressaltar que esta é uma conta de náufrago, aquele que, isolado na ilha na qual nada se vende, ocupa seus dias contando dinheiro. O que o governo pretende economizar equivale a recolher água em peneira. Pois reduzir o valor do salário mínimo é contribuir para o aumento de enfermidades, evasão escolar, moradores de rua e criminalidade, além de reduzir a venda de bens e serviços. Isso significa mais gastos do governo com saúde, assistência social, aparelho policial repressivo, prisões e sistema judiciário.

          A América Latina e o Caribe  tinham renda per capita de US$ 10,7 mil em 1980. Representava 45,3% da renda das economias avançadas naquele ano. Já em 2023 a renda per capita de nosso Continente deve chegar a US$ 15,9 mil, apenas 32,4% da renda das economias avançadas, o que significa aumento de apenas 1,5 vez, bem menor do que os 2,1 vezes dos países ricos. 

          As manifestações dos “coletes amarelos”, na França, têm o mérito de colocar na pauta do dia a pobreza e a desigualdade que se alastram também pelo chamado Primeiro Mundo. Enquanto a miséria se aprofunda, as Bolsas de Valores batem recordes. Como alertou Simone Weil, “ao fazer do dinheiro o móvel único ou quase de todos os atos, a medida única ou quase de todas as coisas, espalhou-se o veneno da desigualdade em toda parte”.

          Em 1971, o economista holandês Jan Pen publicou um tratado sobre a distribuição de renda no Reino Unido, no qual descreveu um desfile de carnaval reunindo as pessoas mais pobres, na abertura, e as mais ricas, no final. Daí o termo “Desfile de Pen”. O Banco Mundial propôs o mesmo para o Brasil, colocando na Sapucaí “o desfile mais estranho da história”.

          “Por muito tempo, o público só veria pessoas incrivelmente pequenas (apenas alguns centímetros de altura). Levaria mais de 45 minutos para os participantes alcançarem a mesma altura dos espectadores. Nos minutos finais, gigantes incríveis, mais altos do que montanhas, apareceriam”, descreve o relatório, produzido pelo economista-chefe do Banco Mundial para América Latina e Caribe.

          O encerramento seria feito por um número insignificante de foliões, os milionários brasileiros com renda mensal acima de R$ 55 mil (1,2 milhão de pessoas em uma população de 208 milhões), porém com mais destaque do que a multidão que os precedeu (206,8 milhões de pessoas), pois seus corpos teriam 100 mil metros de altura!

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Anfiteatro/Rocco), entre outros livros.
Copyright 2019 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 


quarta-feira, 24 de abril de 2019

A DIFÍCIL ARTICULAÇÃO ENTRE O JESUS DA FÉ E O JESUS DA HISTÓRIA.




Por Eduardo Hoornaert.

O Jesus da fé.

Sem dúvida, a pergunta fundamental acerca de Jesus continua sendo: Quem é Jesus para mim hoje? Onde encontro Jesus? Como? Eis a pergunta deveras mais importante. O primeiro escritor cristão, Paulo de Tarso, que começa a redigir suas cartas apenas vinte anos após a morte de Jesus, não demonstra interesse em conhecer a biografia de Jesus de Nazaré, mas vai direto ao âmago: quem é esse Jesus, que aprendi a conhecer entre militantes de seu movimento? O que ele traz para minha vida? A resposta de Paulo, que repercute por séculos: Jesus é liberdade, amor, universalismo. Eis o primeiro Jesus da fé.

O Evangelho de Marcos, escrito por volta do ano 70, procura igualmente fazer com que as pessoas descubram o Jesus da fé. Apresenta um Jesus que não quer atrair a atenção sobre si mesmo, mas que orienta as pessoas a viverem sua vida numa perspectiva de amor, perdão, liberdade, fraternidade, cuja alegria consiste em ver que as pessoas entendem sua proposta e a traduzem em ações concretas.

E assim, ao longo desses dois mil anos de cristianismo, inúmeras pessoas se fizeram a mesma pergunta: quem é Jesus para mim? O que ele significa na minha vida? O que ele tem a me dizer hoje, nas circunstâncias em que vivo? Onde o encontro? Na igreja, na missa, na prece, nos doentes acamados em corredores de hospital, na interminável fila de pessoas que procuram emprego, nos presídios, entre pobres, negros, indígenas, sem terra, sem teto, sem amparo, sem voz?

O Jesus da história.

O Jesus da fé tem de se articular com o Jesus da história, pois este constitui a condição indispensável para que se chegue a uma fé consistente. Há de se evitar, a todo custo, de firmar sua fé num Jesus imaginativo, produto da imaginação. Infelizmente, esse Jesus imaginativo funcionou ao longo de séculos por meio de imagens nem sempre justificadas. Assim se entende que, no século XIX, pessoas, como o francês Ernest Renan, começam a falar em ‘Jesus histórico’ e acabam criando um movimento consistente de pesquisa histórica, linguística, arqueológica. Hoje existem diversos centros em que se estuda o Jesus da história sem interferências por parte de confissões religiosas ou interesses políticos. Assim, por exemplo, o ‘Jesus Seminar’, fundado nos Estados Unidos em 1985 por Robert Funk e John Dominic Crossan, que hoje se constitui num espaço livre em que se discute o Jesus da história. Esse ‘Jesus Seminar’ já produziu excelentes resultados nos trabalhos de John Gager, John Kloppenborgh, Jonathan Reed, Marcus Borg, John Spong (bispo anglicano), Bart Ehrman, Karen Armstrong (ex-religiosa católica), Elaine Pagels, Luke Johnson, Reza Aslan (iraniano), etc. A Alemanha não deixa por menos e continua publicando textos fundamentais (por meio da Casa Editora Mohr Siebeck de Tübingen, por exemplo). A França perdeu espaço nesse terreno, enquanto a América Latina, até hoje, pouco contribui nesse campo.

A difícil articulação.

O que instigou pessoas como Ernest Renan a empreender estudos acerca de Jesus histórico? E por que esses estudos costumam encontrar oposição em ambientes eclesiásticos? A razão é simples: mais de dois mil anos nos separam do Jesus da história, do Jesus que atuou na Galileia.
Ao longo desse tempo todo, muita gente ‘mexeu’ com sua imagem. O escritor americano Jaroslav Pelikan publicou em 1985 um livro intitulado ‘Jesus through the Centuries’, publicado em São Paulo em 2000 (Cosac & Naify) sob o título: ‘A imagem de Jesus ao longo dos séculos’. Nele se mostra que a imagem Jesus passou pelas mãos de muita gente, foi muito ‘manipulada’. Há o Jesus do Império Romano, do Império Bizantino, das Cruzadas, da Inquisição, da colonização europeia, da reação contra essa colonização. Há o Jesus da libertação, da prosperidade, do sucesso nos negócios, da boa saúde, do bem-estar. Há o Jesus católico e o Jesus luterano, judeu e islamita, espírita, africano, indígena, feminista. Há mesmo um Jesus ateu. Na maioria dessas imagens não se percebe interesse em saber como Jesus viveu efetivamente, o que ele fez, o que disse, o que pensou. Pelo contrário, essas imagens, na maioria dos casos, revelam como instâncias interesseiras, sejam elas romanas, bizantinas, medievais, islamitas, católicas, protestantes, espíritas, ateias, apresentaram Jesus. Muitos teólogos se deixam levar por essas instâncias interesseiras, a tal ponto que se imaginaram e ainda hoje se imaginam um Jesus ‘conveniente’.

O fundamentalismo.

Você já percebeu onde quero chegar. Quero falar com você sobre o fundamentalismo.Quando um pregador, hoje, cita textos bíblicos para defender sua própria maneira de pensar, quando ele parte do pressuposto que a Bíblia e os Evangelhos estão de acordo com o que sua igreja prega e propaga, ele está sendo fundamentalista. Um professor meu, nos idos de 1954, certa feita, terminou a exposição de uma matéria do nosso curso teológico com as seguintes palavras: ‘Mais uma vez conseguimos provar que a Bíblia está de acordo conosco’. Não podia definir melhor o fundamentalismo. A Bíblia e os Evangelhos de acordo conosco.

Ora, atualmente, esse fundamentalismo virou uma onda crescente, que ameaça inundar os campos cristãos, em todas as denominações. Para dizer a coisa em toda franqueza: o que me motiva a escrever estas palavras é que nelas encontro uma oportunidade de refletir com você sobre o fundamentalismo reinante no Brasil e ponderar com você como erguer um dique contra esse tsunami. Pois, quando fundamentalistas estão no poder, toda a sociedade corre perigo.

Em muitos casos, o fundamentalismo não tem nome. Conto aqui um caso que ocorreu 17 séculos atrás. Você decerto já ouviu falar da ‘reviravolta constantiniana’. Diz-se que o próprio Imperador Romano, de nome Constantino, teria se convertido ao cristianismo. Acontece que, no ano 325, esse Imperador convoca bispos cristãos, provenientes de diversas regiões do Império Romano, a se reunir em sua Residência de Verão, situada num subúrbio de Bizâncio chamado Niceia. Uma surpresa total, pois seu antecessor Diocleciano havia deflagrado a mais cruel perseguição contra as comunidades cristãs. O novo Imperador, pelo contrário, se dispõe a ajudar os bispos a resolver determinados problemas de desunião existentes entre comunidades locais. Ele se apresenta com quem quer ajudar os bispos a unificar o movimento cristão. Será que essa é sua real intenção? Não será que ele pretende se valer das energias atuantes no movimento cristão para enfrentar problemas burocráticos de desunião a serem resolvidos na administração do Império, no sentido de tentar conglomerar imensos territórios, onde vivem as mais diversas etnias, sob sua única autoridade? Não será que a imagem do Cristo Único, apresentada nos mais distantes rincões do Império, lhe aparece apropriada a realizar seus intentos políticos unificadores?

Segundo as informações que possuímos acerca dessa assembleia episcopal (o concílio de Niceia), os bispos parecem mal perceber, por detrás das palavras e dos gestos de gentileza, as intenções reais do Imperador. Não é por menos. Eles, que chegam do interior, do mundo rural analfabeta, agora são recebidos com honrarias que nunca dantes receberam. Muito lhes impressiona a recepção por parte do Imperador e de dignitários de sua Corte. São homens do povo, agora tratados como se fossem Senadores do Império, com direito a honras militares e protocolares. Podemos presumir que entre eles haja analfabetos, pois a população em geral, naqueles tempos, é iletrada. É claro que eles se fazem acompanhar de secretários capazes de lidar com letras, ler as Escrituras Sagradas, falar a linguagem da Corte e redigir textos no devido estilo imperial. Mas os bispos mesmos ficam impressionados. Um deles, ao ver o Imperador conversando com seus colegas, exclama: ‘é o Cristo! O próprio Cristo está entre nós!’.

Há muitos outros exemplos de fundamentalismo ao longo da história do cristianismo, modos mais ou menos claros, mais ou menos patente, frequentemente ocultados, de se manipular a imagem de Jesus.

Em busca de Jesus de Nazaré.

É nesse sentido que, de uns anos para cá, costumo convidar pessoas a partir comigo para uma viagem no tempo, ‘em busca de Jesus de Nazaré’. Recentemente, publiquei um livro com esse título (Paulus, São Paulo, 2016). Gosto de convidar as pessoas a uma viagem em que se contemplam paisagens diferentes daquelas que estamos habituados a ver. Penetramos num mundo novo. Teremos de colocar, por enquanto, ensinamentos recebidos sobre Jesus entre parênteses, para dedicar toda a nossa atenção ao que observamos ao longo do caminho, talvez pela primeira vez. Certamente, não é por meio de uma reflexão de alguns instantes, pela leitura de um texto como este, que nossos questionamentos serão desnuviados. O que escrevo aqui não pode ser mais que um aceno para ir cavando, um convite para estudar em profundidade a articulação entre o Jesus da fé e o Jesus da história.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


terça-feira, 23 de abril de 2019

PÁSCOA PARA NÓS E PARA A MÃE TERRA



 Por Marcelo Barros 

A chegada da primavera é ocasião de festa para todos os povos.  Muitas comunidades tradicionais, indígenas e africanas, celebram a primavera com ritos para que as pessoas se renovem e readquiram a energia  da juventude. A festa da Páscoa nasceu em tempos imemoriais, em ritos de primavera e renovação da vida. O próprio termo “Páscoa” significa passagem. Não indica somente mudança de estação, mas a decisão de passar de uma vida acomodada e rotineira para um novo modo de viver. É possível que, em seu início, Páscoa fosse o nome de uma dança sagrada, na qual se ensaiavam passos para o futuro e para a vida.

Nesse ano de 2019, a festa cristã da Páscoa coincide com a celebração da Pessah judaica que começou na sexta-feira 19 e dura uma semana. No judaísmo, o título da festa é “Pezah zeman herutenu” : “a estação da nossa libertação”. O cristianismo fala de “festa da Ressurreição”. A forma e o conteúdo das celebrações variam, mas a raiz é a mesma. A Páscoa judaica tornou-se a comemoração da noite em que o Senhor libertou os hebreus da escravidão. Os cristãos celebram essa memória e acrescentam o memorial da morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Foi quando celebrava a Páscoa com sua comunidade que Jesus foi preso e assassinado.. Na madrugada do domingo que se seguia ao grande sábado da festa, Jesus deixou-se ver, vivo. O Senhor ressuscitado revela-se com o corpo ferido e chagas abertas nas mãos, nos pés e no peito. Mas, está vivo e resistente. Seus discípulos se alegram em vê-lo vivo e lembram sua palavra: “Filhinhos, no mundo vocês sempre terão aflições. Tenham coragem: eu venci o mundo”(Jo 16, 33). 

Ser discípulo/a de Jesus é testemunhar ao mundo essa energia da ressurreição, atuante nele e por seu Espírito, em todas as pessoas que o aceitam. Essa energia de ressurreição é força de resistência e vigor nas lutas pacificas pela transformação do país e do mundo. No mundo, os poderes da morte continuam agindo. O desamor organiza um mundo escravo do dinheiro e do poder; uma sociedade cruel e sem compaixão. Mas, no coração de muita gente, os gritos de Páscoa ressoam teimosamente.

Celebrar a Páscoa não vai mudar mecanicamente a situação social, política, ou econômica, mas vale como profecia e grito de liberdade para dar força a quem assume as lutas pela transformação do mundo.

   No meio das mais áridas paisagens, as flores resistem. Mesmo a lagarta aparentemente mais asquerosa é chamada a uma mudança radical. Rompe o casulo, ganha asas para voar e se transforma em uma linda borboleta. É símbolo da vocação do ser humano para esse caminho pascal.

Nesse ano de 2019, no Ocidente, a festa da Páscoa coincide com a celebração do Dia mundial da mãe-Terra, data aprovada pela assembleia geral da ONU e mantida a cada ano no dia 22 de abril.

Os desequilíbrios climáticos que vimos assistindo, na forma de ondas de calor mais fortes do que o costumeiro, furacões que atingiram a África oriental e nas chuvas torrenciais que provocam destruições em nossas cidades revela que precisamos mudar o modo de organizar a sociedade, baseado na exploração da natureza. O dia mundial da mãe Terra quer provocar uma maior consciência da urgência do cuidado que devemos ter com a mãe Terra, agredida e ameaçada em seu sistema de vida.

A ressurreição é a energia de Deus para transformar o universo. Celebremos, então, esta festa e vivamos este caminho pascal no aprofundamento da solidariedade como forma de viver a fé e a intimidade com Deus, a renovação de nossas vidas e a comunhão amorosa com a mãe Terra e todo o universo que nos rodeia. Como cantam as comunidades: “Cristo ressuscitou, o sertão se abriu em flor. Da terra, água surgiu. Era noite e o sol brilhou”.    
      
 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 22 de abril de 2019

AS ENCHENTES NO RIO E A MUDANÇA CLIMÁTICA




Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Já em 1959 Moreira da Silva compôs o samba Cidade Lagoa, falando das enchentes constantes que alagam a Cidade Maravilhosa.Basta que chova, mais ou menos meia hora/ É batata, não demora, enche tudo por aí/ Toda a cidade é uma enorme cachoeira/ Que da Praça da Bandeira/Vou de lancha ao Catumbi reza a letra de Kid Morengueira. Parece descrever o que se experimenta nestes primeiros meses do ano.

Uma vez mais o Rio experimenta essa maldição de ficar à mercê da força das águas que caem abundantes e descontroladas em mais um temporal dentre os muitos que se abatem sobre sua urbe. E infelizmente não de forma  poética ou jocosa como no samba de Moreira da Silva, mas trágica. Saldo de dez mortes e muitos desabrigados; medo e insegurança; destruição e perda; é o que fica de mais um temporal que vira enchente e arrasta consigo a precária tranquilidade da vida carioca.

Vulnerabilizada pelo descaso e a má administração, a cidade tem bueiros entupidos, manutenção atrasada ou inexistente.  O prefeito manda para a rua 20 homens esperando que cuidem de uma catástrofe que requereria ao menos 200. Em alguns dos pontos mais prejudicados, onde a água ainda faz estragos enormes, não se enxerga ninguém da prefeitura.  Às vezes algum carro de bombeiros.  Mas nada das unidades de emergência designadas para auxiliar em momentos de catástrofes.

À incompetência e à ineficácia humanas se junta, porém, outro fator, mais profundo e mais sério.  Está na origem destes desastres naturais que constantemente ceifam vidas e encurtam a saúde do planeta. Trata-se da mudança climática, consequência de contínuas e cruéis agressões à Mãe Terra e ao meio ambiente. O aquecimento global decorrente deste estado de coisas faz com que o tempo fique mais quente e as águas do mar igualmente.  Assim, quando alguma frente fria se encontra com esse calor maior provoca chuvas em volume superior ao que antes havia.

É a natureza mandando a conta e pedindo contas da irresponsabilidade com que vem sendo tratada ao longo de tanto tempo. Pressionada e sugada em seus recursos, responde com a incapacidade de gerir com suavidade e benevolência o ambiente onde vivem os seres todos e também os humanos.  E o resultado é o que vemos: o aumento exponencial dos desastres naturais em paralelo com o crescimento de nosso despreparo para com eles lidar.
Há muitos anos esse estado de coisas vem preocupando intelectuais, estudiosos e ativistas no mundo inteiro.  Documentos foram escritos, livros, artigos, bibliotecas inteiras.  Encontros e congressos promovidos, suas resoluções publicadas e divulgadas.  Há poucos anos atrás, uma voz se levantou para reforçar toda essa preocupação mundial e novamente chamar nossa atenção para o perigo em que estamos jogando o planeta.

A encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, é indubitavelmente um marco qualitativamente novo e de superior importância na história do Ensino Social da Igreja. Nela o pontífice alerta dramaticamente para o absurdo de se persistir com o estilo de vida consumista e predatório que destrói os recursos naturais e ameaça o futuro de todos os seres vivos no planeta.

Ao número 23 do documento, o Papa menciona o aquecimento climático como fonte de inúmeras desordens nocivas e mesmo letais para a sobrevivência na terra. "Há um consen­so científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o re­lacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular."

Aí estamos nós diante de acontecimentos meteorológicos extremos: inundações provocadas por chuvas que levantam asfalto, arrastam carros, deslizam encostas, soltam pedras, afogam vidas, esperanças e enlutam famílias.  O Papa indica como agir, de nossa parte, para combater esse perigo: "A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam... numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros), emitidos sobretudo por causa da ativi­dade humana".

Acrescentaríamos na descrição dessa atividade humana tão prejudicial à vida nossos maus hábitos de poluir rios, tratar com descaso a seleção do lixo, consumir água para além do necessário, desmatar e destruir o verde etc. Se, por um lado, é legítimo reclamar das autoridades e denunciar sua incompetência, por outro é bom olhar para si mesmo e conscientizar-se de que uma parte da responsabilidade pelos constantes desastres ecológicos que nos acometem é nossa.  Não temos sabido zelar pela casa comum, nossa mãe terra, na qual vivemos à graça da criação divina. Que essas chuvas e o rastro de dor que deixaram possam ser para nós impulso de conversão nessa Quaresma que ainda caminha em direção à Páscoa.

  Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)


sexta-feira, 19 de abril de 2019

A RESSURREIÇÃO DE UM TORTURADO E CRUCIFICADO: JESUS DE NAZARÉ




por leonardo boff

A páscoa da ressurreição deste ano se celebra no contexto de um país onde quase toda a população está sendo sufocada por um governo de extrema-direita que tem um projeto político-social radicalmente ultra-neoliberal. Ele se mostra sem piedade e sem coração pois desmonta os avanços e os direitos de milhões de trabalhadores e de pessoas de outras categoriais sociais. Coloca à venda bens naturais pertencentes à soberania do país. Aceita a recolonização do Brasil no intuito indisfarçável de repassar a nossa riqueza para as mãos de pequenos e poderosos grupos nacionais e internacionais. Não há qualquer sentido de solidariedade e de empatia para com os mais pobres e com aqueles que vivem ameaçados de violência e até de morte pelo fato de serem negros e negras, de habitarem em favelas, indígenas, quilombolas ou de outra condição sexual.
Andando por este país e um pouco pelo mundo, ouço, de muitas partes, gemidos de sofrimento e de indignação. Então, parece-me ouvir as palavras sagradas:”Eu vi a opressão de meu povo, ouvi os gritos de aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci pra libertá-los e faze-los sair desse país para uma terra boa e espaçosa” (Ex 3,7-8).
Deus deixa sua transcendência (“Deus acima de todos?”), desce e se coloca no meio dos oprimidos para ajudá-los a fazer a passagem (pessach=páscoa) da opressão para a libertação.
Vale enfatizar o fato de que há algo de assustador e de perverso em curso: um chefe de estado exalta torturadores, elogia ditadores sanguinários e considera um mero acidente o fuzilmanto com 80 tiros, por militares, de um negro, pai de família. E ainda propõe o perdão pelos que promoveram o holocausto de seis milhões de judeus. Como falar de ressurreição num contexto de alguém que prega uma perene “sexta-feira santa” de violência? Ele tem continuamente o nome de Deus e de Jesus em seus lábios e esquece que somos herdeiros de um prisioneiro político, caluniado, perseguido, torturado e crucificado: Jesus de Nazaré. O que faz e diz é um escárnio, agravado pelo apoio de pastores de igrejas neo-pentecostais, cuja mensagem pouco ou nada tem a ver com o evangelho de Jesus.
Apesar desta infâmia, queremos celebrar a páscoa da ressureição que é a festa da vida e da floração como a do semi-árido nordestino. Após algumas chuvas, tudo ressuscita e reverdesse.
Os judeus, escravizados no Egito fizeram a experiência de uma travessia, de um êxodo da servidão para a liberdade em direção de “uma terra boa e vasta onde corre leite e mel”(símbolos de justiça e de paz: Ex 3,8). A “Pessach” judaica (Páscoa) celebra a libertação de todo um povo e não apenas de indivíduos.
A Pásscoa cristã se agrega à Pessach judaica, prolongando-a. Celebra a libertação da inteira humanidade pela entrega de Jesus, aceitando a injusta condenação à morte de cruz, imposta, não pelo Pai de bondade, mas como consequência de sua prática libertadora face aos desvalidos de seu tempo e por apresentar uma outra visão de Deus-Pai, bom e misericordioso e não mais um Deus castigador com normas e leis severas, fato inaceitável pela ortodoxia da época. Ele morreu em solidariedade para com todos os humanos, abrindo-lhes o acesso ao Deus de amor e de misericórdia.
A Páscoa cristã celebra a ressurreição de um torturado e crucificado. Ele fez a passagem e o êxodo da morte para a vida. Não voltou para a vida que tinha antes, limitada e mortal como a nossa. Mas nele irrompeu um outro tipo de vida não mais submetida à morte e que representa a realização de todas as potencialides presentes nela (e em nós). Aquele ser que vinha nascendo lentamente dentro do processo da cosmogênese e da antropogênese, alcançou por sua ressurreição tal plenitude que, enfim, acabou de nascer. Como disse Pierre Teilhard de Chardin, ele, plenamente realizado, explodiu e implodiu para dentro de Deus. São Paulo entre perplexo e encantado o chama de “novissimus Adam” (1 Cor 15,45), o novo Adão, a nova humanidade. Se o Messis ressuscitou, toda a sua comunidade, que somos todos nós, até cosmos do qual somos parte, participamos desse evento bem-aventurado. Ele é o “primeiro entre mutos irmãos e irmãs ( Rom 8, 29). Nós seguiremos a ele.
Apesar da “sexta-feira santa” do ódio e da exaltação da violência, a ressurreição nos infunde a esperança de que faremos a passagem (páscoa) desta situação sinistra para o resgate de nosso país, onde não haverá mais ninguém que ousará favorecer a cultura da violência nem exaltará a tortura, nem se mostrará insensível ao holocausto de milhões de pessoas. Aleluia. Feliz Páscoa a todos.
Leonardo Boff, téologo e filósofo, escreveu Paixão de Cristo-paixão do mundo”, Vozes 2005.


quinta-feira, 18 de abril de 2019

LÓGICA DO PODER




Por Frei Betto

       Uma observação de Voltaire (1694-1778) ressalta por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.

       Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.

       Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar ao trabalho de apurar se a informação procede.

       Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com a qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). E todos que não comungam o seu credo são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra.

       Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.
      
 Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia.

       É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt.

       A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem a menor ideia por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás (cf: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42193700).

       Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade para com povos que verão agravada sua situação de pobreza. Eles seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego.

       Esta a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e judeus; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto.

       Como frisou Bachelard (1884-1962), “quanta amargura há no coração de um ser que a doçura corrói.”

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
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