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quarta-feira, 24 de abril de 2019

A DIFÍCIL ARTICULAÇÃO ENTRE O JESUS DA FÉ E O JESUS DA HISTÓRIA.




Por Eduardo Hoornaert.

O Jesus da fé.

Sem dúvida, a pergunta fundamental acerca de Jesus continua sendo: Quem é Jesus para mim hoje? Onde encontro Jesus? Como? Eis a pergunta deveras mais importante. O primeiro escritor cristão, Paulo de Tarso, que começa a redigir suas cartas apenas vinte anos após a morte de Jesus, não demonstra interesse em conhecer a biografia de Jesus de Nazaré, mas vai direto ao âmago: quem é esse Jesus, que aprendi a conhecer entre militantes de seu movimento? O que ele traz para minha vida? A resposta de Paulo, que repercute por séculos: Jesus é liberdade, amor, universalismo. Eis o primeiro Jesus da fé.

O Evangelho de Marcos, escrito por volta do ano 70, procura igualmente fazer com que as pessoas descubram o Jesus da fé. Apresenta um Jesus que não quer atrair a atenção sobre si mesmo, mas que orienta as pessoas a viverem sua vida numa perspectiva de amor, perdão, liberdade, fraternidade, cuja alegria consiste em ver que as pessoas entendem sua proposta e a traduzem em ações concretas.

E assim, ao longo desses dois mil anos de cristianismo, inúmeras pessoas se fizeram a mesma pergunta: quem é Jesus para mim? O que ele significa na minha vida? O que ele tem a me dizer hoje, nas circunstâncias em que vivo? Onde o encontro? Na igreja, na missa, na prece, nos doentes acamados em corredores de hospital, na interminável fila de pessoas que procuram emprego, nos presídios, entre pobres, negros, indígenas, sem terra, sem teto, sem amparo, sem voz?

O Jesus da história.

O Jesus da fé tem de se articular com o Jesus da história, pois este constitui a condição indispensável para que se chegue a uma fé consistente. Há de se evitar, a todo custo, de firmar sua fé num Jesus imaginativo, produto da imaginação. Infelizmente, esse Jesus imaginativo funcionou ao longo de séculos por meio de imagens nem sempre justificadas. Assim se entende que, no século XIX, pessoas, como o francês Ernest Renan, começam a falar em ‘Jesus histórico’ e acabam criando um movimento consistente de pesquisa histórica, linguística, arqueológica. Hoje existem diversos centros em que se estuda o Jesus da história sem interferências por parte de confissões religiosas ou interesses políticos. Assim, por exemplo, o ‘Jesus Seminar’, fundado nos Estados Unidos em 1985 por Robert Funk e John Dominic Crossan, que hoje se constitui num espaço livre em que se discute o Jesus da história. Esse ‘Jesus Seminar’ já produziu excelentes resultados nos trabalhos de John Gager, John Kloppenborgh, Jonathan Reed, Marcus Borg, John Spong (bispo anglicano), Bart Ehrman, Karen Armstrong (ex-religiosa católica), Elaine Pagels, Luke Johnson, Reza Aslan (iraniano), etc. A Alemanha não deixa por menos e continua publicando textos fundamentais (por meio da Casa Editora Mohr Siebeck de Tübingen, por exemplo). A França perdeu espaço nesse terreno, enquanto a América Latina, até hoje, pouco contribui nesse campo.

A difícil articulação.

O que instigou pessoas como Ernest Renan a empreender estudos acerca de Jesus histórico? E por que esses estudos costumam encontrar oposição em ambientes eclesiásticos? A razão é simples: mais de dois mil anos nos separam do Jesus da história, do Jesus que atuou na Galileia.
Ao longo desse tempo todo, muita gente ‘mexeu’ com sua imagem. O escritor americano Jaroslav Pelikan publicou em 1985 um livro intitulado ‘Jesus through the Centuries’, publicado em São Paulo em 2000 (Cosac & Naify) sob o título: ‘A imagem de Jesus ao longo dos séculos’. Nele se mostra que a imagem Jesus passou pelas mãos de muita gente, foi muito ‘manipulada’. Há o Jesus do Império Romano, do Império Bizantino, das Cruzadas, da Inquisição, da colonização europeia, da reação contra essa colonização. Há o Jesus da libertação, da prosperidade, do sucesso nos negócios, da boa saúde, do bem-estar. Há o Jesus católico e o Jesus luterano, judeu e islamita, espírita, africano, indígena, feminista. Há mesmo um Jesus ateu. Na maioria dessas imagens não se percebe interesse em saber como Jesus viveu efetivamente, o que ele fez, o que disse, o que pensou. Pelo contrário, essas imagens, na maioria dos casos, revelam como instâncias interesseiras, sejam elas romanas, bizantinas, medievais, islamitas, católicas, protestantes, espíritas, ateias, apresentaram Jesus. Muitos teólogos se deixam levar por essas instâncias interesseiras, a tal ponto que se imaginaram e ainda hoje se imaginam um Jesus ‘conveniente’.

O fundamentalismo.

Você já percebeu onde quero chegar. Quero falar com você sobre o fundamentalismo.Quando um pregador, hoje, cita textos bíblicos para defender sua própria maneira de pensar, quando ele parte do pressuposto que a Bíblia e os Evangelhos estão de acordo com o que sua igreja prega e propaga, ele está sendo fundamentalista. Um professor meu, nos idos de 1954, certa feita, terminou a exposição de uma matéria do nosso curso teológico com as seguintes palavras: ‘Mais uma vez conseguimos provar que a Bíblia está de acordo conosco’. Não podia definir melhor o fundamentalismo. A Bíblia e os Evangelhos de acordo conosco.

Ora, atualmente, esse fundamentalismo virou uma onda crescente, que ameaça inundar os campos cristãos, em todas as denominações. Para dizer a coisa em toda franqueza: o que me motiva a escrever estas palavras é que nelas encontro uma oportunidade de refletir com você sobre o fundamentalismo reinante no Brasil e ponderar com você como erguer um dique contra esse tsunami. Pois, quando fundamentalistas estão no poder, toda a sociedade corre perigo.

Em muitos casos, o fundamentalismo não tem nome. Conto aqui um caso que ocorreu 17 séculos atrás. Você decerto já ouviu falar da ‘reviravolta constantiniana’. Diz-se que o próprio Imperador Romano, de nome Constantino, teria se convertido ao cristianismo. Acontece que, no ano 325, esse Imperador convoca bispos cristãos, provenientes de diversas regiões do Império Romano, a se reunir em sua Residência de Verão, situada num subúrbio de Bizâncio chamado Niceia. Uma surpresa total, pois seu antecessor Diocleciano havia deflagrado a mais cruel perseguição contra as comunidades cristãs. O novo Imperador, pelo contrário, se dispõe a ajudar os bispos a resolver determinados problemas de desunião existentes entre comunidades locais. Ele se apresenta com quem quer ajudar os bispos a unificar o movimento cristão. Será que essa é sua real intenção? Não será que ele pretende se valer das energias atuantes no movimento cristão para enfrentar problemas burocráticos de desunião a serem resolvidos na administração do Império, no sentido de tentar conglomerar imensos territórios, onde vivem as mais diversas etnias, sob sua única autoridade? Não será que a imagem do Cristo Único, apresentada nos mais distantes rincões do Império, lhe aparece apropriada a realizar seus intentos políticos unificadores?

Segundo as informações que possuímos acerca dessa assembleia episcopal (o concílio de Niceia), os bispos parecem mal perceber, por detrás das palavras e dos gestos de gentileza, as intenções reais do Imperador. Não é por menos. Eles, que chegam do interior, do mundo rural analfabeta, agora são recebidos com honrarias que nunca dantes receberam. Muito lhes impressiona a recepção por parte do Imperador e de dignitários de sua Corte. São homens do povo, agora tratados como se fossem Senadores do Império, com direito a honras militares e protocolares. Podemos presumir que entre eles haja analfabetos, pois a população em geral, naqueles tempos, é iletrada. É claro que eles se fazem acompanhar de secretários capazes de lidar com letras, ler as Escrituras Sagradas, falar a linguagem da Corte e redigir textos no devido estilo imperial. Mas os bispos mesmos ficam impressionados. Um deles, ao ver o Imperador conversando com seus colegas, exclama: ‘é o Cristo! O próprio Cristo está entre nós!’.

Há muitos outros exemplos de fundamentalismo ao longo da história do cristianismo, modos mais ou menos claros, mais ou menos patente, frequentemente ocultados, de se manipular a imagem de Jesus.

Em busca de Jesus de Nazaré.

É nesse sentido que, de uns anos para cá, costumo convidar pessoas a partir comigo para uma viagem no tempo, ‘em busca de Jesus de Nazaré’. Recentemente, publiquei um livro com esse título (Paulus, São Paulo, 2016). Gosto de convidar as pessoas a uma viagem em que se contemplam paisagens diferentes daquelas que estamos habituados a ver. Penetramos num mundo novo. Teremos de colocar, por enquanto, ensinamentos recebidos sobre Jesus entre parênteses, para dedicar toda a nossa atenção ao que observamos ao longo do caminho, talvez pela primeira vez. Certamente, não é por meio de uma reflexão de alguns instantes, pela leitura de um texto como este, que nossos questionamentos serão desnuviados. O que escrevo aqui não pode ser mais que um aceno para ir cavando, um convite para estudar em profundidade a articulação entre o Jesus da fé e o Jesus da história.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


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