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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

PALAVRAS DE PEDRO CRISTO DE CEREZO NO QUARTO DE PEDRO - 30.11.3022


 


Ainda há torturados

nos cárceres da noite.

Há desaparecidos

nos cúmplices silêncios.

 

Pedro Casaldáliga, do livro Casaldàliga de Joan Guerrero

Foto: Joan Guerrero

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A mais revolucionária proposta de Jesus

 Marcelo Barros


 

Nestes dias, de 11 a 15 de novembro, em Olinda e Recife, a Igreja Católica realizou o XVIII Congresso Eucarístico Nacional, reunindo milhares de pessoas em grandes celebrações, um simpósio teológico e outras atividades para aprofundar o sentido da Eucaristia. Os Congressos eucarísticos surgiram a partir do século XIX, em outro contexto histórico. Nasceram ligados à devoção eucarística e à preocupação de manifestar publicamente ao mundo a fé na presença de Jesus no pão consagrado. 

A partir do Concílio Vaticano II (1962- 1965), a Igreja Católica mudou a visão sobre a sua missão no mundo e o sentido da eucaristia. O Concílio nos fez aprofundar os evangelhos. Estes nos mostram que Jesus retoma a Páscoa judaica e a atualiza. Na Páscoa, como todo o povo de Deus, Jesus celebra a memória da libertação da escravidão do Egito, mas a radicaliza o mais que pode. Propõe a partilha do pão e do vinho, como expressão do mandamento novo que dá aos discípulos/as: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei” (Jo 13, 34).

Os apóstolos e muita gente do povo esperavam que ele cumprisse a função política de libertar Israel do domínio romano. Jesus frustrou essa expectativa. Centrou a sua atividade profética contra a religião ritual do templo e propôs uma libertação que não parte de armas e sim de uma transformação interior no modo de ser das pessoas e das culturas que suscita relações comunitárias de igualdade, comunhão de bens e cuidado recíproco.  

De acordo com os evangelhos, na noite em que seria preso e condenado, Jesus ceia com os discípulos e discípulas. Ali, revela o sentido profundo da entrega da sua vida e pede que ao partilhar o pão e o vinho na refeição, a comunidade faça a memória da Páscoa e aceite doar a sua vida.

Assim sendo, a veracidade da eucaristia não consiste apenas na fidelidade material ao rito. O gesto litúrgico deve corresponder à verdade da vida. Provavelmente, por isso, o quarto evangelho, no lugar de contar a instituição da eucaristia, descreve que, na ceia, Jesus lava os pés dos discípulos e manda que isso seja feito por todos, uns com os/as outros/as.

O Concílio Vaticano II recuperou a dimensão comunitária da eucaristia. Como dizia Santo Agostinho: o pão é o sinal da comunidade que é o corpo de Cristo. Hoje, cada vez mais a Igreja se dá conta de que a relação entre celebração e  vida é desafio permanente. Se a comunhão da eucaristia não leva às pessoas a um novo modo de organizar a vida, baseado na partilha,  a celebração perde muito da sua veracidade.

Este XVIII Congresso Eucarístico aconteceu em um momento do Brasil, no qual uma onda de mentiras e notícias falsas amedrontou comunidades católicas e protestantes com a ameaça do Comunismo. Pelo medo irreal de que templos sejam fechados e leis morais da Igreja desobedecidas, não poucos pastores e fieis deram ao mundo o triste testemunho de uma Igreja não amorosa e nada solidária com os mais empobrecidos. Provavelmente, muitos dos padres e católicos que se posicionam a favor do autoritarismo e da violência não percebem que essa cruzada contra o fantasma do comunismo contém uma postura extremamente anti-eucarística, já que é discrimanatória e pouco amorosa.

A eucaristia exige de nós o cuidado de não desligar o rito da proposta eucarística de Jesus que é a de um mundo renovado a partir do amor solidário, em uma sociedade sem armas e sem discriminações sociais, inclusiva e aberta a todos e todas. Ao escolher como tema deste Congresso “Pão em todas as mesas”, como canta uma de nossas mais belas canções, a Igreja Católica no Brasil assume a proposta feita pelo papa Francisco no 52º Congresso Eucarístico em Budapeste: “A celebração da Eucaristia deve gerar uma cultura eucarística, porque impele a transformar em gestos e comportamentos de vida a graça de Cristo que se doou totalmente. (…) A Eucaristia deve se traduzir em cultura eucarística, capaz de inspirar os homens e as mulheres de boa vontade nos âmbitos da caridade, da solidariedade, da paz, da família e do cuidado com a criação” (Cf. https://pontosj.pt/especial/por-uma-cultura-eucaristica/).

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.b


 

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O LEÃO E A ABELHA


 


 

Frei Betto

 

       Conta uma antiga história que o leão, ciente de ser o rei dos animais, passeava impávido pela selva e assustava todos com seu rugido ameaçador. A quem ousasse desafiar o seu poder, exibia os dentes afiados, o olhar sinistro, a bocarra aterradora. 

       O leão nutria seu orgulho com o olhar admirado de múltiplas espécies da fauna. Por onde passava a turba de víboras o aplaudia, como se ele fosse o Leão de Judá, o enviado de Deus.

       Só um detalhe incomodava o leão: a provocação da abelha ao anunciar a todos que, um dia, haveria de destronar o rei dos animais. Era inaceitável, para ele, que um inseto que lhe parecia tão insignificante ousasse desafiá-lo. O leão chegou a aprisioná-la, mas ela se livrou. Então, tentava abocanhá-la, mas a abelha, em voo certeiro, se evadia das mandíbulas assassinas e das agressivas patadas que cortavam os ares.

       Embora muitos animais julgassem o leão dotado de plenos poderes, ele bem conhecia seus limites: não podia voar como a abelha. Mas esta não era a única diferença. O leão babava sangue com seu insaciável apetite carnívoro, enquanto a abelha polinizava as flores e distribuía mel pela floresta. O doce da abelha conquistou, aos poucos, mais adeptos que a amargura do leão.

       Chegou o dia da eleição. Quem haveria de assumir o governo da selva? O leão estava absolutamente convencido de sua supremacia. Tinha o poder em mãos. Javalis, hienas, piranhas e escorpiões – animais muito perigosos – o apoiavam. E ele zombava da abelha respaldada por espécies que não ameaçam ninguém, não têm sede de sangue e são laboriosas, como a multidão de formigas que habitavam, sobretudo, o Nordeste da mata.

       Ao longo da campanha eleitoral, o leão fez de tudo para tentar desacreditar a abelha. Acusou-a de corrupta, bandida, mentirosa. A abelha, ao contrário, não proferiu inverdades sobre o leão, apenas destacou quão inoperante ele havia sido em seu governo e quantos inocentes morreram famintos e doentes, vítimas de seu descaso.

       Apurados os votos, a abelha venceu o leão. Inconformado e revoltado, o leão emudeceu engasgado pelo próprio ódio. 

       A abelha ignorou-o. Ovacionada pelos animais que encabeçavam governos de outras florestas, comprovou que a esperança vence o medo. Todos sabiam que, agora, já não haveria mais queimadas devorando as matas, poluindo o ar e calcinando animais, nem as águas seriam contaminadas pela sanha dos que abrem covas para explorar as riquezas do subsolo. 

       Moral da história: as alcateias  rugem, mas são as colmeias que, solidárias, produzem o que há de mais doce na vida.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O estranho dia de Zacarias” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

®Copyright 2022 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com

 

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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

PALAVRAS DE PEDRO - NORDESTE

Dom Pedro Casaldáliga





I. Podes não ter certas coisas

mas te sobra Humanidade

para encher todo o Brasil,

Nordeste,

coração de fora a fora!

 

II. Nordeste,

sacramento social

da nossa Igreja.

 

III. No Nordeste seco

há um Nordeste verde

teu Povo, Nordeste que quando -dá fruto

os Coronéis tremem!

 

Pedro Casaldáliga, Cantigas Menores

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

terça-feira, 15 de novembro de 2022

A mais revolucionária proposta de Jesus

 Marcelo Barros


 

Nestes dias, de 11 a 15 de novembro, em Olinda e Recife, a Igreja Católica realizou o XVIII Congresso Eucarístico Nacional, reunindo milhares de pessoas em grandes celebrações, um simpósio teológico e outras atividades para aprofundar o sentido da Eucaristia. Os Congressos eucarísticos surgiram a partir do século XIX, em outro contexto histórico. Nasceram ligados à devoção eucarística e à preocupação de manifestar publicamente ao mundo a fé na presença de Jesus no pão consagrado. 

A partir do Concílio Vaticano II (1962- 1965), a Igreja Católica mudou a visão sobre a sua missão no mundo e o sentido da eucaristia. O Concílio nos fez aprofundar os evangelhos. Estes nos mostram que Jesus retoma a Páscoa judaica e a atualiza. Na Páscoa, como todo o povo de Deus, Jesus celebra a memória da libertação da escravidão do Egito, mas a radicaliza o mais que pode. Propõe a partilha do pão e do vinho, como expressão do mandamento novo que dá aos discípulos/as: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei” (Jo 13, 34).

Os apóstolos e muita gente do povo esperavam que ele cumprisse a função política de libertar Israel do domínio romano. Jesus frustrou essa expectativa. Centrou a sua atividade profética contra a religião ritual do templo e propôs uma libertação que não parte de armas e sim de uma transformação interior no modo de ser das pessoas e das culturas que suscita relações comunitárias de igualdade, comunhão de bens e cuidado recíproco.  

De acordo com os evangelhos, na noite em que seria preso e condenado, Jesus ceia com os discípulos e discípulas. Ali, revela o sentido profundo da entrega da sua vida e pede que ao partilhar o pão e o vinho na refeição, a comunidade faça a memória da Páscoa e aceite doar a sua vida.

Assim sendo, a veracidade da eucaristia não consiste apenas na fidelidade material ao rito. O gesto litúrgico deve corresponder à verdade da vida. Provavelmente, por isso, o quarto evangelho, no lugar de contar a instituição da eucaristia, descreve que, na ceia, Jesus lava os pés dos discípulos e manda que isso seja feito por todos, uns com os/as outros/as.

O Concílio Vaticano II recuperou a dimensão comunitária da eucaristia. Como dizia Santo Agostinho: o pão é o sinal da comunidade que é o corpo de Cristo. Hoje, cada vez mais a Igreja se dá conta de que a relação entre celebração e  vida é desafio permanente. Se a comunhão da eucaristia não leva às pessoas a um novo modo de organizar a vida, baseado na partilha,  a celebração perde muito da sua veracidade.

Este XVIII Congresso Eucarístico aconteceu em um momento do Brasil, no qual uma onda de mentiras e notícias falsas amedrontou comunidades católicas e protestantes com a ameaça do Comunismo. Pelo medo irreal de que templos sejam fechados e leis morais da Igreja desobedecidas, não poucos pastores e fieis deram ao mundo o triste testemunho de uma Igreja não amorosa e nada solidária com os mais empobrecidos. Provavelmente, muitos dos padres e católicos que se posicionam a favor do autoritarismo e da violência não percebem que essa cruzada contra o fantasma do comunismo contém uma postura extremamente anti-eucarística, já que é discrimanatória e pouco amorosa.

A eucaristia exige de nós o cuidado de não desligar o rito da proposta eucarística de Jesus que é a de um mundo renovado a partir do amor solidário, em uma sociedade sem armas e sem discriminações sociais, inclusiva e aberta a todos e todas. Ao escolher como tema deste Congresso “Pão em todas as mesas”, como canta uma de nossas mais belas canções, a Igreja Católica no Brasil assume a proposta feita pelo papa Francisco no 52º Congresso Eucarístico em Budapeste: “A celebração da Eucaristia deve gerar uma cultura eucarística, porque impele a transformar em gestos e comportamentos de vida a graça de Cristo que se doou totalmente. (…) A Eucaristia deve se traduzir em cultura eucarística, capaz de inspirar os homens e as mulheres de boa vontade nos âmbitos da caridade, da solidariedade, da paz, da família e do cuidado com a criação” (Cf. https://pontosj.pt/especial/por-uma-cultura-eucaristica/).

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.b




 

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

PALAVRAS DE PEDRO - O poeta

 Dom Pedro Casaldáliga


 

“O poeta é a sua infância”.

E o menino Rilke soube disso.

 

Uma infância bem sonhada.

A que sonhou e não teve.

 

Todo poeta é um menino

que se nega a ser adulto.

 

Poderá crescer nele a barba

da ira ou do orgulho.

 

E cair-se-lhe aos pedaços

o coração já maduro.

 

Mas conserva os olhos

deslumbradamente puros.

 

Pedro Casaldáliga, O Tempo e a Espera

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#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz

terça-feira, 8 de novembro de 2022

A tarefa da Reforma a ser sempre retomada


Marcelo Barros


 

As recentes eleições no Brasil chamaram atenção do mundo inteiro para a importância do fator religioso na campanha de candidatos que se apresentaram como candidatos de Deus e de Igrejas, nas quais era mal visto quem não votasse de acordo com o indicado pelo padre ou pastor.

Nestas eleições que se concluíram neste domingo, enquanto mais da metade da população brasileira votava no presidente Lula por ver na proposta de sua candidatura a retomada da Democracia e maior cuidado com as categorias mais empobrecidas do povo, católicos e evangélicos tradicionalistas pediam a Deus ou a Nossa Senhora para libertar o Brasil da esquerda e do que chamam fantasmagoricamente de Comunismo. Deus deve ter se sentido como quando, na copa de futebol,  jogadores de dois times rivais fazem promessa para Deus dar a vitória ao seu time e Deus tem de escolher de qual time será torcedor.   

Na sociedade brasileira, a ingerência de Igrejas em eleições e na Política não é algo novo. Desta vez, a novidade foi o uso e abuso das redes sociais, assim como o fato de alguns pastores e padres se servirem de fake-news e mentiras deslavadas, sem nenhum escrúpulo ético ou religioso.

A aliança de grande parte de ministros e grupos eclesiásticos com a direita violenta revela atração de caráter quase erótico das  hierarquias pelo autoritarismo político e pelo sonho de retomar o poder sobre a sociedade.  

               A Igreja Católica chegou ao Brasil de braço dado com os colonizadores, em cujas fazendas mantinham capelães que legitimavam religiosamente a escravidão de negros e índios. Com pouquíssimas exceções, bispos e padres sempre apoiaram reis e senhores. Nas primeiras décadas do século XIX, quando quase todos os países do continente já eram independentes, o papa ainda publicava bulas que obrigavam os católicos latino-americanos a se submeterem aos reis de Espanha e Portugal.

              Na segunda metade do século XIX, vieram Igrejas evangélicas. Traziam na bagagem uma cultura típica do sul dos Estados Unidos: racista, escravocrata e favorável à supremacia branca de perfil protestante. 

              Até meados do século XX, no Brasil, era normal os bispos católicos  indicarem candidatos para o povo votar e a Liga Eleitoral Católica (LEC) dizia em quem os católicos não podiam votar.

Na década de 1960, vários países do continente viveram sob ditaduras. Com algumas exceções, as autoridades eclesiásticas apoiaram os militares contra o fantasma do Comunismo, com os mesmos argumentos que, ainda hoje, muitos padres e pastores usam para apoiar a extrema direita. Nada de novo debaixo do sol. A única novidade é a acirrada competição entre grupos católicos tradicionalistas e comunidades pentecostais e evangélicas de tendência fundamentalista para ver quem consegue reimplantar no Brasil um regime de Cristandade.

Em 2019, a parábola do filme “Divino Amor” do cineasta Gabriel Mascaro previa para 2027 um Brasil evangélico, dominado pela Igreja do Divino Amor. A festa do Carnaval tinha sido abolida e a única religião permitida era a seita do Divino Amor, que reduzia Deus às conveniências sociais, econômicas e também sexuais dos ministros eclesiásticos.

Do mesmo modo, vários grupos católicos lutam com unhas e dentes para serem eles a impor o Brasil católico do jeito deles e em nome de Jesus. Como canta sarcasticamente o grupo teatral “Companhia do Tijolo”: Jesus manda dizer que não gosta de marcha para Jesus. Prefere os atabaques e o ritmo dos terreiros. Não rejeita uma cervejinha com amigos no bar da esquina, como fazia no tempo em que convivia com as pessoas que os religiosos do templo julgavam como infiéis e de vida errada.

Agora, precisamos de profetas e profetizas que recordem aos interessados: Deus não assinou contrato de exclusividade com ninguém. A este novo tipo de doutores da lei e sacerdotes dos novos templos de Salomão ou de Malafaias, sejam pentecostais, sejam católicos, Jesus repete o que disse aos antigos fariseus: “Em verdade, vos digo: os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão antes de vós no reino de Deus” (Mt 21, 31).

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.b

 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

VOTANDO COM SENTIDO

Maria Clara Bingemer


 

            Acordei na segunda feira, 31 de outubro de 2022, com  a sensação de espanto e a surpresa dos sobreviventes. As eleições haviam acontecido e o Brasil tinha novo Presidente.  O ar parecia mais puro e era possível respirar.  O medo se fazia longínquo e a vida retomava seu curso.  Lula era o presidente. 

            O tempo que precedeu esta segunda-feira foi de muita dor. O estresse era geral e agudo.  As pessoas viviam tensas  e  amedrontadas.  E de que tinham medo?  Que o pesadelo que já durava quatro anos continuasse.  E seguisse.  E se perpetuasse.  

            As mensagens de ódio e violência se sucediam na internet, amigos rompiam relações, familiares se afastavam.  A divisão – sinal claro e inequívoco segundo a Bíblia cristã do sufocamento do Espírito da paz, da alegria e do amor – reinava impune, separando, fragmentando e destruindo. 

            Na véspera do pleito, o fôlego e o alento eram artigos raros, luxo para poucos.  A ansiedade fazia o ar espesso e irrespirável.  Nada parecia fazer sentido na angústia de não dar certo o imenso esforço de tantos para superar o momento vivido que se arrastava. O horizonte em vez de aproximar-se, fazia-se mais distante e fugidio. O desânimo se agigantava e crescia a letargia que não permitia esboçar sequer um gesto, um suspiro, pronunciar uma palavra. 

À noite, decidida a tentar dormir, fui olhar pela última vez o computador. Ali tudo mudou.  Li as palavras: “Honre os mortos com seu voto”.  “Vote por eles e por elas”.  “680 mil pessoas não são um número.” E tudo começou a fazer sentido. Não, não era possível que tudo aquilo tivesse sido em vão.  Não era possível que o desprezo  e o pouco caso que foi cuspido em cima da dor de mães, de filhos e filhas, de irmãos e irmãs, pudessem vencer.  Não era possível que os mortos que não puderam ser chorados e homenageados permanecessem insepultos e que sua memória fosse uma e outra vez pisoteada e escarnecida pela insensibilidade cruel que tomou conta do país durante e após a pandemia, ceifando, além de vidas, a dignidade e a honradez dos sobreviventes. 

O que foi dito ao profeta Ezequiel diante dos ossos ressequidos em que se tinha transformado a casa de Israel enquanto atravessava o exílio foi repetido a meus ouvidos: “Filho do homem, poderiam esses ossos retornar à vida?”  Sentia-me tão desprovida de fé quanto o profeta, mas a pergunta era insistente. E o coração escutava mais que os ouvidos. 

Foi então que aconteceu uma profunda comunhão.  Eu não estava mais sozinha, debatendo-me com um voto em cuja eficácia não acreditava.  Comigo estavam eles e elas.  O padre jovem e dedicado, colega de docência, que morreu logo no começo da pandemia porque não abriu mão de distribuir alimento para os pobres de sua paróquia.  A mãe da amiga que disse à filha na porta do hospital “Fala para seu pai não se preocupar não.  Já já volto para casa”.  E nunca mais foi vista nem ouvida pelo esposo desolado e pela filha em prantos.  A menina de 15 anos que a televisão mostrou em foto, ao mesmo tempo em que revelava o desespero dos pais ao saber que não havia resistido ao vírus. 

Estavam igualmente os médicos cuja face já fazia uma unidade indissolúvel com a máscara cirúrgica e que, às vezes,  não suportavam e choravam.  Ou caíam doentes eles também. E eram levados junto a seus pacientes para o misterioso país das lágrimas, deixando atrás o grito de dor e o desespero impotente dos seres queridos. Estavam todos, uns e outros, eles e elas.

E os que queriam abrir os caixões, os que se debruçavam sobre eles, fechados sobre os rostos amados.  E os que sufocavam em Manaus enquanto o oxigênio não chegava.  E os que se deitavam no chão das enfermarias porque leitos não mais havia.

E a enfermeira Mônica, que qual nova Eva, deu à luz a esperança, filha menor do Bom Deus ao receber em seu braço a primeira picada salvadora da vacina graças à teimosia de um governador que enfrentou as forças do mal.  

Votar por eles e por elas.  Com eles e com elas.  Isso tinha sentido, fazia todo sentido. Realizar o gesto de pressionar a tecla que se uniria a tantas outras e que significaria o fim da barbárie e a nova estação da liberdade e do cuidado com a vida. Os mortos não eram destinados à cova escura  como pretendia o discurso abominável de quem os tratou com desdém e frieza.  Estavam vivos e eram multidão.  Eles ganharam essa eleição.  O Brasil nunca poderá pagar a dívida que com eles contraiu. 

O Deus da vida que permitiu aos ossos dos israelitas exilados readquirir força e vigor fez ouvir sua voz e sentir a força de seu braço no Brasil.  “ Ó meu povo, vou abrir os vossos túmulos;...Sabereis, então, que eu é que sou o Senhor, ó meu povo, quando eu abrir os vossos túmulos e vos fizer sair deles, quando eu colocar em vós o meu espírito para vos fazer voltar à vida...”

Com todos esses filhos do povo brasileiro, votamos com sentido.  Que o Senhor da vida nos permita, a partir de agora, viver com sentido, experimentando em nossa boca o agridoce sabor da liberdade e reconstruir a memória e a alma desta combalida nação. 

 

                                                           

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora

de O protagonismo dos leigos na evangelização atual (Ed. Paulinas), entre outros livros.


Copyright 2022 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 



Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com

domingo, 6 de novembro de 2022

Inquietantes distúrbios mentais no Brasil de hoje.

 Eduardo Hoornaert.


 

Celebrou-se a vitória eleitoral de Lula, no dia 30 de outubro passado. Mas, todos e todas sabemos que ele ganhou por um triz e que a ameaça bolsonarista perdura. Não poucos analistas se limitam a qualificar o bolsonarismo de fascismo e autoritarismo. Será suficiente? Isso toca na raiz da questão? Não há de se cavar mais fundo? Neste texto, apresento alguns pontos para a reflexão. E, como sempre, recorro a observações de ordem histórica.  

 

O dia 20 de fevereiro de 1933 na Chancelaria do Reich alemão.

 

O dia 20/02/1933, na Alemanha, especificamente em Berlim, é uma memória raramente evocada. Contudo, trata-se de um dia de grande significado para quem quer ir mais fundo em problemas que nos afligem hoje.

Naquele dia, 24 senhores entram no edifício da Chancelaria alemã em Berlim, a convite de German Goering, ministro do Chanceler Adolf Hitler. Alguns nomes nos são conhecidos: Carl von Siemens (conglomerado industrial que abrange diversos setores), Wilhelm von Opel (marca de um automóvel de grande qualidade), Gustav Krupp (aço, armas, munições), Albert Vögler (munições). Esses senhores, com seus pares, representam, pois, as mais poderosas empresas industriais e comerciais do país: BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Goering toma a palavra e explica que a proposta de ‘redenção da Alemanha’ necessita de dinheiro, muito dinheiro. Se não, fracassa. E vai direto ao que interessa: os 24 senhores são convidados a fazer doações. Depois, Hitler fala e diz mais ou menos o mesmo. Por fim, os industriais formam um fila, se aproximam do guichê e fazem suas doações (Éric Vuillard, L’ ordre du jour, Actes Sud, 2017).

Eis um daqueles raros momentos em que a história expõe suas vísceras. Fica claro: Hitler, sem o apoio financeiro desses exatos 24 senhores, e do que eles representam, não pode prosperar.

Deu no que deu. Hitler fracassa. O estranho é que, após o clarão de veracidade que se abriu em 20/02/1933, a pesada cortina de mentira, circunlocução e ocultamento baixa de novo sobre a evidência da colaboração fundamental das grandes empresas alemães, que entre 1933-1945 não hesitaram em recorrer a mão de obra escrava (presos dos campos de concentração) para aumentar seus lucros. Em 1945, enquanto Hitler desce aos infernos, seus financistas sobem aos céus. Não são cobrados. Pelo contrário, no após-guerra, no período de reconstrução da Alemanha, ganham aplausos de todo canto e experimentam um crescimento sensacional. A empresa Volkswagen, por exemplo, criada no reboque do combinado em 20/02/1933, faz rodar seus carros pelas estradas do mundo.

 

Um ataque à inteligência.

 

O exemplo que acabo de evocar tem muito a ver com a atualidade. O projeto Hitler 1933 e o projeto Bolsonaro 2018-22 têm, pelo menos, um ponto em comum: a aliança com o grande capital, com o anseio irresponsável por lucro acima de tudo. E, digamos logo a palavra: com capitalismo. O que precisa compreender, pois, é que o capitalismo constitui um ataque à inteligência humana.

Os 24 senhores alemães, de 20/02/1933, no íntimo, desprezam Hitler, mas enxergam nele uma oportunidade para aumentar seus negócios e ganhar mais dinheiro. O mesmo se diga dos mega-empresários brasileiros. Eles desprezam Bolsonaro, mas não hesitam em apoiá-lo politicamente. Por uma razão óbvia: com ele há como ganhar mais dinheiro que com Lula. Acontece que esses grandes empresários esquecem uma coisa: o capitalismo se vinga deles, tirando-lhes a lucidez e levando-os a um labirinto donde não conseguem mais sair.

 

Para esclarecer esse ponto, recorro ao pensador sul-coreano Byung-Chul Han, que nasceu em Seul, Coreia do Sul, em 1959, e foi para a Alemanha, onde ganha hoje uma audiência e uma visibilidade crescentes. A tese de Byung-Chul Han, bastante inovadora, é que o capitalismo ataca nossa capacidade de refletir. Cito aqui um texto seu, tirado de seu livro Capitalism and the Death Drive (Capitalismo e pulsão de morte).

O que costumamos chamar ‘progresso’ é na realidade um crescimento tumoral, uma proliferação cancerosa no organismo social. Esses tumores passam por metástases sem fim e crescem com uma inexplicável energia mortífera. Num determinado ponto, o crescimento capitalista não é mais produtivo, mas antes destrutivo. O capitalismo, desde bastante tempo, ultrapassou esse ponto. Suas forças destrutivas não só causam catástrofes ecológicas e sociais, mas provocam igualmente colapso mental. A compulsão destrutiva causa, ao mesmo tempo, afirmação de si e destruição de si. Nós nos aperfeiçoamos para a morte. Pois, competição brutal termina em destruição. Ela produz uma frieza emocional e indiferença, tanto diante de outros quanto diante de si mesmo. As consequências devastadoras do capitalismo fazem pensar que, aqui, uma ‘pulsão de morte’ esteja atuando. Inicialmente, Freud hesitou em introduzir ‘pulsão de morte’ em suas análises, mas, com o tempo, ele admitiu que ‘não podia deixar de considerá-la’, e ela se tornou gradativamente central em seu pensamento. Hoje fica impossível pensar sobre capitalismo sem tomar em consideração a pulsão de morte.

Eu mesmo abordei brevemente esse tema num texto recentemente publicado pelo Blogger, intitulado ‘Pulsão de vida e pulsão de morte no Brasil de hoje’.  O capitalismo provoca doença no sistema mental humano. Uma doença que pode levar à morte (de outros e de si mesmo). Os textos de Byung-Chul Han são um chamado à resistência frente a fenômenos como a produtividade sem limites e a servidão consentida, realidades contemporâneas que estão nos deixando doentes.

 

 

 

 

 

 

Embora a obra de Byung-Chul Han já seja aclamada em ambientes intelectuais, ainda não se popularizou o suficiente.

 

Cito mais um trecho de sua autoria: Quem fracassa na sociedade capitalista do rendimento, se acha responsável por isso e se envergonha, em vez de questionar a sociedade ou o sistema. É nisso que consiste a especial inteligência do regime em que vivemos: na auto-exploração. A pessoa direciona a agressão a si mesma. Essa auto-agressividade não transforma o explorado em revolucionário, mas em depressivo. Depressivo e potencialmente agressivo.

Por que os caminhoneiros, que, logo depois das eleições do dia 30 de outubro pp., provocaram uma parada ao longo de grandes estradas brasileiras, falam com tanto aprumo que ‘não podemos aceitar o resultado das urnas, porque tudo foi manipulado’, ‘lutamos pela democracia’, ‘lutamos por nossas famílias’, ‘combatemos a imoralidade’, ‘não apoiamos um condenado pela justiça’, ‘somos democratas’, ‘somos de Jesus’, ‘somos contra a imoralidade’, ‘defendemos nossas crianças’, ‘os esquerdistas são bandidos’? Frases que podem ser questionadas, uma por uma, mas que passam por ‘verdades eternas’, na defesa de ‘Deus, família, liberdade e propriedade’.

 

A máscara do progresso.

 

O que os caminhoneiros em greve parecem não perceber, é que o capitalismo costuma andar mascarado. E que uma de suas máscaras mais usadas e a do ‘progresso’. Aqui vou de novo para a história.

 

Em 1949, no primeiro discurso oficial da história transmitido pela televisão, acompanhado por milhões de pessoas ao mesmo tempo, o Presidente americano Harry Truman (1945-1953) passa da clássica narrativa de um Ocidente que tem a missão de civilizar e evangelizar (leia: colonizar) o Sul Global, para um discurso novo. Ele diz que, doravante, os Estados Unidos e a Europa Ocidental (os países ricos) recebem a missão de se tornar modelos para o resto do mundo em termos de ajuda humanitária, caridade, altruísmo e generosidade. É, em germe, a narrativa progressista, desenvolvimentista. Truman distancia-se do discurso colonialista, mas de maneira nenhuma fala em justiça entre os países do Norte e suas antigas colônias. Não toca no nexo causal entre a riqueza do Norte e a pobreza do Sul. Ele fala de uma nova missão ‘divina’, a substituir o domínio colonial de séculos. Uma missão de generosidade e abertura. O Norte tem de ‘impregnar’ o mundo de ajuda humanitária e de democracia. O discurso corresponde ao estado dos espíritos após da Segunda Guerra Mundial. Apresenta-se como moderno e atrativo. Ganha corações e mentes. Todo mundo fala em desenvolvimento e progresso. Expressões que, até hoje, não desapareceram do vocabulário.

Um resultado concreto da fala de Truman é a criação da Organização Mundial do Comércio (WTO em inglês), baseada numa distinção entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países subdesenvolvidos’ (ou, de modo mais elegante: ‘em desenvolvimento’). Os Estados Unidos constituem o país ‘desenvolvido’ por excelência. Representando hoje apenas 4,2 % da população mundial, pode tomar a dianteira, pois é ‘desenvolvido’. O mesmo se diga dos G7, os sete países mais ‘desenvolvidos’ do mundo: EEUU, Inglaterra, Canadá, Alemanha, França, Itália, Japão, embora só representem 7 % da população mundial. Subdesenvolvidos (ou ‘em processo de desenvolvimento, portanto afastados de organismos decisórios) são os BRICs (China, Índia, Rússia, África do Sul, Brasil), que representam 40 % da população do mundo. Ninguém percebe o absurdo da classificação, feita por Truman, pois logo se justifica: se o Sul Global não se ‘desenvolve’, é porque lida com má administração de recursos públicos, corrupção, organização insuficiente e influência de ideologias perversas (leia: comunismo). Criam-se termos que circulam pelo mundo: ‘primeiro mundo’, ‘terceiro mundo’, ‘mundo desenvolvido’, ‘mundo subdesenvolvido’.  Evidências estatísticas a demonstrar que o esquema de Truman não corresponde à realidade, como a que apresentei acima, são contornadas ou camufladas.

Essa camuflagem, por si só, já denota distúrbios mentais inquietantes.  Não se mostra que países ricos se distanciam sempre mais de países pobres; que um minúsculo grupo de riquíssimos controla a economia, a política e a religião; que a maioria da população fica sem voz e sem vez. O tema da igualdade de direito entre todos os seres humanos é cuidadosamente afastado dos debates. Pois o mundo é desigual ‘por natureza’ (uma tese já defendida pelo velho Aristóteles) e, portanto, falar em igualdade entre países é algo subversivo. Pois a pobreza é um dado da natureza (o ‘servus ex natura’ da doutrina aristotélica). O discurso se baseia numa interpretação social e política do evolucionismo de Darwin: na ‘struggle for life’ vencem os mais fortes, desfalecem os mais fracos. 

Nas mesas de negociação volta, invariavelmente, a mesma recomendação: que os países ‘desenvolvidos’ deem as mãos aos ‘países em desenvolvimento’. Uma recomendação que, concretamente, resulta em contribuições monetárias. Propõe-se que os países ‘desenvolvidos’ reservem uma porcentagem dos impostos para organizações oficiais que se ocupem em fazer chegar o dinheiro ao seu devido destino e encontrem a melhor aplicação. Isso significa, numa mentalidade desenvolvimentista: mais estradas, mais automóveis, mais viadutos, mais aviões, mais aeroportos. Dinheiro tem de rolar. Milton Friedman, o papa do desenvolvimentismo, diz em 1970: temos de combater o subdesenvolvimento por meio do mercado. Outro ícone da época, Robert McNamara, faz eco: a agenda dos pobres postula transferências monetárias. Em que direção? Estudos mostram que, em troca de cada dólar doado ‘para o desenvolvimento’, 24 dólares vão para os países ricos.

 

Não somos imunes.

 

Ninguém está imunizado contra o ‘vírus’ capitalista. Pois ele atua nos interstícios da vida política, social e cultural. Todos e todas corremos o perigo de não enxergar o outro, a outra. E isso é sinal de doença mental.

 

O ‘outro’ é um conceito em crise.  Quanto mais iguais somos, mais a produção capitalista aumenta: ‘Agro é top!’. O único lema: ‘igualar’. Quando uma notícia ‘viraliza’ e enche os celulares, aumenta o poder dos ‘influenciadores’.  O vírus se espalha por meio do desejo de pertencer a um coletivo que marche em uníssono. Pois a ‘diferença’ é contrária aos objetivos do capitalismo. Todos e todas com seus smartphones. Sem isso, o mercado é prejudicado. Isso leva a um conformismo radical, uma enorme passividade, que reduz o ser humano à condição de cliente ou de produtor. Eis uma realidade que atinge a todos e todas, que sejamos bolsonaristas ou lulistas. Ninguém está imune.

 

Uma luz que nos vem do passado: Bandung 1955.

 

Uma luz, num passado bastante distante, brilha no horizonte. Refiro-me ao ‘Encontro Internacional sobre Desenvolvimento’, realizado em Bandung, Indonésia, entre 18 e 24 abril 1955, do qual participaram representantes de 29 países da Ásia e da África (A América Latina não participou). Bandung 1955 é um sopro de pensamento saudável em meio de um mundo gradativamente entregue a doenças mentais. Após 67 anos, Bandung continua na frente, pois – pelo que me consta – não se realizaram outras iniciativas internacionais com a mesma clareza nos posicionamentos.

A originalidade desse encontro consiste numa inversão total de perspectiva em relação a conflitos mundiais, expressa nas seguintes palavras: o problema do mundo não consiste na oposição entre o Ocidente e o Oriente, mas entre o Norte e o Sul. A contradição do mundo não se origina na oposição política entre um Oeste capitalista e um Leste socialista (como divulga a grande imprensa ao lançar o tema da ‘guerra fria’), mas da exploração econômica do Sul negro ou mestiço, moreno e pobre, pelo Norte branco, rico e poderoso.

A linguagem do Encontro na Indonésia é um sinal de inteligência saudável em meio a um universo de meias-verdades, circunlocuções, diplomacias e hipocrisias. Enfim, em meio a sinais claros de distúrbios mentais.

 

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.