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sábado, 31 de outubro de 2020

VASO DE ARGILA

 


 


Padre Fabio Potiguar Santos

 

“Capricha bem, porque hoje vem um convidado do céu almoçar com a gente”. Estava de férias na Bolívia e fiz muitas visitas aquela gente querida que me chamava de “padrezito”. Uma família em particular estreitou laços. Num domingo passei o  dia todo como os Mansillas. Fabrício, na época com quatro anos, assistia como protagonista a gente falar de Deus,  partilhar em família o evangelho, dar benção neles e na casa...   alguns dias depois voltei e, ele saiu com essa para a cozinheira: “Capricha bem, porque hoje vem um convidado do céu almoçar com a gente”. 

Esse menino percebia por trás da minha humanidade algo de sagrado e divino: um convidado do céu. Um homem como os pés bem no chão, mas também com asas debaixo dos braços e sapatos com pó de nuvens. Assim veem as crianças, seja o pajé na tribo, o pastor no culto ou o padre na missa.

 Cada um de nós talvez seja essa mistura aí de homem com anjo, ou se preferir, essa unidade. Parece que os padres de uma maneira especial – se a pessoa é católica – por causa do mistério e ministério sacerdotal que lhes foi gratuitamente concedido por Deus a serviço da Igreja, da Humanidade e do Cosmos, carregam essa árdua e alegre missão de serem sacramentos de Deus.

 O padre é outro Cristo. No dia de sua ordenação sacerdotal, Deus  ungiu-o com o óleo do Espírito, configurando-o ao Cristo Sacerdote. O padre é e está no mundo para com a Comunidade viver, celebrar e anunciar a páscoa de Jesus até que Ele volte.

Ser padre é um presente inefável de Deus para com a pessoa e a comunidade. Todavia, “ninguém atribua a si mesmo essa honra, ela é recebida como puro dom de Deus” (Hb 5,4 ).

 Gostaria ainda de partilhar com você, irmã ou irmão, que mesmo sendo esse convidado do céu, o padre é extremamente humano.  “Todo sacerdote, com efeito, tomado dentre os homens, é constituído em favor dos homens no que respeita às suas relações com Deus. Sua função é oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. É capaz de ter compreensão por aqueles que ignoram e erram, porque ele mesmo está cercado de fraquezas e é acometido de todos os lados pela fraqueza. Por causa dela deve oferecer, tanto em favor de si mesmo como do povo, dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5,1-3 ).

 Muitas vezes caímos na ilusão de uma imagem do sacerdote como se fosse um extraterrestre, um super-herói, alguém sem limites, sem pecado.  Ledo engano, ele é igual a um de nós, cercado de fraquezas e acometido de todos os lados pelas fraquezas de sua condição humana. Eu prefiro assim, me aproximar  de alguém que me aproxima de Deus por um caminho humano, de alguém fraco como eu experimentado na força de Deus manifestada em nossas fraquezas, pecados e infidelidades. Sua palavra e amor não será de alguém que olha de cima para um pobre pecador lá em baixo, mas de um pecador para um pecador, de um homem para outro homem. Ambos pecadores amados, perdoados, curados e remidos pelo Senhor.

Talvez alguém preferisse um sacerdote desumanizado. Eu vou para aquele onde me encontro de igual para igual, e não obstante, me comunica o perdão de Deus, seus sacramentos, suas bênçãos e nos dá a Palavra e a Eucaristia. Ele é capaz de ter,  com conhecimento de causa, compreensão dos fragilizados como eu, pois ele também está cercado de fraqueza.

 A verdadeira santidade cristã não é a dos heróis e dos fortes. A vida dos santos canonizados pela Igreja passa pela experiência da fragilidade, da pobreza, do pecado, e em alguns, até mesmo da depressão. E mais do que nas vidas dos santos, é na existência humana do próprio Jesus, mais do que em ninguém, que esse drama acontece, com exceção do pecado. E foi justamente no encontro com um Deus verdadeiramente homem, Jesus de Nazaré, o homem verdadeiramente  Deus,  que suas vidas foram transfiguradas. Na fragilidade se experimenta a força, na pobreza a riqueza de suas graças, no pecado a misericórdia, na depressão a cura e o consolo.

Está bailando agora em minha mente algumas passagens daquele existencialista cristão da Igreja em sua primeira hora, um homem de nome Paulo.  Ele escreveu quase a metade do Novo Testamento. Suas passagens passam em mim.  Deixe passar também em você, talvez elas possam lhe ajudar.

 Fraqueza, pobreza e pecado.

 Sou fraco. Na minha fraqueza encontro Jesus. “Por certo, ele foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus. Também nós somos fracos nele, todavia com ele viveremos pelo o poder de Deus”. ( 2 Cor 13,4 ). Podemos até pensar que ser cristão é ser forte e inabalável. Mas eis que  na minha carne e na sua, no meu e seu espírito de um homem cristão, vivenciamos a debilidade da nossa carne e do nosso espírito. Fico cansado, adoeço, me faltam as forças, caio,  me sinto incapaz, peco. Contudo a fraqueza esconde um segredo: somos fracos Nele. A nossa união mística com Cristo crucificado nos faz viver não de nossas forças, que nos faltam, mas do poder de Deus. E o poder de Deus emerge com toda a sua intensidade quando fraquejamos. “Basta-te a minha graça,  pois  é   na   fraqueza   que   a  força  manifesta   todo   o   seu   poder” ( 2 Cor 12,9 ).  É paradoxal. O evangelho está cheio de paradoxos!  É importante observar que não há mágicas. Não é a fraqueza transformada em força. Isso pode também acontecer e é  muito bom quando acontece. Essas palavras do Senhor ao apóstolo evidencia não ser necessário que cesse o estado de fraqueza, pelo o contrário, é nesse estado que a graça atinge a perfeição.

A santidade é frágil. “Carregamos esse tesouro em vasos de argila” (2 Cor 4,7).

 Sou pobre. Sinto necessidade. Sou um ser faminto, sedento e carente. No mundo contemporâneo, da auto-suficiência, do consumismo,  do isolamento, da não pertença,  não nos agrada muito o reconhecer-se  necessitados. Mesmo não me agradando,  deparo com a realidade de ser o homem um ser essencialmente necessitado. Nossa natureza humana é exatamente a de sermos necessitados dos outros e de coisas: família, amigos, sociedade, religião, etc. O outro é imprescindível para minha sobrevivência.   Essa pobreza essencial não é uma faceta do meu ser, é toda a minha existência, é o meu  próprio ser. Eu sou radicalmente pobre. Num dos primeiros capítulos desse livro conversávamos da sede e fome de Deus. Ele é o totalmente Outro, o Ser Necessário para mim um ser necessitado. Essa busca desenfreada de prazer e bem-estar, a nossa atração por aquilo que é bom e belo, é na verdade uma busca inconsciente de Deus.

 Sou pobre. Na minha pobreza encontro Jesus. “Nós conhecemos a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que por causa de nós se fez pobre, embora fosse rico, para nos enriquecer com a sua pobreza”( 2 Cor 8,9 ). Deus nasceu e viveu no mundo não como se esperaria que um deus vivesse. Escolheu a pobreza da existência humana para, com sua pobreza, proporcionar à pobreza de todos, por quem se fez pobre, a riqueza eterna da redenção. Nos enriquecer com a sua pobreza. Jesus, Deus Filho feito homem, despojou-se de sua divindade e quis compartilhar a pobreza de nossas necessidades, nossos sofrimentos e nossa morte, para nos enriquecer da graça do amor divino. A graça do amor divino nos humaniza plenamente e, assim como homem pleno, somos divinizados. Não há dicotomia ou dualismo. Só sou plenamente humano quando sou plenamente divino e, sou plenamente divino quando sou humano em sua inteireza.

 Na pobreza extrema de Jesus a minha pobreza radical encontra as delícias das riquezas profundas. Ele é o tesouro escondido no campo encontrado pelo camponês. A pérola preciosa de maior valor. O presente de Deus para a humanidade e o cosmos.  Cristo é o bem que necessitamos. Ele é o cumprimento da profecia do salmista: “Transborda um poema do meu coração; vou cantar-vos, ó Rei, esta minha canção; minha língua é qual pena de um ágil escriba. Sois tão belo, o mais belo entre os filhos dos homens! Vossos lábios espalham a graça, o encanto” ( Sl 44,2-3 ). Cristo é a expressão do ser de Deus, quem o viu, viu o Pai. Ele é a Imagem do Deus invisível. O essencial é invisível aos olhos, sentenciou a raposa ao Pequeno Príncipe.    Cristo é a beleza atraente e fascinante que buscamos. Cristo é o evento da humanidade. Nele somos curados da cegueira dos nossos corações. É a partir desse acontecimento crístico que abrimos os nossos olhos para ver o bom e o belo. Com os olhos do coração curados contemplo a bondade e a beleza de Deus, do homem e da mulher, das artes e das coisas, da natureza e do espaço sideral e a minha própria beleza.

“Sou pobre e desvalido, porém guarda o Senhor minha vida, e por mim se desdobra em carinho” ( Sl 39,17 ). Deus é o Ser Necessário para mim um pobre ser necessitado.

Sou pecador.  O bom e belo me atraem. Todavia, sou atirado muitas vezes por uma falsa beleza e arrastado por um mal sob as aparências de bem. “Não faço o bem que eu quero, mas o  mal  que  não quero” ( Rm 7,19 ).  Há uma luta e uma peleja interior. Caímos derrotados. Peco contra Deus, os meus irmãos, o meio ambiente e contra  mim mesmo. No meu pecado encontro Jesus. “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que por ele, nos tornemos santos de Deus” ( 2 Cor 5,21 ). Como somos fracos nele, e em sua pobreza somos enriquecidos, assim também, é por Ele que se fez pecado, que somos perdoados e santificados. Na sua humanidade e na cruz, Jesus carregou o peso de nossas dores e de nossos pecados. Deus tornou Cristo solidário com o gênero humano pecador, a fim de tornar os homens solidários com o sacrifício livre, voluntário, consciente e amoroso  de Cristo na cruz. “Sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destruído esse corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado” ( Rm 6,6 ).

Não sirvamos mais o pecado. Todavia, pecamos. A resposta está naquele “já”  e  “ainda não”  vistos anteriormente. Também o pecado esconde um segredo: “Onde abundou o pecado, a graça superabundou” ( Rm 5, 20 ). Assim como a força manifesta todo o seu poder na fraqueza, do mesmo modo a misericórdia manifesta todo o seu amor  onde o pecado avultou. É mais forte a minha  experiência mística do amor de Deus que perdoa todos os meus pecados,  por maior que sejam, do que a êxtase espiritual, a oração em línguas, as visões, os dons e carisma. Nesta eu posso me iludir de que Deus me ama porque eu o amo, porque eu sou bom e santo; na outra, experimento que Deus me ama porque me ama.  Deus ama não é porque eu o amo, mas porque Ele me ama; Deus me ama não porque eu sou bom, mas por que Ele é bom. Deus me ama não porque eu sou santo, mas porque Ele é santo.

 A gente costuma dizer que “Deus escreve certo por linhas tortas” ou ainda, “há males que vem para o bem”. O pecado pode se transformar numa lição onde eu vou aprendendo com os meus erros, também me fará humilde e acolhedor. “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” ( Rm 8, 28 ). Tudo, até mesmo o pecado.

 Onde foi grande o pecado,  maior foi o perdão. E daí? Vamos pecar e viver pecando para crescer em nós a benevolência de Deus? O apóstolo também se pergunta  na continuação de sua carta. “Que diremos, então? Que devemos permanecer no pecado a fim de que a graça atinja sua plenitude? De modo algum! Nós que morremos para o pecado, como haveríamos de viver ainda nele? Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados?  Portanto pelo o batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” ( Rm 6,1-4 ).

 Lá mais em cima no texto eu me referi a umas das enfermidades do nosso tempo. Ela pode acometer a mim e você. Estou falando da depressão. Na minha depressão encontro Jesus. Quando misteriosamente, na química do meu corpo-mente e nos sentimentos da minha alma me faltam a  alegria, as forças e o gosto pela vida, encontro Jesus angustiado. “Minha alma está triste até a morte”( Mc 14,34 ). Escuto-o: “Em suas dores estarei a seu lado”( Sl 90,15 ). Quando a vida me cansa e me cansa ser homem, a voz desse homem deprimido, caído com o rosto por terra no Getsêmani, como caído e prostrado no chão se encontra a minha alma e o meu físico deprimido, a sua voz saindo de sua carne da minha carne – embora seja ele Deus – vai me curando. O homem do Getsêmani é o mesmo da beira do lago: “Vinde a mim todos o que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso, eu vos aliviarei...  e encontrareis descanso para vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”( Mt 11,28-30 ). A leveza e a suavidade de Deus. Encontramos em Jesus o descanso e o remédio para a cura da nossa depressão.  É claro que a fé não está em detrimento da medicina e da psicologia que cumprem o seu papel indispensável no processo terapêutico para sair da depressão. Acredito que uma pessoa que tem uma vida religiosa e passa por uma depressão ( depressão não é falta de fé! ) se souber unir fé + remédios + terapia + carinho das pessoas + convívio com a natureza, ela terá mais chances de  conviver com a depressão, enquanto estiver doente, e de sair dela mais fortalecida e reintegrada. 

Depois desse baile dos pensamentos de Paulo na minha cabeça, só tenho uma coisa a dizer de Jesus Cristo.

A Humanidade de Cristo é o caminho para nossa humanidade. O caminho onde cada pessoa humana se torna mais humana e mais pessoa. Caminho que torna o homem mais homem e a mulher mais mulher. Caminho para Deus. Caminho para Deus e para os homens. “Nele temos um caminho novo e vivo, que ele mesmo inaugurou através da sua humanidade” (Hb 10,20 ).

 Eu sou um padre. Cercado de fraquezas por todo os lados, mas bem mais cercado de carinho e misericórdia. “Por conseguinte, com todo ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me alegro nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” ( 2 Cor 12,4 ).

Sou padre. O padre corre o risco de falar aos fiéis como um catedrático da cadeira do céu aos seus universitários da terra, como um professor aos seus alunos, um mestre aos discípulos, um super-homem aos homens, um santo aos pecadores. Como disse no começo deste livro, eu gostaria de falar a você como um de você. Este livro não é um ensinamento ou exortação. Ah, meu irmão, se você já reparou direito, este livro não é sequer um livro, é uma confissão, uma partilha. Este livro é uma confidência.

 Padre Fabio Potiguar Santos é Capelão das Fronteiras, membro da Comissão de Justiça e Paz e coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter- religioso da Arquidiocese de Olinda e Recife

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

EM TEMPOS DE COVID: O CUIDADO NECESSÁRIO E IRMANDADE AFETUOSA

 


Leonardo Boff

 

Nos dias atuais, especialmente durante o isolamento social, devido a presença perigosa do Coronavírus, a humanidade despertou de seu sono profundo: começou  ouvir os gritos da Terra e os gritos dos pobres e a necessidade do cuidado de uns para com os outros  e também da natureza e da Mãe Terra. De repente, demo-nos conta  de que o vírus não veio do ar. Não pode ser pensado isoladamente, mas dentro de seu contexto; veio da natureza. Ele é uma resposta da Mãe Terra contra o antropoceno e o necroceno, vale dizer, contra a sistemática dizimação de vidas, devida à agressão do processo industrialista, numa palavra, do capitalismo mundialmente globalizado. Ele avançou sobre a natureza, desflorestando milhares de hectares, na Amazônia, no Congo e em outros lugares onde se encontram as florestas úmidas. Com isso destruiu o habitat dos centenas e centenas de vírus que se encontram nos animais e até nas árvores. Saltaram em outros animais e destes a nós.

Em consequência de nossa voracidade incontrolada, cada ano desaparecem cerca de cem mil espécies de seres vivos, depois de milhões de anos de vida sobre a Terra e ainda, segundo dados recentes, há um milhão de espécies vivas sob risco de desaparecimento.

A ideia-força da cultura moderna era e continua sendo o poder como dominação da natureza, dos outros povos, de todas as riquezas naturais, da vida e até dos confins da matéria; esta dominação ocasionou atualmente as ameaças que pesam sobre o nosso destino.  Essa ideia-força tem que ser superada. Bem dizia Albert Einstein: “a idéia que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise; temos que mudar”.

A alternativa será esta: ao invés do poder-dominação deve-se colocar a fraternidade e o cuidado necessário. Estas são as nova ideia-força. Como irmãos e  irmãs, somos todos interdependentes e devemos nos amar e cuidar. O cuidado implica numa relação afetuosa para com as pessoas e para com a natureza; é amigo da vida, protege e confere paz a todos que estão à sua volta.

Se o poder-dominação significava o punho cerrado para submeter, agora oferecemos a mão estendida para se entrelaçar com outras mãos, para cuidar e para afetuosamente abraçar. Essa mão cuidadosa traduz um gesto não agressivo para com tudo o que existe e vive.

Portanto, é urgente criar a cultura da fraternidade sem fronteiras e do cuidado necessário que a tudo enlaça. Cuidar de todas as coisas, desde o nosso corpo, da nossa psiqué, do nosso espírito, dos outros e mais comezinhamente do lixo de nossas casas, das águas, das floresta, dos solos, dos animais, de uns e de outros, começando pelos mais vulneráveis.

 

Sabemos que tudo o que amamos, cuidamos, e tudo o que cuidamos também amamos. O cuidado sana as feridas passadas e impede as futuras.

É neste contexto urgente que ganha sentido um dos mais belos mitos da cultura latina, o mito do cuidado.

“Certo dia, ao caminhar na margem de  um rio,  Cuidado viu um pedaço de barro . Foi o primeiro a ter a ideia de tomar  um pouco dele  e moldá-lo  na forma de um ser humano. Enquanto contemplava, contente consigo mesmo, com  o que havia feito, apareceu Júpiter, o deus supremo dos gregos e dos romanos.

Cuidado pediu-lhe que soprasse  espírito na figura que acabara de moldar. O que Júpiter  acedeu  de bom grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome  à criatura que havia projetado, Júpiter o proibiu. Disse que essa prerrogativa de impor um nome era missão dele. Mas cuidado insistia que ele tinha esse direito por ter, por primeiro pensado e moldado a criatura em forma de um ser humano.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam acaloradamente, de súbito, irrompeu a deusa  Terra. Quis também ela conferir um nome à criatura, pois, argumentava, que ela  fora feita de barro, material do  corpo, da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada sem qualquer consenso.

De comum acordo, pediram, ao antigo Saturno, também chamado de Cronos, fundador da idade de ouro e da agricultura, que funcionasse como árbitro. Ele apareceu na cena. Tomou a seguinte decisão que pareceu a todos   justa:      

“Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito quando essa  criatura morrer”.

“Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer”.

 

Mas como, você, Cuidado foi quem, por primeiro, moldou essa criatura, ela ficará  sob o seu cuidado enquanto  ela viver”.

“E uma vez que entre vocês há consenso  acerca do nome, decido eu:  esta criatura será chamada Homem (ser humano), isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

Vejamos a singularidade deste mito. O cuidado é anterior a qualquer outra coisa. É anterior ao espírito e anterior à Terra. Em outras palavras, a concepção do ser humano como composto de espírito e corpo não é originária. O mito é claro ao afirmar que “foi o cuidado o primeiro a moldar o barro na forma de um ser humano”.

O cuidado comparece como o conjunto de fatores sem os quais não existiria o ser humano. O cuidado constitui aquela força originante da qual jorra e se alimenta o ser humano. Sem o cuidado, o ser humano continuaria a ser apenas um boneco de barro ou um espírito desencarnado e sem  raiz em nossa realidade terrestre.

O Cuidado, ao moldar o ser humano, empenhou amor, dedicação, devoção, sentimento e coração. Tais qualidades passaram à figura que ele projetou, isto é, a nós, seres humanos. Estas dimensões entraram em nossa constituição, como um ser amoroso, sensível, afetuoso, dedicado, cordial, fraternal e carregado de sentimento. Isso faz o ser humano emergir verdadeiramente  como humano.

Cuidado recebeu de Saturno a missão de cuidar do ser humano  ao longo de toda a sua vida. Caso contrario, sem o cuidado, não subsistiria  nem viveria.

Efetivamente, todos nós somos filhos e filhas do infinito cuidado de nossas mães. Se elas não nos tivessem acolhido com carinho e cuidado, não saberíamos como deixar o berço e buscar nosso alimento. Em pouco tempo teríamos morrido, pois não contamos com nenhum órgão especializado que garanta nossa sobrevivência.

O cuidado, portanto, pertence à essência do ser humano. Mas não só. Ele é a essência de todos os seres, especialmente dos seres vivos. Se não os cuidarmos, eles definham e lentamente adoecem e por fim morrem.

 

O mesmo vale para a Mãe Terra e para tudo o que nela existe. Como disse bem o Papa Francisco em sua encíclica que leva como sub-título ”Cuidando da Casa Comum”: “devemos alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo”.

O cuidado é também uma constante cosmológica. Bem dizem os cosmólogos e astrofísicos: se as quatro forças que tudo sustentam (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a forte) não se tivessem articulado com extremo cuidado, a expansão ficaria demasiadamente rarefeita e não haveria densidade para originar o universo, a nossa Terra e a nós mesmos. Ou então seria demasiada densa e tudo explodiria em cadeia e nada existiria do que existe. E esse cuidado preside o curso das galáxias, das estrelas e de todos os corpos celestes, a Lua, a Terra e nós mesmos.

Se vivermos a cultura e a ética do cuidado, associado ao espírito de irmandade entre todos, também com os seres da natureza, teremos colocado os fundamentos sobre os quais se construirá um novo modo de nos relacionar  e de viver na Casa Comum, a Terra. O cuidado é a grande medicina que nos pode salvar e a irmandade geral nos permitirá a sempre desejada comensalidade e o amor e a feto entre todos.

Então continuaremos a brilhar e a nos desenvolver sobre esse pequeno e belo planeta.

Esta consideração sobre o cuidado concerne a todos os que cuidam da vida em sua diversidade e do planeta, especialmente agora, sob  pandemia do Covid-19, o corpo médico, os enfermeiros e enfermeiras e outros que trabalham nos hospitais, pois, o cuidado essencial cura as feridas passadas, impede as futuras e garante o nosso futuro de nossa civilização de irmãos e de irmãs, juntos na mesma Casa Comum.

 

Leonardo Boff escreveu O cuidado necessário e Saber cuidar, ambos pela Editora Vozes de Petrópolis.

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O ANO DA QUARENTENA


 


Frei Betto

        O que me constrange, como ser humano, é ver tanta mobilização global para combater a Covid-19 e quase nenhuma para erradicar a fome, que mata 24 mil pessoas por dia, cerca de 9 milhões por ano. Hoje, ameaça 820 milhões de pessoas e pode ultrapassar 1 bilhão até o fim do ano. Ainda bem que o Nobel da Paz foi concedido este ano ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, o que faz soar um alerta. 

       Quarentena é um vocábulo de origem bíblica. O Dilúvio durou 40 dias e 40 noites. Antes de receber as Tábuas da Lei, Moisés jejuou durante 40 dias e 40 noites (Deuteronômio 9,9). Quarenta anos mais tarde, liderou a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. A travessia dos hebreus pelo deserto – o êxodo – rumo a Canaã, teria durado 40 anos. O profeta Elias “caminhou 40 dias e 40 noites até o Monte Horeb, a montanha de Deus” (I Reis 19, 8). Jesus iniciou sua missão com um retiro de 40 dias no deserto (Marcos 1,13). Após a ressurreição, permaneceu 40 dias em companhia dos discípulos (Atos dos Apóstolos 1,3). Hoje, no ano litúrgico da Igreja Católica temos o período de Quaresma, os 40 dias que precedem o domingo de Páscoa. E estamos no ano de 2020, cujos algarismos somam 40.

       Entrei em quarentena em março. E nela prossigo, com raras escapadas estritamente necessárias, e tantos cuidados que me fazem parecer um escafandrista. Não que eu sofra de hipocondria. Mas estou no grupo de risco. Aos 76 anos já me incluo na turma (qual eufemismo usar? Melhor idade? Terceira idade?) da eterna idade, já que me aproximo da junção desses dois vocábulos...

       A quarentena não me pesa. Na falta de comorbidade, trago importante experiência preexistente de reclusão – os quatro anos (1969-1973) em que fui encarcerado pela ditadura militar. E, por vocação, sou afeito à solidão e à clausura.

       Prisão e quarentena se assemelham em muitos pontos: isolamento físico, distância de parentes e amigos, proibições e ameaças. No cárcere, de contrair doenças infecciosas, devido às más condições de higiene; e, agora, de pegar Covid-19. A diferença é que na prisão a chave da porta fica do lado de fora; agora, do lado de dentro. Sou carcereiro de mim mesmo. E o segredo para bem suportar uma e outra é não separar a cabeça do corpo, este retido e aquela virtualmente lá fora...

       A quarentena, para quem não precisa sair à rua e se expor em aglomerações (ônibus, metrô etc.) para garantir o pão de cada dia, é bem mais suportável que a cadeia: alimentação saudável, livros, TV, internet, e a liberdade de determinar a própria agenda cotidiana. 

       Porém, cuidado! O inimigo é imperceptível e não conhece fronteiras. Pode vir na embalagem de uma mercadoria ou no envelope da correspondência. Ele mede apenas 85 nanômetros. Para se ter ideia do que isso significa, um fio de cabelo tem 100.000 nanômetros de espessura. Para detectar o novo coronavírus, um microscópio eletrônico precisa ampliá-lo ao menos 80 mil vezes.

       Aproveitei a quarentena para fazer o que mais gosto: meditar, ler, praticar exercícios físicos e escrever muito. Produzi meu 69º livro, “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos”, que a editora Rocco fez chegar ao mercado em meados de outubro.

       Quando cessará a quarentena? É a pergunta que todos fazemos. Ou quando voltaremos ao “novo normal”? Depende.  Para muitos, isolamento é coisa do passado. Flexibilização geral! Sem medo de surfar nas ondas vindouras. Para outros, como eu, quando todos forem vacinados. A mera notícia da descoberta da vacina não será suficiente para decretar o “liberou geral”. Geral terá de ser a profilaxia e a imunização. 

       E quando surgirá a tão esperada vacina? Não me incluo entre os mais otimistas. A que levou menos tempo para ser descoberta foi a da caxumba, 4 anos. A da ebola, quase 6 anos. A da tuberculose, 13. A da catapora, 28. E a do HIV está na fila de espera há 40 anos...

       O que me constrange, como ser humano, é ver tanta mobilização global para combater a Covid-19 e quase nenhuma para erradicar a fome, que mata 24 mil pessoas por dia, cerca de 9 milhões por ano. Hoje, ameaça 820 milhões de pessoas e pode ultrapassar 1 bilhão até o fim do ano. Ainda bem que o Nobel da Paz foi concedido este ano ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, o que faz soar um alerta. 

       Por que será que combater a fome não suscita tanta mobilização quanto o combate à pandemia? A razão denuncia a falta de ética e de solidariedade nos tempos atuais! Ao contrário da Covid, a fome faz distinção de classe. Mata apenas os mais pobres. E pensar que somos mais de 7 bilhões de habitantes deste planeta que produz alimentos suficientes para 12 bilhões de bocas! Portanto, comida não falta. Falta justiça!

 

Assessor da FAO para soberania alimentar e educação nutricional, Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A PRECARIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

 


                                             

        Prof. Martinho Condini

 

         O mestre Paulo Freire, patrono da educação brasileira, foi secretário da educação do município de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Após dois anos no cargo de secretário, conforme o combinado, exonerou-se. Reassumiu a sua condição de Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e retomou suas atividades como escritor. Nesta mesma época, início dos anos noventa, as novas tecnologias começavam a ocupar espaços pedagógicos nas instituições de ensino dos principais centros urbanos do nosso país. Para Freire, as novas tecnologias na educação possibilitariam e disseminação do conhecimento.

         Ainda neste início dos anos noventa, Freire escreve a obra “Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido”, em que ele faz uma releitura crítica da “Pedagogia do Oprimido” (obra seminal da práxis freiriana). Nesta releitura, Freire não abandona suas convicções e reafirma: se a educação não for libertadora, ela apenas servirá para reproduzir os valores das classes dominantes.

         Em um trecho do livro “A Pedagogia da Esperança”, em relação à tecnologia na educação, Freire afirma “O que me parece fundamental para nós, hoje, mecânicos ou físicos, pedagogos ou pedreiros, marceneiros ou biólogos é a assunção de uma posição crítica, vigilante, indagadora em face da tecnologia. Nem de um lado, demonizá-la nem de outro, divinizá-la”.

         A justificativa para essa afirmação é a preocupação que sempre o acompanhou em relação às novas propostas para a educação, que seria sabermos “para que?”, “para quem?” e “com quais propósitos?” elas se apresentam. Se esses questionamentos não forem respondidos, teremos dificuldades para saber e entender a que vieram.

         Passados trinta anos do início dessa inserção da tecnologia na educação, acredito que seja necessário retomar a reflexão do patrono da educação brasileira diante da nossa atual realidade.

         Ao olharmos para dentro das salas virtuais (aulas remotas ou EAD) dos grandes grupos educacionais do ensino superior no Brasil, veremos turmas de 100, 200, 300 ou mais alunas e alunos. Alguém pode analisar esses números e pensar “Que boa notícia! Em plena pandemia os alunos continuam seus estudos a fim de alcançarem seus objetivos acadêmicos e profissionais”.

         Claro que, à frente de centenas de alunas e alunos em cada turma, há a importante e insubstituível figura de uma PROFESSORA ou de um PROFESSOR.

Mas, concomitantemente a essa paisagem de salas virtuais repletas de alunas e alunos, tivemos, no primeiro semestre de 2020, o absurdo número de mais de 1.800 PROFESSORAS e PROFESSORES demitidos dos grandes grupos educacionais no Estado de São Paulo. Essa catástrofe não ficou restrita a São Paulo: milhares de outras professoras e professores foram demitidos de suas instituições de ensino superior em todo o Brasil.

         Em detrimento do ensino, os “empresários da educação” não abrem mão de suas usuras. Estamos diante de um sucateamento, uma precarização e uma desqualificação do ensino superior em nosso país. E o Conselho Nacional de Educação está fazendo o quê? Será que acreditam que esses “empresários da educação?” estão preocupados em oferecer uma formação acadêmica de qualidade?

         Com essa quantidade de alunos nas salas virtuais (ou presenciais, quando era possível), temos uma perda significativa na qualidade de ensino e uma brutal precarização do trabalho docente. É claro que, num país continental como o nosso, e em plena pandemia, é insano ser contrário às aulas remotas ou ensino a distância, mas mais insano ainda é acreditar que se esteja fazendo ensino de qualidade com uma centena ou mais de alunas e alunos em uma sala de aula virtual. Presencial então, sem comentários (quando era possível).   

         No meu entendimento, se as novas tecnologias na educação não estiverem ao lado da PROFESSORA e do PROFESSOR como ferramenta para auxiliar e qualificar ainda mais o seu trabalho em sala de aula e gerar mais postos de trabalho, qual será a sua finalidade?

         Para os “empresários da educação”, seria a substituição de PROFESSORAS e PROFESSORES por tutores – uma excrescência, uma imoralidade de função na educação, criada apenas para diminuir despesas e engordar ainda mais as polpudas contas dos “vendedores de diplomas”. Nesse caso, no entanto, mais uma vez pergunto: onde está o Conselho Nacional da Educação? Está a serviço de quem e para quê? Será que estão a serviço dos cifrões capitalistas dos “vendedores de diplomas”?

         Estou convencido de que a tecnologia na educação é imprescindível sim, caso favoreça mantenedores, docentes e dicentes. Mas, parece que não é o que está ocorrendo.

         Por isso, esse elevado número de alunas e alunos por turma demonstra a total falta de compromisso com a qualidade de ensino, consideração e respeito para com a PROFESSORA e o PROFESSOR, tanto no âmbito pedagógico quanto no trabalhista.

         A verdade é uma só: é muito triste constatarmos que PROFESSORAS e PROFESSORES com uma, duas, ou três décadas de experiência profissional e qualificação acadêmica (mestres, doutores, pós-doutores) estão sendo dispensados em massa ou substituídos por tutores ou máquinas. Acredito que é chegado o momento de se fazer uma profunda reflexão em relação à política educacional neoliberal desse país. Não é possível que tenhamos que continuar a passar pela humilhação de sermos um dos países que mais exploram e pior remuneram suas PROFESSORAS e PROFESSORES, tratando-os também de maneira tão vil em pleno século XXI.

         Enfim, com esses “empresários da educação”, “vendedores de diplomas”, atrelados a um desgoverno que não tem a mínima noção do que seja educação, ensino e pesquisa científica, ficará cada vez mais difícil construirmos um país digno e soberano.

O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com


terça-feira, 27 de outubro de 2020

A MISSÃO DAS IGREJAS, MISSÃO DE TODA A HUMANIDADE

 

Marcelo Barros

A missão de todo ser humano consiste em cuidar uns dos outros e do planeta Terra, que Deus ou a Vida nos confiou. Em meio a esta pandemia, a humanidade pode perceber claramente de que lado estão as pessoas, se a favor da vida ou se a favor do lucro da elite que domina o mundo. Neste sábado 17, pelo you tube, um sarau reuniu mais de 50 apresentações artísticas, entre músicas, encenações teatrais, espetáculos de dança e recitação de poesias. Era o lançamento festivo da campanha pelas vacinas gratuitas para todos os vírus do mundo. Ali se pedia a ONU que declarasse as vacinas contra a Covid 19 bens comuns da humanidade. E a mensagem das músicas e de outras artes nos vacinava contra outros vírus, como os da indiferença social e do individualismo. Afinal, o Brasil voltou ao mapa da fome, com mais de 17 milhões de pessoas em situação de desemprego e mais de 50 milhões em insegurança alimentar.

No domingo 04 de outubro, o papa Francisco surpreendeu a humanidade com uma encíclica que conclama todos/as a retomar a cultura da amizade social e da fraternidade universal. Dois setores da sociedade reagiram forte e negativamente à encíclica do papa. O primeiro setor foi a elite econômica, que se sentiu atacada quando o papa responsabiliza o Capitalismo pelos maiores sofrimentos da humanidade. O outro setor foi uma parte não pequena da hierarquia e do clero da própria Igreja Católica que não compreende um papa que rompeu definitivamente a aliança da Igreja com os poderosos do mundo que sempre a beneficiaram.   

Cada ano, em outubro, a Igreja Católica celebra o mês das missões. O tema deste ano de 2020 foi escolhido muito antes da pandemia que nos surpreendeu. No entanto, parece ter sido escolhido em função do momento que vivemos: “A vida é missão” e o lema que o desenvolve é a palavra do profeta: “Eis-me aqui, envia-me” (Is 6,8).

Ainda hoje, há cristãos que confundem missão com proselitismo e entendem de forma fundamentalista o mandado de Jesus: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a todas as nações” (Mt 28, 19). O próprio Novo Testamento revela que os apóstolos e discípulos não compreenderam estas palavras ao pé da letra. Eles não saíram pelo mundo afora para anunciar a boa notícia do reino. De fato, Paulo e seus companheiros fizeram viagens pelas cidades do Império Romano até à Europa. Entretanto, eles iam às sinagogas e fortaleciam grupos de discípulos de Jesus dentro do Judaísmo. Nem Paulo nem outros discípulos pediram aos judeus que deixassem sua religião. Nem exigiram dos gregos abandonarem sua cultura. Por isso, ele pode dizer: “eu me fiz judeu com os judeus e grego com os gregos” (1 Cor 9, 20). A mensagem de Paulo é que todas as pessoas, independentemente de sua cultura e religião, podem aceitar a proposta divina. O “reinado divino” vem ao mundo para todos. Somente mais tarde, nos anos 80, a sinagoga não aceitou mais os cristãos como membros da comunidade judaica. Então, o Cristianismo se separou do Judaísmo e se tornou religião autônoma.

Agora, na sua carta sobre a fraternidade universal, o papa Francisco pede a todas as religiões que, independentemente, de suas diferenças, se ponham a serviço da unidade de toda a família humana. Conforme os evangelhos, uma vez, discípulos contaram a Jesus que tinham encontrado alguém que expulsava o mal das pessoas. Eles tinham proibido porque aquela pessoa não pertencia ao grupo deles. Jesus os repreendeu dizendo: “Não façam isso. Quem não está contra nós é porque está do nosso lado” (Cf. Lc 9, 49- 50).

Neste mundo pluralista, é fundamental que as Igrejas recuperem esta abertura de coração. Devem ser comunidades de diálogo e acolhida do outro e nunca de intransigência e rejeição. Não há separação entre a missão das Igrejas e a missão de todas as organizações sociais que trabalham pela paz, justiça e união da humanidade. Homens como o papa João XXIII, Dom Helder Câmara e o pastor Martin-Luther King compreenderam profundamente isso. Foram profetas que transformaram o mundo e fizeram isso como poetas sensíveis e encantados com a humanidade.

No dia 11 de outubro de 1962, depois de um dia inteiro de trabalho no qual tinha inaugurado o Concílio Vaticano II com todos os bispos católicos em Roma, o papa João XXIII soube pelo seu secretário que a praça de São Pedro estava cheia de povo. Todos, com velas nas mãos, pediam para ver o papa. Este apareceu na janela, saudou a multidão e disse: “Olhem a lua cheia. Ela veio embelezar a nossa festa. Voltem para casa e dêem um abraço ou façam um gesto de carinho em nome do papa na primeira pessoa que vocês reencontrarem em casa. Digam que o papa lhes manda este gesto de amor”. Isso continua a ser o núcleo central da missão de todas as pessoas espirituais.

  Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

 

domingo, 25 de outubro de 2020

PAULO FREIRE À FRENTE DO SEU E DO NOSSO TEMPO

 



Prof. Martinho Condini

 

“A pedagogia que me toca é a pedagogia que escuta, provoca e vive a difícil experiência da liberdade, reconhecendo que há uma distorção, o autoritarismo. Minha opção é por uma pedagogia livre para a liberdade, brigando contra a concepção autoritária de Estado, de sociedade.”

 (Paulo Freire in Conversação Libertária com Paulo Freire, Edson Passetti, 1998.)

 

        Paulo Freire nos mostrou a importância da liberdade, da educação libertadora, da postura libertária, da utopia, da conscientização e do diálogo na formação dos sujeitos que fazem a história.         Nada é mais anarquista, na melhor concepção da palavra do que a práxis freireana. Ser um defensor da liberdade não significa apoiar a libertinagem ou a não organização, como alguns opositores há Freire costumam se expressar em livros ou nas redes sociais, tão em moda atualmente. Na verdade eles não entenderam uma só linha dos escritos do educador e pensador pernambucano, se é que as leram.

        Quando Freire fala em liberdade, está se referindo a solidariedade libertária ao companheirismo coletivo, há busca de um processo de aprendizagem onde os sujeitos se libertem da tirania do Estado e do capitalismo ou da amarras impostas pelos valores e controles das classes dominantes sejam no meio rural ou urbano, nas indústrias, nas fazendas, nas instituições religiosas ou educacionais e nos partidos políticos.

        Quanta dificuldade e resistência ainda há em relação a se compreender a teoria e a prática freireana, até mesmo no meio educacional.

        Ouso afirmar que a práxis freireana transcendeu as carteiras escolares, os muros das instituições de ensino, as ideologias partidárias, os anais acadêmicos e as fronteiras geográficas.

        Na práxis freireana encontramos a essência do seu propósito com a educação: “ensinar aprendendo e aprendendo ensinando”. Nesse processo é possibilitado ao sujeito exercer o que temos de mais precioso na vida, a liberdade. Liberdade para pensar, falar, ouvir, perguntar, agir e construir um conhecimento sentido, vivido, experimentado, na troca com o outro, no compartilhamento, na cooperação, na divergência e no diálogo.

        Em uma de suas obras Freire se preocupou com a reflexão dos educadores sobre o que o  “ensinar” exige do educador, porque, o importante é o ensinar e não o seu resultado. O resultado é conseqüência de uma somatória de fatores político, econômico, social, emocional que o explicará.

        Infelizmente em uma boa parte dos espaços de ensino, em todos os níveis, esse processo freireano não acontece na intensidade que deveria. Enquanto a prepotência dos valores neoliberais capitalistas, da doutrinação das escolas religiosas e dos interesses de poder do Estado imperarem na sociedade, será difícil o espaço escolar ser um espaço libertador com o intuito de ensinar e formar seres humanos, humanos de verdade, como acreditava Freire. As ilhas de excelência freireana que não estão nessa enorme bolha, são insignificantes diante do gigantismo dessa engrenagem retrograda, reacionária e controladora que vigoram na educação bancária do Estado burguês.

        Quando nos aprofundamos nos escritos de Freire, percebemos o quanto sua práxis foi genuinamente um processo significativo de formação humanista e libertária, apesar dele não ter sido um anarquista.   

        Obrigado mestre Paulo Freire, pela magna aula que você ministrou a todas e a todos que acreditam na liberdade como condição sine qua non para a existência de uma sociedade sem patrões, sem escravos, sem exploradores, sem explorados; sem opressores e sem oprimidos.

O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com

sábado, 24 de outubro de 2020

TREVAS LUMINOSAS

 


O caminho da inefabilidade para falar de Deus

 


por Pe Fabio dos Santos Potiguar

Entrei na escuridão da noite e encontrei Deus vestido num manto de trevas luminosas. Encontro do seu Mistério com o meu mistério... Trevas de Deus em minhas trevas. Trevas de Deus que “habitam uma luz inacessível” ( 1 Tm 6,16). Um encontro assim torna o mistério mais misterioso, porém resplandecente, expulsando uma falsa claridade por trevas luminosa.

 Ele vem ao meu encontro, “os céus Ele baixou e então desceu pousando em nuvens pretas os seus pés. Um querubim o conduzia no seu vôo, sobre as asas do vento Ele pairava. Das trevas fez um véu para envolver-se, escondeu-se em densas nuvens e água escura. No clarão que procedia de seu rosto, carvões encandecestes se ascendiam” ( Sl 17,10-13 ).

 

Na noite vejo Deus, “trevas e nuvem o rodeiam no seu trono... vai um fogo à sua frente... seus relâmpagos clareiam toda a terra” ( Sl 96,2 ). Agora entendo o salmista. “Se eu pensasse: ‘a escuridão venha esconder-me e que a luz ao meu redor se faça noite!’ Mesmo as trevas para vós não são escuras, a própria noite resplandece como dia, e a escuridão é tão brilhante como a luz” ( Sl 138,11-12 ). Essa frase me mexe todo por dentro em fim, ela é a minha vida espiritual, a minha vida toda: “A escuridão é tão brilhante como a luz”.  Na escuridão com Davi eu canto: “Bendize, ó minh’alma, ao Senhor! Ó meu Deus e meu Senhor, como sois grande! De majestade e esplendor vos revestis e de luz vos envolveis como num manto” ( Sl 103,1-2 ).

 Enquanto escrevo, Deus do céu dá gargalhadas de min se divertindo à minhas custas, pois se rir das coisas que dançam no papel aqui na terra. Ele se rir e diz: “Não é nada disso, meu Fabinho, não é nada disso!” É verdade, não é nada disso. Bem, é tudo isso que estou escrevendo, mas a experiência está no papel não estando, e não estando está. Paradoxos e contradições! Alternância harmoniosa entre mistério e revelação, conhecimento e incompreensibilidade, afirmação e negação, linguagem e inefabilidade, transcendência e imanência, noite e dia, trevas e luz.

 Buscamos no estudo da teologia uma síntese entre a via apofática de uma teologia do mistério e a via catatáfica, de uma teologia afirmativa sobre Deus. Mas quando se trata de experiência de Deus, é mais certo o que a gente não consegue dizer. Se pude dizer alguma coisa, de resto se sente uma sensação do “não dito”. É certo tudo aquilo que escrevo agora mas é bem mais certo o que não disse, o que está escondido, o que não sei dizer, inexaurível, inefável, secreto, escuridão luminosa... é bem mais certo aquilo que em min é silêncio e solidão habitada pelo Mistério.

 Padre Fabio Potiguar Santos Capelão das Fronteiras, membro da Comissão de Justiça e Paz e coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter- religioso da Arquidiocese de Olinda e Recife

 

 

 

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

DESPOJAR-SE DE TUDO PARA GANHAR TUDO: O BONECO DE SAL

 


                                 


  Por  Leonardo Boff

Nos últimos tempos temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente à questão do Covid-19, de seu contexto que é a superexploração da Terra viva e da natureza pelo capitalismo globalizado, incluiundo a China.  Elas se defenderam enviando-nos uma gama de vírus (zika, ebola, febre aviária e suína e outros) e agora este que atacou a humanidade inteira, poupando outros seres vivos. A corrida desenfreada da acumulação desigual e todos tivemos que parar, entrar no isolamento social, evitar conglomerações e usar as incômodas máscaras. Acolhemos estas limitações em solidariedade uns com os outros e com os sofredores do mundo inteiro.

Essa situação severa enseja a ocasião de não apenas pensarmos no que virá após a pandemia mas de voltarmo-nos sobre nós mesmos, sobre as questões cotidianas como a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca terminada mesmo sob o confinamento social. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.

         Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe inúmeras barreiras: de profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo e outras. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes face a dados que  não podemos mudar como a presença de uma pessoa com seus altos e baixos ou de um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível.

Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam  e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental:”se alguém sente profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja  a milhares de quilômetros de distância”. Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para os outros.

         A outra tarefa consite na busca da auto-realização. Esta, essencialmente, é a capacidade de desapegar-se. O zen-budismo coloca como teste de maturidade pessoal e de liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno, em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, dos parentes e das pessoas amigas. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irreversivelmente vão diminuindo até cessarem e aí nos despedirmos da própria vida. Nestas despedidas temos crescido em nossa identidade mas à custa de deixarmos um pouco de nós mesmos para trás.

      Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não guarda um sentido existencial, a ser buscado pelo espírito? Se, na verdade, comparecemos como  um projeto infinito e um vazio abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e de misericórdia, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca finalmente descansará, como o cor inquietum de Santo Agostinho?

         Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que esta foi a trajetória de Jesus,  de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre Teresa, de Irmã Dulce e, creio eu, também do Papa Francisco, o maior dos humanos de hoje.

         Talvez uma estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda que produz um ganho.

 “Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia compreendê-lo. Perguntou o boneco de sal:” Quem és tu? E o mar respondeu:”eu sou o mar”. Tornou o boneco de sal: “Mas que é o mar?” E o mar respondeu:” Sou eu”. “Não entendo”, disse o boneco de sal. “Mas gostaria muito de compreender-te; como faço”? O mar simplesmente respondeu: “toca-me”.

Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que o mar começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar, veja o que fizeste comigo”? E o mar respondeu:”Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te dares todo para me compreender todo”.

E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o  boneco continuava perguntando: “que é o mar”. Até que uma onda o cobriu totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no  mar: “Sou eu”.

         Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.

Leonardo Boff é autor de Tempo de Transcendência, 2009 e Saudade de Deus(2019) ambos pela Editora Vozes.