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quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O LIMITE DA ESCRITA E OS MÍSTICOS

 



               Frei Betto   

    A escrita é uma forma de tentar organizar o caos interior. Por isso, todo artista é clone de Deus. A escrita é terapêutica, libertadora. Hélio Pellegrino, psicanalista, atribuía a minha sanidade mental no decorrer de meus anos de prisão ao fato de eu ter literalizado a vida de cadeia. O meu mundo é recriado quando lanço mão de vocábulos e regras sintáticas para dar forma e expressão ao que penso e sinto. Assim, transubstancio a realidade, projeto-me em algo que, fora de mim, não sou eu e, no entanto, traduz o meu perfil interior de um modo que eu jamais conseguiria pela simples fala.
    A escrita constitui uma forma de oração, como bem sabia o salmista. A experiência de Deus antecede e ultrapassa a escrita. No entanto, o pouco que dela se sabe é por meio da escrita; raras vezes por experiência pessoal. Grandes místicos, como Buda, Jesus e Maomé, nada escreveram. O que sabemos deles e de seus ensinamentos é graças a quem teve o trabalho de redigir.
    Ainda que o próprio místico possa fazê-lo, como são exemplos Plotino, Mestre Eckhart e Charles de Foucauld, há um momento em que a experiência de Deus ultrapassa os limites da palavra. É inefável. Como diz Adélia Prado, “Se um dia puder, nem escrevo um livro” (Círculo). “Não me importa a palavra, esta corriqueira, / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda /  foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror.” (Antes do nome)
    João da Cruz, patrono dos poetas espanhóis, deixou três de seus quatro livros inacabados. Tomás de Aquino considerou, após seu êxtase em Nápoles, que toda a sua obra não passava de “palha”. E não mais escreveu. Em Antes do nome, Adélia Prado frisa: “Quem entender a linguagem entende Deus / cujo Filho é Verbo. Morre quem entender”.
    Há nesse enfoque adeliano uma empatia com o poema Ash-Wednesday (Quarta-feira de Cinzas), de T.S. Eliot, escrito em 1930, três anos após a conversão do poeta ao cristianismo. Na quinta parte, Eliot canta que “a palavra perdida se perdeu”, “a usada se gastou”, mas perdura no “Verbo sem palavra, o Verbo. Nas entranhas do mundo.”
    A poesia mística, como em João da Cruz e Teresa de Ávila, é feita de gemidos, entrelinhas, hipotaxes e metáforas, como a linguagem dos amantes. “Que faço agora que vos descubro em silêncio, / mas, dentro de mim, em meus olhos, / vertiginosa doçura?”, pergunta Adélia Prado em A sagrada face. Nos passos da “noite escura” de João da Cruz, a poeta reverbera: “O centro da luz é escuro / do negrume de Deus, / é sombra espessa de dia, / de noite tudo reluz” (A seduzida). É o eco dos apaixonados versos do frade carmelita espanhol: “Ó noite que juntaste / Amado com amada / amada já no Amado transformada.”
    Sem ceder ao proselitismo religioso que procura rechear a literatura de utilitarismo catequético, empobrecendo-a, Adélia Prado situa-se na vertente de Jorge de Lima e Murilo Mendes, Juana de la Cruz e Ernesto Cardenal, que não deixam o religioso que os habita sonegar o artista. Neles, a ética ganha força na expressão estética: “Sinto necessidade de bradar a Deus. / Ele está escondido, mas responde curto: / ‘brim coringa não encolhe’. (…) ‘Brim coringa não encolhe?’ / Meu coração também não” (O poder da oração).
    Sua religiosidade não se ancora no cartesianismo teólogico, pois “Estão equivocados os teólogos / quando descrevem Deus em seus tratados” (A cicatriz). E insiste: “Deus não existe assim pensável” (Não blasfemo). Sua imagem divina, jonathanianamente amorosa, brota da  vivência teologal, da oração, da contemplação que dispensa imagens e palavras; não é doutrinária, é experimental, como quem ignora a composição química da água mas se deixa lavar com a alegria de menino em cachoeira: “Há mulheres no meu grupo que rezam sem alegria / e de cabo a rabo recitam o livro todo, / incluindo imprimatur, edicões, prefácio, / endereço para comunicar as graças alcançadas. / Eu só quero dizer: Ó Beleza, adoro-Vos! / Treme meu corpo todo ao Vosso olhar” (Biografia do poeta). Sua espiritualidade é telúrica, apaixonada, como o “faça-se em mim a Vossa vontade” de Maria: “Não compreendo nada. Só Vos desejo e meu desejo é como se eu miasse por Vós” (À soleira).
    Poeta em estado de gravidez permanente, seu canto encerra utopias. A mais definitiva e misteriosa de todas, o Reino de Deus, a redenção de toda essa Criação que, na expressão de Paulo, apóstolo, geme em dores de parto. “…o que sob o céu mover e andar / vai seguir e louvar. / O abano de um rabo, um miado, / u’a mão levantada, louvarão” (Um salmo). Prenhe de fé, Adélia não crê, ela sabe: “Levantaremos como deuses, / com a beleza das coisas que nunca pecaram, / como árvores, como pedras, / exatos e dignos de amor” (O dia da ira). Epifânica, sua poesia é de quem identifica Senhor e amor, e sabe-se acolhida pela compaixão divina: “Ó Deus, cujo Reino é um festim, / a mesa dissoluta me seduz, / tem piedade de mim” (A boca). Ela proclama que, no céu, “os militantes / os padecentes / os triunfantes / seremos só amantes.”

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.

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