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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Fim de um mundo, gravidez de um novo

 Marcelo Barros


Chegamos a dezembro de um ano profundamente problemático. No ponto de vista social e político, o Brasil parece ter chegado ao fundo do poço. A pandemia que, desde o início de 2020 nos ameaça, se transmuta em novas cepas e variantes. A Amazônia e todos os biomas brasileiros sofrem invasões e destruição como jamais antes tinham vivido.  

A proximidade do final do ano leva as Igrejas a pensar no que será a meta da história. No tempo antigo, essa idéia tomava a imagem de “fim do mundo”. Vários mitos falam sobre isso. A Bíblia, inserida na antiga cultura judaica, não escapa desse assunto. Os profetas antigos prometem para o final dos tempos um julgamento final da humanidade e uma intervenção de Deus para fazer justiça e libertar os oprimidos.  Conforme os evangelhos, Jesus tomou esse tema para um de seus discursos (Mt 24, Mc 13, Lc 21). Assegurou que não se trata tanto do fim do mundo e sim do fim de um período da história e que dará lugar a um novo tempo no qual a própria humanidade (o homem novo e a mulher nova) será cheia da energia amorosa de Deus.

Há quem interprete as guerras e desastres ecológicos atuais como se tivessem sido previstos na Bíblia. Ao contrário, muitos crentes sabem que a história tem sua autonomia. A presença divina não é para destruir e sim para renovar. Se, por acaso, a terra caminhar para o fim da vida no seu solo, isso acontecerá não por decisão divina e sim por culpa da sociedade dominante que transforma a terra e a natureza em mercadoria e, além de tudo, fabrica artefatos nucleares capazes de destruir a humanidade e todo o planeta.

O fim do mundo não é projeto de Deus e não foi isso que as profecias anunciavam. Jesus falou do fim de um mundo. Profetizou a derrota de uma sociedade injusta. Para quem vivia oprimido, o anúncio da destruição daquela velha ordem e a instauração de uma nova realidade mais justa e amorosa só podia ser boa notícia. Era um verdadeiro evangelho. Uma das figuras usadas para falar da renovação do mundo é o do parto. Na época antiga, as dores de parto representavam o sofrimento necessário para o surgimento de uma vida nova. Por isso, Jesus conclui o anúncio do fim daquele mundo dizendo: “Quando essas coisas começarem a acontecer, levantem-se, ergam a cabeça e se alegrem, porque é a libertação de vocês que se aproxima” (Lc 21, 28).

Atualmente, sabemos que esse processo de parto da história não é reservado para uma época final. Ele se dá cotidianamente e em todos os níveis da nossa realidade social e política, assim como no âmbito de nossas relações humanas e nosso crescimento interior.    

O amor divino inspira, mas não realizará essa transformação estrutural do mundo e da sociedade sem ser através de nós e de nossa ação solidária. Essa nossa transformação interior é como semente e base da transformação do mundo.  Por isso, Paulo escreveu aos irmãos e irmãs de fé que viviam em Roma: “Não se conformem com este mundo, mas busquem se transformar pela renovação de suas mentes para discernir qual é a vontade divina” (Rm 12, 2).

 

 

 

 

 

sábado, 27 de novembro de 2021

Falta de vergonha na cara


Prof. Martinho Condini



 

Na semana passada ocorreram muitos debates, entrevistas e reflexões com representantes dos movimentos negros pelo dia Consciência Negra, data símbolo da luta contra o racismo e construção de políticas públicas antirracistas. Essa luta liderada pelos movimentos negros é histórica e acontece há séculos. Uma luta que deve ser de todas as pessoas que de alguma maneira se sintam incomodadas e responsáveis pela construção de uma sociedade mais justa, igualitária e antirracista.

Mas sem sombra de dúvida o protagonismo e liderança de todo esse processo está nas mãos daqueles que são há tempos severamente humilhados, maltratados, desrespeitados e assassinados injustamente: as crianças, os jovens e os adultos, negras e negros da nossa sociedade.

As pessoas brancas engajadas nessa luta devem participar sim, mas como aliados, jamais como protagonistas, pois a dor e a revolta sentida pelos afrodescendetes é intransferível, jamais brancas e brancos sentirão a crueldade do racismo num país tão racista como o nosso.

A branquitude é algo tão vergonhoso e asqueroso quanto o racismo. E foi a partir dessa branquitude que se constituiu uma cultura de expressões, apelidos e outras manifestações racistas que passaram a ser compreendidas como algo natural como: mercado negro, magia negra, lista negra, caderno negro, ovelha negra, serviço de preto, criado mudo, a coisa ta preta, denegrir, cabelo ruim, negro de traços finos, alma branca, tem pé na cozinha, cor do pecado, samba do criolo doido, meia tigela e fazer nas coxas. Eu incluo neste rol de expressões o termo sexta-feira negra.

 Por isso, há àqueles que dizem que não aceitar mais essas expressões, piadas, apelidos ou se referir a uma negra ou negro de maneira jocosa ou ofensiva não tem nada de mais, é mimi.

São por essas e outras que temos que ouvir a Bruxinha do Brasil (ex-ministra da cultura desse desgoverno), sugerir a criação do Dia da Consciência Branca, que tal 5 de fevereiro, dia do aniversário dela? Essa mulher é burra, mal intencionada ou fascista? Pelo seu histórico como atriz e pelas suas escolhas políticas ao longo dos anos, há possibilidade que seja as três.

As pessoas que pensam como a Bruxinha do Brasil, que questionam o Dia da Consciência Negra e a ausência do Dia da Consciência Branca (essas pessoas não são poucas, já vi esse tipo de questionamento numa sala de professores, por colegas de profissão), neste final de semana devem estar enlouquecidas consumindo nas Bleque Fraide da vida.

Um país com histórico de mais de trezentos anos de trabalho escravo e que após a abolição em 1888, criou uma política de embranquecimento da sociedade concomitantemente a construção de um encantamento com a imigração européia que possibilitou o desenvolvimento de um racismo estrutural que nos envergonha, e é o grande mau da nossa sociedade (sem o seu fim jamais seremos uma verdadeira democracia), jamais deveria utilizar esse termo Bleque Fraide. Mas infelizmente ainda carregamos uma forte influência da síndrome da colonização, e por isso copiamos qualquer porcaria, seja de metrópoles ou das nações imperialistas.

Mas para a branquitude, representada pela supremacia branca capetalista judaíco-cristã da nossa sociedade, utilizar essa expressão não tem importância nenhuma (muito pelo contrário, parece que estamos em Nova Iorque), é apenas uma expressão atrelada a uma ação para enriquecer ainda mais os capetalistas brancos.

 Apesar da expressão bleque fraide não ter relação comprovada da liquidação de venda de escravos nos Estados Unidos, já que a expressão surgiu seis anos após o fim da escravidão naquele território, aqui no Brasil toda expressão que se utiliza da palavra negro ou  negra, é necessário muita atenção e cuidado, porque o nosso racismo estrutural é sutil, perigoso, perverso e profissional.

Pois é, você se reuniria com amigas ou amigos em um bar ou restaurante de nome Auschwitz?

Então, aqui no Brasil, mais precisamente na cidade de São Paulo, centenas de pessoas se reúnem para se divertir no bar e restaurante Senzala.

É bem provável que essas pessoas que vão a um espaço denominado Senzala pense da mesma forma que a Bruxinha do Brasil.

 O que faltam a essas pessoas  é conhecer a história de seu país e ter um pingo de vergonha na cara.

 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com

 

 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Chega de desgraça: o ex-juiz Moro candidato

 Leonardo boff


 

         Como se não bastasse o horror da pandemia do Covid-19 que vitimou mais de 600 mil pessoas e a crise generalizada em todos os níveis de nosso país, temos que assistir agora ao lançamento da candidatura à presidência nada menos do que do ex-juiz Sérgio Moro, declarado parcial pelo STF.

        Ele representa a estirpe direitista do Capitão que trouxe a maior desgraça e vergonha ao nosso país, por sua criminosa incompetência no trato da pandemia, por lhe faltar qualquer indício de um projeto nacional, por estabelecer a mentira como política de Estado, por absoluta incapacidade de governar e por claros sinais de desvio comportamental . Ele mente tão perfeitamente que parece verdade, a mentira da qual é ciente.

        A vitória do Capitão é fruto de uma imensa e bem tramada fraude, suscitando o antipetismo, colocando a corrupção  endêmica no país, como se fosse coisa exclusiva do PT, quando sabemos ser  a do mercado (sonegação fiscal das empresas), dezenas de vezes maior que a política, defendendo alguns valores de nossa cultura tradicionalista, ligada a um tipo de família moralista  e de uma compreensão distorcida da questão de gênero, alimentando preconceitos contra os indígenas, os afrodescendentes, os quilombolas, os pobres, os homoafetivos, os LGBTI e divulgando  milhões de fake news, caluniando com perversa difamação o candidato Fernando Haddad. Informações seguras constataram que cerca de 80% das pessoas que receberam tais falsas notícias acreditaram nelas.

Por trás do triunfo desta extrema-direita, atuaram forças do Império, particularmente, da CIA e da Secretaria de Estado dos USA como o revelaram vários analistas da área internacional. Ai atuaram também as classes dos endinheirados, notórios corruptos por sonegar anualmente bilhões em impostos, parte do Ministério Público, as operações da Lava-Jato, eivadas de intenção política, ao arrepio do direito e da necessária isenção, parte do STF e com expressiva força o oligopólio midiático e a imprensa empresarial  conservadora que sempre apoiou os golpes e se sente mal com a democracia.

         A consequência é o atual o descalabro sanitário, político, jurídico e institucional. É falacioso dizer que as instituições funcionam. Funcionam seletivamente para alguns. A maioria delas foi e está contaminada por motivações políticas conservadoras e pela vontade de afastar Lula e o PT da cena política por representarem os reclamos das grandes maiorias exploradas e empobrecidas, historicamente sempre postas à margem.

A justiça foi vergonhosamente parcial especialmente o foi pelo justiceiro ex-juiz federal de primeira instância, agora candidato, que tudo fez para pôr Lula na prisão,mesmo sem materialidade criminosa para tanto. Ele sempre  se moveu, não pelo senso do direito, mas pelo law fare (distorção do direito para condenar o acusado), pelo impulso de rancor e por convicção subjetiva. Diz-se que estudou em Harvard. Fez apenas quatro semanas lá, no fundo para encobrir o treinamento recebido  nos órgãos de segurança dos USA no uso da law fare.

Conseguiu impedir que Lula fosse candidato à presidência já que contava com a maioria das intenções de voto e até lhe sequestraram o direito de votar. Agora Moro se apresenta como candidato à presidência,  arrebatando do Capitão a bandeira do combate à corrupção quando ele primou por atos corruptos e por conchavos com as grandes empreiteiras para fazerem delações forçadas que incriminassem a Lula e a membros do PT.

 A vitória fraudulenta do Capitão (principalmente por causa dos milhões de fake news) legitimou uma cultura da violência. Ela já existia no país em níveis insuportáveis (os mais de 30 a 40 mil assassinatos anuais). Mas agora ela se sente legitimada pelo discurso de ódio que o candidato e agora presidente continua a  alimentar. Tal realidade sinistra, trouxe como consequência,  um forte desamparo e um sofrido vazio de esperança.

Este cenário adverso ao direito e  a tudo o que é justo e reto, afetou nossas mentes e corações de forma profunda. Vivemos num regime militarizado e de exceção, num tempo de pós-democracia (R.R. Casara).  Agora importa resgatar o caráter político-transformador da esperança e da resiliência, as únicas que nos poderão sustentar no quadro de uma crise sem precedentes em nossa história.

Temos que dar a volta por cima, não considerar a atual situação como uma tragédia sem remédio, mas como uma crise fundamental que nos obriga a resistir, a aprender desta escabrosa situação e a sair mais maduros, experimentados e seguros, também da pandemia, para definir um novo caminho mais justo, democrático e popular.

Urge ativar o princípio esperança que é aquele impulso interior que nos leva a  nos mover sempre e a projetar sonhos e  projetos viáveis.São eles que nos permitem tirar sábias lições das dificuldades e dos eventuais fracassos e nos tornar mais fortes na resistência e na luta. Lembremos do conselho de Dom Quixote:”não devemos aceitar a derrota sem antes de dar todas as batalhas”. Daremos e venceremos.  

 

Importa evitar, dentro da democracia, a continuidade do atual e do pior projeto para o país, urdido de ódio, perseguição, negacionismo da ciência e da gravidade letal do Covid-19. É operado atualmente pelo Capitão e seus apaniguados e, supomos, prolongado pelo ex-juiz, candidato à presidência, cujas características, parece, se confundir  com aquelas do Inominável. Desta vez não nos é permitido errar.

Leonardo Boff escreveu: Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.

 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

COMBATER A FOME E O VENENO NA ALIMENTAÇÃO

 Frei Betto


       

       A alimentação é o direito humano número 1. No Brasil, 19 milhões de pessoas (9% da população) padecem de fome crônica, agravada pela pandemia, o desemprego, o aumento dos preços dos alimentos (o maior desde 2003) e, sobretudo, o desgoverno Bolsonaro. 

       A insegurança alimentar moderada e grave afetou 21,5% da população em 2004; 10,3% em 2013; e em 2020 chegou a 20,5% (Rede Penssan – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional). Hoje, 116 milhões de pessoas no Brasil se encontram em insegurança alimentar, ou seja, não sabem o que haverão de comer no dia seguinte ou não têm acesso a uma alimentação que contenha nutrientes essenciais. 

       Em 2004, a pobreza atingia 21,5% da população brasileira. Dez anos depois (2014) foi reduzida para 8,4%. Subiu para 11% na recessão de 2015-2016, e para 16% no primeiro semestre de 2021.

        A Ação Coletiva Comida de Verdade, rede integrada por 13 movimentos comprometidos em promover segurança alimentar, identifica 310 iniciativas de sistemas alimentares inclusivos e sustentáveis no Brasil, de hortas comunitárias a cooperativas e campanhas de financiamento coletivo. Dessas 310, 58,9% se dedicam à comercialização, como feiras agroecológicas e distribuição de cestas da agricultura familiar. E 31% são ações solidárias destinadas a facilitar o acesso a alimentos de grupos vulneráveis; e 7,5% resultam de políticas públicas.

       Desde o lançamento do programa Fome Zero, no governo Lula, se propõe às prefeituras cancelar o IPTU de lotes e terrenos baldios que forem cedidos por seus proprietários ao cultivo de hortas comunitárias.  

       Em 1950, segundo censo do IBGE, 2/3 da população brasileira (64%) viviam na zona rural. No último censo, de 2010, eram 84% nas cidades e 16% na zona rural. Isso se traduz em favelas, desemprego, violência e, sobretudo, consumo de alimentos industrializados de pouco valor nutricional.

       O MST é, hoje, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, isto é, sem insumos como adubo químico e agrotóxico. Aliás, esses produtos encareceram na pandemia, afetando o preço dos alimentos. No MST, o pacote de 1kg de arroz custa de R$ 7 a 8. No Rio Grande do Sul, o movimento espera colher, para a safra de 2022, 300 mil sacas. No início de 2021, foram 248 mil sacas, no valor de R$ 20 milhões, e 130 mil continuam em estoque, pois a maior dificuldade é escoar a produção, já que o principal comprador é o governo, a Conab e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. E em se tratando de produtos do MST... A Conab não tem aberto leilões para adquirir produtos da agricultura familiar. Nem o governo federal se mostra interessado em manter estoques reguladores. 

       O Brasil é o terceiro país do mundo a utilizar agrotóxicos, atrás da China e dos EUA (FAO). Em 2019, foram vendidas no Brasil 620 mil toneladas de agrotóxicos (Ibama). Desse total, 38,3% são “altamente ou muito perigosos”, 59,3% “perigosos” e apenas 2,4% “pouco perigosos”.

       O governo Bolsonaro flexibilizou o registro dos agrotóxicos. Desde a lei de 1989, se evitava aprovar qualquer um que contivesse substâncias que causam     distúrbios respiratórios graves, câncer, mutação genética, má formação fetal, Parkinson, além de alterações hormonais e reprodutivas. 

       O decreto de 7 de outubro deste ano (10.833/2021) aprovou o “pacote de veneno”. Reduz o prazo de aprovação dos agrotóxicos, aumenta a participação do Ministério da Agricultura e cria “limites seguros” para que substâncias antes proibidas sejam aprovadas. As entidades contrárias à medida dizem que o Brasil tem grande potencial de produzir biodefensivos, mas o governo as ignora. 

       De janeiro a setembro de 2021 foram liberados no Brasil 1.215 agrotóxicos (Diário Oficial). Entre 2005 e 2015 o ritmo de aprovação era cerca de 140 por ano. Este ano já foram liberados 345. Dos produtos usados no Brasil, 30% possuem substâncias ativas proibidas em países europeus, como atrazina, acefato e paraquate. Este último herbicida, utilizado em plantios de algodão, milho e soja, foi vetado em 2017, mas se permitiu usar o estoque até julho deste ano. Está proibido em 37 países. Provoca Parkinson nos agricultores.

       Desde 1997 os agrotóxicos recebem incentivos fiscais do governo. Ao permitir a desoneração de até 60% do ICMS no comércio dos venenos, os estados deixam de arrecadar R$ 6 bilhões por ano!

       Uma das principais fontes de venenos na alimentação são os ultraprocessados. O governo deveria regular a publicidade, elevar os impostos e obrigá-los a estampar rótulos de advertência, como no cigarro. A partir de outubro de 2022, produtos com alta concentração de sódio, açúcar e gorduras saturadas deverão expor os índices em suas embalagens. 

       A dieta in natura é mais cara que consumir ultraprocessados, cujo maior custo decorre de embalagem, transporte e propaganda. Os ultraprocessados são feitos, não para alimentar, e sim para incentivar o consumo excessivo. Refrigerantes, por exemplo, não se destinam a matar a sede, e sim viciar o consumidor. Favorecem a obesidade, a hipertensão e o diabetes. E o pior: aqui são incentivados pelo governo. Refrigerantes fabricados na Zona Franca de Manaus recebem subsídios na forma de créditos tributários.

       Em setembro, o Idec denunciou que 59,3% dos produtos ultraprocessados apresentam resíduos de agrotóxicos. Entre 27 produtos, mais da metade continha resíduos de glifosato ou glufosinato – dois herbicidas muito usados em plantações de soja, milho e algodão. Segundo a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS), o glisofato causa câncer. Aparece em salgadinhos, bisnaguinhas, biscoitos de água e sal, bolachas recheadas, cereais, pães de trigo e bedidas de soja, itens muito consumidos por crianças e adolescentes. 

       A Anvisa, que controla o índice de agrotóxicos em produtos orgânicos, não o faz quando se trata de industrializados. 

       O agronegócio reconhece que, nos últimos 30 anos, a área de plantio no Brasil cresceu apenas 50% e, graças ao uso de agrotóxicos, a produção de grãos aumentou em 360%! (CropLife Brasil). 

       Salva-se a bolsa, danam-se as vidas!

 

Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Por uma Economia a serviço da Vida

   Por Francisco de Aquino Júnior 


 

Celebramos no dia 14 de novembro o Dia Mundial dos Pobres. Esse dia foi instituído pelo Papa Francisco em 2016 para recordar à Igreja a “predileção de Jesus pelos pobres” e para que “as comunidades cristãs se tornem, em todo o mundo, cada vez mais e melhor sinal concreto da caridade de Cristo pelos últimos e mais carentes”.

Esse apelo evangélico de Francisco ecoa com muita força no atual contexto de crescimento da pobreza e da miséria em nosso país. Se a desigualdade social sempre foi a característica mais determinante de nossa sociedade, ela se tornou ainda mais dramática e escandalosa nos últimos tempos com a redução/destruição das políticas sociais nos governos Temer-Bolsonaro e com a pandemia da Covid 19. Estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional revela que mais de 50% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar. Dados do Ministério da Cidadania (junho de 2021) indicam que 23% da população brasileira vive em situação de pobreza ou miséria. No Nordeste esse índice chega a 40%.

O mais grave e escandaloso é que isso se dá num contexto de recordes de safra do agronegócio e de lucro dos grandes bancos. Enquanto o Brasil volta ao mapa da fome, o agronegócio e os bancos se enriquecem cada vez mais. O município de Limoeiro do Norte – CE, por exemplo, com o segundo maior PIB agropecuário do Estado, tem 35% de sua população vivendo em situação de pobreza ou extrema pobreza. Mais de 50% do orçamento federal esse ano já foi gasto com juros e amortizações da dívida “pública”. Isso mostra que crescimento econômico não significa melhoria de vida da população e que a política econômica do país está voltada para os interesses dos grandes grupos econômicos. E exige empenho de todos na luta por uma política econômica que esteja a serviço das necessidades da população.

É muito importante o esforço e a criatividade de cada pessoa/família para garantir o seu sustento: produção, comércio, serviços, arte, bicos etc. É muito importante a solidariedade de nossas comunidades, de outras igrejas e religiões e de outros grupos da sociedade com essas pessoas/famílias em situação de pobreza ou miséria: alimentos, medicamentos, necessidades emergenciais etc. E são muito importantes as experiências e articulações de economia popular solidária no campo e na cidade: tecnologias sociais, agroecologia, feiras populares, cooperativas etc.

Mas nada disso substitui a necessidade e o dever do Estado de elaborar e garantir uma política econômica voltada para a satisfação das necessidades da população. Uma política econômica que articule ações emergenciais (Bolsa Família, Bolsa Catador, equipamentos sociais para população de rua etc.) e ações mais estruturais (reforma agrária e urbana, reforma tributária, proteção ambiental, direitos trabalhistas, geração de emprego, moradia, saúde, cotas para negros etc.) com a macropolítica econômica do país (voltada para as necessidades do povo e não para os grandes grupos econômicos) e o empenho por uma nova ordem econômica mundial (taxação do mercado financeiro, justiça ambiental, organismos políticos de controle da economia etc.). Cada uma dessas medidas tem a sua importância. Basta pensar no impacto que um programa como o Bolsa Família tem na vida das famílias beneficiárias e na economia local. No Vale do Jaguaribe – CE, por exemplo, ele atinge cerca de 38% da população. Mas ele precisa estar articulado com outras ações mais estruturais e com a macropolítica do Estado.

Todos sabemos que isso não é fácil nem se dá de uma hora para outra. É preciso muito empenho e organização dos setores populares e articulação com outras forças da sociedade. Não podemos nos iludir, esperando que essa mudança venha das classes dominantes e das forças políticas que representam seus interesses. Ela vem de baixo, da resistência e das lutas cotidianas do povo. Ganha força na medida em que vai gerando e fortalecendo articulação dos setores populares, sensibilizando outros setores da sociedade, interferindo nos rumos da política nacional e fortalecendo a solidariedade internacional. Está em jogo uma forma de entender (mentalidade) e de organizar (política) a economia que esteja a serviço da satisfação das necessidades do povo e não dos interesses dos grandes grupos econômicos: Uma economia a serviço da vida!

Francisco Junior Aquino é Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Juventudes e o cuidado com a Terra


Marcelo Barros


 

Encerrou-se em Glasgow a COP 26 da ONU sem dar à humanidade nenhum forte sinal de que governos e grandes empresas estejam realmente dispostos a curar o planeta Terra. Este continua ferido e ameaçado de morte, principalmente, pelo agronegócio, pela mineração, indústrias de armamento e, em geral, pelo sistema capitalista.

A Conferência da ONU sobre mudanças climáticas agiu como o médico que, diante de uma pessoa vítima de câncer destruidor, planeja por quantos dias, prolongará a vida do paciente.

A humanidade já sabia que a cura e a salvação da Mãe Terra não viriam de governos e dos que administram a economia dominante. A surpresa foi o protagonismo da Juventude nas iniciativas paralelas em Glasgow e nas mais diversas cidades do mundo. Durante a conferência oficial, milhares de jovens fizeram manifestações em defesa da Terra. Nestes dias, se espalham pelo mundo iniciativas pela ecologia integral. Na Suécia, a jovem Greta Thumbert criou e lidera o movimento Fridays por future. Na Inglaterra, Anna Taylor (17 anos) organiza uma rede de juventude estudantil consagrada às mudanças climáticas. Na Bélgica jovens como Anula de Wever e Kyra Gantois lideraram marchas pelo ambiente. Nos Estados Unidos, a adolescente Nadia Nazar e em Uganda, na África, Vanessa Nakate (24 anos) assumem liderança nos movimentos ecológicos. No Brasil, todas as pessoas que desenvolvem sua inteligência amorosa, em comunhão com os outros seres vivos se sentiram ligados à profecia da jovem índia Txai Suruí, a brasileira que pôde fazer ouvir sua voz na conferência da ONU. Ela expôs de forma lúcida e corajosa a situação trágica e dolorosa dos povos indígenas, a destruição da Amazônia e de todos os biomas brasileiros. Ela pediu socorro contra a política de morte que ameaça a Terra e o nosso povo.

O protagonismo das juventudes no cuidado com a mãe Terra nos dá esperança e ânimo. São principalmente lideranças jovens que na Igreja Católica levam adiante o Movimento Laudato si. É um desafio profético que Igrejas, dirigidas por hierarquias mais adultas se deixem animar por adolescentes e jovens.   

Há quem se pergunte se o desafio ecológico poderá ser enfrentado pela sociedade civil e quais as propostas que as juventudes nos trazem.

Sem dúvida, a primeira contribuição das juventudes é confirmar o que vemos e interpretamos melhor o mundo e a história quando vemos a partir de baixo, ou seja, quando assumimos o olhar dos movimentos populares, dos povos originários, das comunidades negras e, particularmente das/dos coletivos de juventudes militantes e inseridos nesses setores.

Nestes dias no Brasil, muitos amigos e amigas jovens me afirmaram que têm sido estimulados pelo site “Outras palavras”, brilhantemente coordenado pelo jornalista Antônio Martins e que agora retomou o projeto “Resgate” que entrevista diversas pessoas militantes nos projetos de resistência e de propostas inovadoras para vencermos o caos e ensaiarmos modos novos e originais de organizar o mundo e a sociedade.

Para muitos e muitas de nós trabalhar novas formas de habitar o território, investir no eco-regionalismo, ou pensar em formas brasileiras, o que o militante curdo Abdallah Ocalan chamou de “confederalismo democrático” não significa apenas ensaiarmos a utopia aqui e agora, mas vivermos a espiritualidade libertadora que a maioria das religiões e tradições espirituais nos ensinam. Hoje, a cura da Mãe Terra e os caminhos da ecologia integral são traduções indispensáveis da compaixão budista, da misericórdia muçulmana, do Axé afrodescendente ou do amor ao próximo judaico-cristão. 

sábado, 20 de novembro de 2021

Talvez um alento

 Prof. Martinho Condini


 

Há um ano, João Alberto Silveira Freitas morreu após ser brutalmente espancado por seguranças no estacionamento da loja do Carrefour, em Porto Alegre.

A diferença entre a morte de milhares de negros e negras que já ocorreram neste país, com a morte de João Alberto é que a sua foi filmada e colocada nas TVs e nas redes sociais. Cidadãs e cidadãos dessa sociedade do espetáculo assistiram a pavorosa cena, o que gerou vários protestos pelas principais cidades do Brasil.

Os réus respondem na justiça por homicídio triplamente qualificado: por motivo torpe, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, com dolo eventual. 

Os que espancaram João Alberto estão presos, a fiscal da loja está em prisão domiciliar e alguns seguranças e funcionários que não participaram da ação, mas se omitiram em proteger João Alberto respondem a ação em liberdade.

O processo criminal ainda não foi concluído, apesar das imagens.

A loja em que ocorreu esse trágico acontecimento, foi punida?  O Carrefour Brasil tomou alguma medida propositiva em relação às questões antirracistas em suas lojas espalhada pelo território brasileiro?

Por mais incrível que possa parecer, a empresa durante o ano de 2020/2021 realizou políticas antirracista com ações práticas no intuito de contribuir não só com o processo de conscientização do problema racial, como também com ações educativas e criação de oportunidades de trabalho e estudo para jovens negras e negros.

Mas claro que essas ações por parte da empresa só ocorreram devido a pressão e protestos da sociedade civil, que começaram a fazer saques em suas lojas e campanhas para que as pessoas não freqüentassem mais as lojas dessa rede de supermercados.  

Essas ações positivas realizadas pela empresa não trarão João Alberto de volta, nem acabará com o racismo numa sociedade conservadora,retrógrada e racista como a brasileira, mas são realizações importantes que poderão incentivar outras empresas a ter atitudes semelhantes de políticas antirracistas, sem ter que esperar que outros Joões Albertos  sejam brutalmente assassinados.

Desde de o acontecido a empresa assumiu compromissos públicos e criou um Fundo Antirracista, no valor de 115 milhões de reais com validade de três anos. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público teve um aporte inicial de 25 milhões de reais e os resultados das vendas dos dias 20,26 e 27 de novembro 2020.

O Fundo Antirracista realiza ações internas de combate à descriminação racial e promoção da equidade, ações de mobilização da rede de fornecedores/parceiros e ações de impacto na sociedade, principalmente empregabilidade, educação e empreendedorismo de pessoas negras.

Os investimentos são destinados prioritariamente às bolsas de educação formal e de qualificação profissional, empreendedorismo e projetos socioculturais, além de campanhas educacionais. Todas essas ações sem dúvida são importantes.

Mas não podemos nos esquecer que 56% da população brasileira é negra e a luta é diuturna contra o racismo estrutural (enraizado nas mais profundas entranhas da nossa sociedade), que infelizmente ainda permanece em nossa sociedade.

Enquanto na cultura brasileira prevalecer a ética da branquitude, onde as práticas racistas não são vistas como racismo, e sim como um comportamento natural na sociedade, afinal de contas foi sempre assim, não há nenhuma possibilidade de se baixar a guarda diante desse contexto racial e preconceituoso que nos aflige a séculos.

As atitudes positivas tomadas por essa empresa talvez seja um alento diante de tanto sofrimento, desigualdade e injustiça.

As práticas antirracistas devem permanecer na mente e corações de todos os sujeitos envolvidos de alguma maneira nessa luta contra o racismo estrutural.  

Viva o Dia da Consciência Negra. Que esse seja mais um dia de luta e reflexão, conforme foram os outros 364, com uma diferença: hoje João Alberto será lembrado e homenageado, pois se tornou um símbolo da resistência negra contra o racismo e preconceito no Brasil.     

 

O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com

 

 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O fracasso da COP26: a ausência da razão cordial e sensível

 Leonardo Boff


É lugar comum dizer-se como em tantos cartazes de manifestantes na rua, de fora da grande Assembleia das várias COPs:”o que deve mudar não é o clima mas o sistema” ou também de forma mais direta:”o problema não são as mudanças climáticas mas o capitalismo”. Nesses referidoslogans há muito de verdade. Mas temos que ir além: o sistema e o capitalismo são expressões de algo mais profundo esse sim, o verdadeiro deslanchador das mudanças climáticas que ganham corpo dentro do referido sistema e do capitalismo.

Por detrás do referudi sistema e do capitalismo está um tipo de racionalidade que ganhou feições monopolísticas e, por vezes, tirânicas, pois, se impôs a todas as demais formas como a única válida. Temos a ver com a razão instrumental-analítica e  burocrática sem sensibilidade e cordialidade. Por ela se realizou o mantra dos pais fundadores da modernidade do século XVII-XVIII Descartes, Francis Bacon e outros.  Estabeleceu-se a vontade de poder como eixo estruturador do mundo a construir, poder entendido com dominação impiedosa da natureza, da vida, de continentes, de povos, de classes e de pessoas. Max Weber, em seu texto de 1919 “O métier e a vocação do “savant” (pesquisador e erudito) afirmou: “O destino de nossa época, caracterizada pela racionalização, intelectualização e, sobretudo, desencantamento do mundo, conduziu os seres humanos a banir os valores supremos mais sublimes da vida pública”. Com efeito, hoje, o que conta, é o PIB calculado friamente pelos valores materiais produzidos. Nele tudo que é valioso e confere sentido à vida humana como o amor, a amizade, a solidariedade a compaixão, expressões da razão cordial, não vem computado. Esse mesmo Max Weber no Espírito do Capitalismo mostrou que o espírito de cálculo, a racionalidade instrumental-analítica e a dominação burocrática são co-naturais ao capitalismo. Ele não considera na natureza  qualidades, o seu esplendor e sua rica complexidade mas apenas as quantidades a serem exploradas para o desfrute humano. A Terra é considerada um baú de recursos que, explorados, produzem riqueza material. O ser humano se entende  como “dominus”,”mestre e dono” da natureza e não parte dela. Esquece que veio também do pó da terra como todos os seres que o faz irmão e irmã universal, sonho maior da Fratelli tutti (2020) do Papa Francisco: o frater como alternativa ao dominus. O mundo contemporâneo e cibernético levou às últimas consequências esse destino, duramente criticado na terceira parte da encíclica papal Laudato Si (2015): ”A raiz humana da crise ecológica” (n.101-114). Critica a indiferença e falta de sensibilidade para com os demais humanos e com os seres da natureza.

Ocorre que o ser humano não possui apenas este exercício da razão, a forma dominante de organizar e dominar o mundo. Há nele algo  mais ancestral que é a razão sensível e cordial. Ela alberga o sentimento de pertença, o universo dos valores éticos, o amor, a empatia, o cuidado e a espiritualidade. Acima dela, irrompe a razão como inteligência que capta o sentido do todo e nos abre  ao infinito de nosso desejo que busca o seu objeto infinito adequado: Aquele ser que faz ser todos os seres. Nestas duas expressões da razão – a cordial e a intelectual – se encontram os valores que nos permitem simultaneamente ouvir e sofrer com o grito da Terra e com o grito do pobre, que nos fazem perceber a rede de relações e interdependências estabelecidas entre todos os seres da natureza e da humanidade.

Exatamente a razão cordial e a razão intelectual (que lê dentro: intus legere) estão e estavam absolutamente ausentes em todas as COPs. Ai predominou a razão utilitarista, econômica e os interesses ferozes das grandes corporações, cujo exército de lobistas pressiona os representantes de todos os povos para não acolherem medidas que prejudicam seus negócios e seus capitais como a eliminação do carvão e a gradual superação das energias fósseis em direção de fontes de energia limpa. Chegou-se ao vergonhoso ato, de no momento mesmo do encerramento oficial dos trabalhos da assembleia, o representante da Índia, apoiado pela China, obrigou  in extremis a mudar o texto consensualizado, caso contrário a COP26 acabaria sem nenhuma resolução: ao invés de “abolir” o uso do carvão colocou-se por “gradual superação”, o que permite a continuidade de seu uso e assim fazer aumentar o CO2. O presidente da COP26, consciente das consequências, deixou vir à tona a razão sensível e chorou.

Como seria eficaz e transformador se as COPs começassem mostrando imagens belíssimas do frágil planeta Terra dependurado no fundo escuro do universo. Em seguida exibir a devastação que fazemos de florestas e de inteiros ecossistemas em terra e no mar, no sentido de uma ecologia ambiental. Por fim fazer ver a abissal injustiça social com milhões e milhões de pobres e famintos na linha de uma ecologia política e social. Tudo isso criaria as condições de uma ecologia ética e espiritual: comprometer-se para preservar o jardim herdado e impedir de entregá-lo a nossos filhos e netos como uma savana. Aí surgiria, estou seguro, a necessidade de um laço afetivo para com a natureza, pois esse laço, fundado na  razão cordial e sensível, nos levaria a tomar medidas salvadoras da vida e de nossa própria civilização.Sem coração não há solução para os climas e para a vida sobre esse pequeno e amável planeta Terra.

Urge enriquecer a razão instrumental-analítica, necessária face à complexidade de nossas sociedades, com a razão cordial e a inteligência intelectual. Teríamos então a base de um novo paradigma de convivência, melhor, de convivialidade entre todos, da técnica com a poesia, da produção com a amorosidade, do ser humano com sua Casa Comum, a natureza incluída.

Leonardo Boff escreveu Os direitos do coração, Paulus 2018 e Saber cuidar ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 1999/2021.

 

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

LULA E BOULOS

 FREI BETTO


 

 

       Tenho visto com muita preocupação militantes petistas afirmarem com veemência que não apoiarão a candidatura de Guilherme Boulos ao governo de São Paulo. Será que a esquerda não aprendeu nada com o que aconteceu no Brasil nos últimos anos? Não aprendeu a identificar qual o lado, o compromisso de cada um e a importância de ao menos uma frente ampla?

       Boulos tem sua trajetória construída ao lado dos sem-teto, um dos segmentos mais excluídos deste país, coibido no direito essencial à moradia. Diversas vezes tive oportunidade de presenciar sua abnegação. Foi viver na periferia e lutar com o povo mais sofrido. É uma liderança com pé no barro, e faz o que prega. A coerência é valor fundamental para todos nós que queremos mudar a sociedade.

       Boulos esteve ao lado de Lula nos momentos mais difíceis, quando muitos não queriam estar, com medo de prejudicar sua imagem frente à opinião pública. Foi às ruas defender Dilma contra o golpe. Esteve em São Bernardo, junto com milhares de sem-teto, para lutar contra a prisão injusta do ex-presidente. Visitou Lula no cárcere de Curitiba. O próprio Lula já me manifestou sua admiração e carinho por Boulos.

       Na eleição para a prefeitura de São Paulo, Boulos mostrou ser uma grande liderança da nova geração de políticos progressistas críticos ao neoliberalismo. E parece que isso incomodou, em especial setores da esquerda que ainda não se abrem às novas lideranças jovens. A esquerda precisa ter a capacidade de se renovar, de abrir espaço para os que chegam, de mostrar caras novas. E Boulos representa muito bem essa renovação.

       Na atual e trágica conjuntura em que o Brasil se encontra é triste ver que ainda há quem se apega a diferenças menores e enxerga inimigos onde eles não existem. São os fantasmas de Shakespeare. Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo, em “Grande Sertão, Veredas”, afirma que, ao longo da vida, a pessoa perde aos poucos o medo de viver e de morrer, o medo maior, então, é de “nascer”. Nascer ali significa viver situações inéditas, escolhas diante das encruzilhadas da vida, fatos que simbolizam novos surgimentos esperançosos, como a figura política de Boulos. Não há que ter medo desta nova liderança. Tenho absoluta certeza de que Lula é a pessoa mais preparada para derrotar Bolsonaro e tentar reconstruir o país. E ele sempre soube fazer isso valorizando seus aliados.

       Boulos tem todo o direito de lançar sua candidatura ao governo de São Paulo, principalmente após a bela campanha que fez na capital, ao lado de Luiza Erundina. Considero inclusive a melhor chapa: Lula para presidente e Boulos para governador. Seria um grande sinal de abertura para a renovação.

       Se o PT tomar outra decisão, paciência, está também em seu direito. Mas acredito que o momento histórico cobra de nós unidade. E caso não haja acordo, o mínimo que se espera é respeito. Ataques e falta de generosidade aos que sempre estiveram do mesmo lado, junto com desconfianças de traição, não é um bom caminho, exceto para a direita, que torce pelo fracasso da esquerda.

       Em minha trajetória aprendi a valorizar mais o compromisso social do que a filiação partidária. Essa bússola me permite manter-me firme com os valores que abracei, tendo em vista o sonho de uma sociedade justa e solidária.

       Espero votar, ano que vem, em Lula e Boulos. E que os partidos da esquerda tenham discernimento para construir um ambiente de respeito e unidade, focando suas críticas naqueles que, de fato, são adversários e inimigos da maioria do povo brasileiro.

 

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Espiritualidade, amor e êxtase” (Vozes), entre outros livros. (www.freibetto.org)

 

Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

   

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