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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

A opção de Marina Bandeira

 Eduardo Hoornaert


 

Este texto é um comentário do primeiro capítulo do livro Vigília e Testemunho, uma autobiografia que Marina Bandeira (1925-2019) redigiu entre 2008 e 2011 e que foi digitalizada e publicada como e-book em novembro 2013 pelo ‘Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade’ (CAALL). Esse é o primeiro livro que li por inteiro em PDF (Portable Document Format), projetado em letras grandes em meu computador, o que permite uma leitura fácil.

O livro contém 370 páginas, subdivididas em capítulos que focalizam eventos sucessivos na vida de Marina. Cada capítulo vai subdividido em breves narrativas: episódios vividos pela autora, reflexões esporádicas. Estilo direto, não rebuscado. Afinal, uma literatura bem próxima da oralidade. O primeiro capítulo, intitulado XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, contém 40 subdivisões. O segundo, intitulado Comissão Justiça e Paz, tem 11, o terceiro, Fundação Nacional do Bem-estar do Menor, 7, e o quarto, Retorno à Comissão Justiça e Paz, tem apenas 6 subdivisões. Isso significa que o primeiro capítulo contém três quartos do texto de Marina. É nele que me concentro. Desde já escrevo que, nesse capítulo, entram muitos episódios vividos no Movimento de Educação de Base (MEB), um trabalho que roubou o coração de Marina.

Numa primeira leitura, as memórias de Marina vão descritas de modo linear, sem relevo. Mas, quem lê o Prefácio (pp. 9-11), redigido pelo Professor Cândido Mendes, fundador do CAALL, percebe que, por trás das aparências, o texto tem relevo, sim. Expressa uma ‘opção’. Eis como Cândido Mendes se expressa, em seu estilo característico: Marina Bandeira sempre optou, ao longo de sucessivos empreendimentos, por abandonar os aparelhos para se aproximar do espontaneismo coletivo e de sua auto-organização. O Professor Cândido vê Marina como uma navegadora por muitas águas, mas sempre com bússola na mão, a indicar o ‘norte’. Ela procura passar de trabalhos em aparelhos (trabalhos articulados a partir de organismos estabelecidos por autoridades, sejam estas civis, militares ou eclesiásticas), ao espontaneismo coletivo e de sua auto-organização (trabalhos oriundos de iniciativas).

Neste texto, sigo a intuição de Cândido Mendes. Marina Bandeira, efetivamente, não mergulha de corpo e alma em projetos com a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), que ela aborda no terceiro capítulo de seu livro. Trata-se de um projeto do governo brasileiro e Marina não vê a hora de abandonar os trabalhos na Funabem e voltar à Comissão Pontifícia Justiça e Paz, com a qual colabora ao longo de 25 anos. E, mesmo em relação à CPJP, Marina fica sempre ‘com um pé para trás’. Quando recebe o convite de se tornar Coordenadora Internacional de dita Comissão, sediada em Roma, ela recusa peremptoriamente: essa não é minha praia. Trata-se de um projeto que, afinal, também cai ‘de cima para baixo’ e, daí, corre o perigo de se perder na burocracia.

Em vivo contraste com esses projetos ‘governamentais’, Marina embarca com entusiasmo em iniciativas ‘espontâneas’. Quando ela ouve falar, numa data que não sei precisar, de um grupo de mulheres, no Rio de Janeiro, que se reúne mensalmente, ela se anima em participar (descrevo essa iniciativa no parágrafo 02 deste texto). Com o mesmo entusiasmo recebe, em 1954, a sugestão, por parte de José Vicente Távora, na época bispo auxiliar no Rio de Janeiro, de colaborar na preparação do 36o Congresso Eucarístico Internacional (veja parágrafo 04). Nesse contexto, ela entra em contato o outro Bispo auxiliar do Rio, Helder Camara. Aí mergulha de vez em projetos alternativos, que a levam a participação entusiasta na Cruzada São Sebastião, no Banco da Providência, na Feira da Providência. Tudo isso na segunda parte dos anos 1950. Quando ela ouve falar de escolas radiofônicas educativas, em Natal, por iniciativa de Dom Eugênio Sales, e quando Dom José Vicente Távora a convida formalmente no sentido de colaborar no ‘Movimento de Educação de Base (MEB), Marina não hesita. Dedica ao MEB os melhores anos de sua vida (15 anos). Deixo de comentar muitos outros episódios, pois não é minha intenção escrever uma nova biografia de Marina (!). Apenas ainda aponto aqui que, já nos últimos anos de sua atuação, ela se sente bem a dar suporte logístico à Comunidade de Emaús e agradece o acolhimento que lhe é dispensado pela CAALL. Tudo isso se encaixa na distinção, feita por Cândido Mendes, entre trabalhos ‘mandados’ e trabalhos ‘espontâneos’, no transcurso da vida de Marina Bandeira.

 

Escrevi acima, na primeira frase deste texto, que aqui só pretendo comentar o primeiro capítulo da biografia Vigília e Testemunho. Divido meu texto em cinco parágrafos: (1) O ambiente familiar; (2) Um grupo feminino; (3) Mulheres que mexem com a igreja; (4) O ano 1955. Os parágrafos 02 e 03 constituem, na realidade, uma pré-história da atuação de Marina. Mesmo assim, fiz questão de mencionar esses anos anteriores à atuação de Marina, pois isso ajuda a situar sua vida no contexto mais amplo de uma atuação feminina marcante na cúpula da igreja católica no Brasil, entre 1940 e 1980.  Só no parágrafo 04, Marina entra em cena. Mas não resisto à vontade de juntar um quinto parágrafo (5), em que conto como Marina, certa feita, no Vaticano em Roma, transformou uma audiência privada com o Papa Paulo VI num tête à tête com ele, em cima de todos os regulamentos protocolares. Um episódio que, em meu entender, caracteriza bem o modo de ser de Marina Bandeira.

 

Primeiro parágrafo: o ambiente familiar.

 

Deixemos a palavra com Marina: Por temperamento e formação na família, eu era contra a ditadura. No caso, a de Vargas, do Estado Novo. Minha mãe e minha avó materna estudaram na Inglaterra, logo, tradição democrática. Meu pai se formara em Engenharia nos Estados Unidos. Faleceu aos 45 anos, em 1935, mas gravei diversos comentários sobre os horrores da Revolução Russa: ‘Havia muitos abusos, antes e agora se vingam. É como navio lançado ao mar: tende para um lado, para o outro, depois acerta o rumo’. Criticava os abusos do ditador Mussolini. Contava que amigo seu, mexicano, na universidade, nos Estados Unidos, dizia que a sorte do Brasil era não ter fronteira com eles. Meu pai não pertenceu à Aliança Nacional Libertadora, mas era simpatizante. Em resumo: tinha tendência para a esquerda.

Morávamos em Ipanema, naquela época bairro novo, uma espécie de Liga das Nações, com a presença de vários estrangeiros: funcionários de embaixadas e consulados e de sedes de grandes empresas estrangeiras. Brincávamos com crianças inglesas, alemãs e francesas e, é claro, com brasileiras, como a família Paranhos. Após a morte de meu pai, minha mãe, chefe da família, teve de sustentar os cinco filhos: a mais velha com 13 anos, a segunda com 12, eu com 10 anos incompletos, meu irmão com 6 e a mais moça com 2 e meio. Minha mãe, depois de fazer traduções em casa, trabalhou, durante a Segunda Guerra Mundial, na Base Naval Americana, no Rio – com salário equivalente ao de almirante da Marinha de Guerra do Brasil, mas trabalhava no Carnaval e na Semana Santa etc., pois se tratava de “esforço de guerra”. Enfim, são recordações de criança, de adolescente (Vigília e Testemunho, p. 39).  

 

Ela continua com recordações familiares nas páginas 84-87: Meu vovô pertencera à Loja Maçônica na juventude, fez seus estudos de Medicina em Salvador e no Rio de Janeiro e especializações em Viena, Milão e Paris. Já casado, com dois filhos, foi eleito por Pernambuco para a primeira Assembleia Constituinte da República. Em discurso inflamado em que criticava o marechal Floriano, então no poder, renunciou ao mandato e abriu consultório médico no Rio. Na maturidade, tornou-se católico praticante. A maioria de seus pacientes era inglesa anglicana... Minha mãe e irmãs estudaram no Colégio Holy Child Jesus, na Inglaterra, no qual os católicos, por motivos históricos, eram minoria discriminada. Para facilitar o diálogo com cristãos não romanos, no colégio estudavam a Bíblia, em tempo de forte influência do cardeal Newman, de visão bem aberta. Duas irmãs de minha mãe tornaram-se religiosas da Sociedade do Sacré Cœur de Jésus. A terceira, botânica, aluna do professor Pacheco Leão, após a morte dos pais, veio a ser assistente de professor na Escola de Botânica da Sorbonne, em Paris, mas retornou ao Rio e entrou para o Carmelo de Santa Teresa. A nós, crianças – ela era muito querida –, explicava que, ante a tentação de candidatar-se a “vereadora comunista”, pois eram tantas as injustiças sociais, preferiu a clausura: pedir ajuda constante a Deus. Meu tio, engenheiro, depois fazendeiro, benfeitor dos jesuítas, era conhecido como “jesuíta de casaca”. A família de meu pai era espírita (Allan Kardec), mas papai, ao se casar, rapidamente deixou de frequentar as sessões e passou a apoiar minha mãe em nossa educação católica. Havia parentes judeus. Meu pai trabalhava em empresa de ingleses anglicanos.

Após a morte de papai, mamãe decidiu que os parentes mais próximos eram as tias freiras do Sacré-Cœur. Pagava as mensalidades de nós três, talvez com algum desconto. Minha tia Mère Christina Bandeira era a diretora de estudos. Ao fim do primeiro dia de aula, que consistia na leitura em francês do regulamento do colégio – todas as alunas reunidas no imenso Salon des Actes –, convocou nós três ao seu gabinete, no prédio então inaugurado, no Morro da Graça, no bairro de Laranjeiras. Há tempos não convivíamos com essa tia, por motivo de atritos durante o inventário dos meus avós. A nós três, de fumo no braço (faixa preta, sinal de luto), perguntou se tínhamos entendido o “règlement”. Ante a resposta afirmativa, declarou: “O règlement se aplica a todas as alunas, mas a vocês com maior rigor. A partir de hoje, não há mais tia Christina, sou Mère Bandeira”. Era manifestação do sentido de duty inglês. Nada de nepotismo.

Tive dificuldade de me adaptar ao colégio. No Colégio Notre Dame de Sion, passamos apenas o segundo semestre (até a morte de papai) antes de ir para o Sacré-Cœur de Jésus, onde fiquei dos 10 aos 17 anos. Se não era indisciplinada, também não ganhei medalha por bom comportamento, ou outra qualquer. Mas fiz boas amigas... Para nós, semi-internas, a missa era diária, às 8 horas.

 

Essa educação, que se pode qualificar de ética, rigorosa e elitista, fez de Marina uma mulher que sabe se comportar em todos os ambientes, inclusive na ‘alta sociedade’ nacional e internacional, sempre demonstrando um comportamento ético a toda prova.

Marina é uma ‘senhora’, uma ‘lady’. Há um delicioso episódio que ela mesma conta nas páginas 166-168 de seu livro sob o título: four brazilian ladies.  Cito (com ligeiras adaptações no texto original): Em Nova York, setembro de 1964, no hotel, recebo um telefonema comunicando que ‘Her Majesty the Queen’ (Sua Majestade a Rainha [da Inglaterra]) me pergunta se aceito seu convite para ir à Inglaterra (num programa de intercâmbio cultural) com outras três brazilian ladies, entre os dias 24 de setembro e 21 de outubro de 1964. (Aceito e empreendemos a) viagem em primeira classe na British Airways, um luxo só.  Em Londres, carro com motorista para nossos deslocamentos. Instaladas em bom hotel, onde, no jantar para as boas-vindas, tivemos a companhia de lady Edith Summerskill, médica, antiga deputada pelo Partido Trabalhista (Labour Party), agora na Câmara dos Lordes. Jantar interessantíssimo para nós. Lady Summerskill não escondeu sua surpresa: ‘Não sabia que no Brasil existiam mulheres como vocês!’...Fomos a Birminghan, Stratford-upon-Avon. Assistimos a um balé no Royal Covent Garden e à apresentação de uma orquestra no Royal Albert Hall, etc., etc.

Esse depoimento dispensa comentários, pois demonstra quanto Marina deve ao ambiente em que nasceu e se formou. Depois de ler essas memórias, em que cintila vida e alegria, compreendo o cuidado da sobrinha Marina Bandeira Klink em cultivar a memória da família Bandeira. Vale a pena.

 

Segundo parágrafo: Um grupo feminino.

 

O que vou contar aqui constitui uma pré-história no percurso da vida de Marina Bandeira. A história começa com Virgínia Côrtes de Lacerda, uma leiga católica que, no início dos anos 1940, ensina numa universidade do Rio de Janeiro e se encontra diariamente com o padre Helder Camara por ocasião da missa matutina no Hospital Ana Nery. Ambos passam a trocar livros para leitura. É que o referido sacerdote está passando por uma fase na vida em que se torna um leitor quase obsessivo, de tanto procurar se orientar, numa igreja basicamente autoritária, por paradigmas democráticos (Veja: Lucy Pina Neta, O Dom da Leitura. Helder Câmara e suas bibliotecas, São Paulo, Edições Paulinas, 2018).

Virgínia fica intrigada com as numerosas anotações a mão que aparecem nas margens dos livros que Helder lhe empresta, as datilografa por conta própria e as encaderna. Acha tão interessantes essas anotações, que convoca algumas amigas a ler e comentá-las em reuniões mensais que, bem no estilo da Ação Católica da época e de suas ‘equipes de vida’, constituem momentos de lazer e arte (cinema, teatro, com comentários) alternados com momentos de espiritualidade (uma manhã por mês). Essa vontade, no sentido de compartilhar impressões, planos e espiritualidades, corresponde bem a um sonho do padre Helder Camara, que acalenta, desde muito, formar um ‘círculo de leitura’, como realça Lucy Pina Neta no trabalho acima mencionado.

Com o tempo se forma uma real ‘equipe de vida’ que acompanha o padre e depois bispo Helder ao longo da vida e que, ao sabor de sua insuperável inventividade, no correr do tempo, ganha diversos nomes: Grupo Confiança, Família São Joaquim, Apostolado Oculto, Família Messejanense, ou simplesmente Família. Finalmente, prevalece o nome ‘Família Messejanense’, alusão a um distrito da cidade de Fortaleza no Ceará (terra originária de Helder Camara).

Não me consta que Marina Bandeira, naqueles anos iniciais, tomasse algum contato com essa ‘Família’. Mas quando, a partir de 1954, nela se integrou, foi para valer. Efetivamente, a ‘Famíia’ de Helder Camara tornou-se uma das articulações mais criativas da igreja católica nos anos 1950-80. Os primeiros sinais de aproximação de Marina se deram por meio do padre José Vicente Távora. Eis o que ela escreveu a esse respeito: Minha convivência com conventos mostrou aspectos positivos e negativos. Ao sair do colégio, queria distância da “Igreja dos Padres”. A Europa devastada pela guerra marcou-me; afinal, todos eram países cristãos. O que é amor ao próximo? Onde fica o Evangelho? Foi o padre José Vicente Távora quem, com sua simplicidade, seu empenho diário em favor dos mais fracos, me fez ver que os ensinamentos dos Evangelhos, na prática, passo a passo, eram viáveis. No Palácio São Joaquim, para onde dom Távora me levou, encontrei clima de fraternidade e confiança. Os riscos de atritos pessoais foram resolvidos na raiz por dom Helder, dom Távora e Cecilinha Monteiro (Vigília e Testemunho, p. 89).

 

Terceiro parágrafo: Mulheres que mexem com a igreja.

 

Continuo com algumas palavras sobre a ‘pré-história’ da atuação de Marina. A assessoria, muitas vezes gratuita, de mulheres, em trabalhos de apostolado e secretaria, é algo comum na igreja católica. Mulheres que se prontificam a trabalhar por ‘amor a Deus e à igreja’. Elas consolidam, dia após dia, as bases do poder do padre junto ao povo, frequentemente suportam que esse as trate de forma paternal e costumam ser discretas em relação à sua condição de subalternas generosas.

Mas com o grupo em torno de Virgínia Lacerda e Helder Camara, as coisas são diferentes. Trata-se de um grupo feminino que ‘mexe’ com a igreja católica em sua organização interna.

 

Situado no bairro da Glória, setor histórico da cidade do Rio de Janeiro, palco dos mais garbosos bailes em tempos de Império na segunda parte do século XIX, na presença do Imperador Dom Pedro II, de Dona Teresa, do Marquês do Abrantes, do Visconde do Meriti (dono do Palácio), da alta sociedade do Rio de Janeiro, o Palácio São Joaquim é doado ao primeiro Cardeal brasileiro, Dom Arcoverde, no início do século XX. Desde então, funciona como moradia de Arcebispos e Centro Administrativo/Pastoral da Igreja Católica na Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Em 1948, o Arcebispo Cardeal Dom Jaime Câmara mora aí, quando fica surpreendido, segundo suas próprias palavras, pela conquista do térreo do Palácio por mulheres e, por conseguinte, se encontra na contingência de se retirar no piso superior.

 

Conto em poucas palavras como isso ocorre. Em 1947, o então padre Helder recebe a solicitação de reorganizar, em nível nacional, o movimento da Ação Católica. Ele aceita, mas sob uma condição: que sua ‘Família’ colabore no projeto. Assim, uma equipe feminina se instala no térreo do Palácio São Joaquim. E não demora em impressionar por realizar grandes trabalhos, em nível nacional, no lapso de tempo relativamente curto de quinze anos (entre 1947 e 1962): a reorganização nacional da Ação Católica; as articulações preparativas à criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, alguns anos depois, à criação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). O padre Helder Camara e sua equipe trabalham intensivamente, conseguem centralizar em nível nacional atividades antes desarticuladas, espalhadas pelo país, de militantes da Ação Católica, ao criar um Secretariado Nacional e, com isso, conseguir que os militantes se sintam mais livres da tutela de bispos locais, ao mesmo tempo em que se superam o isolamento e a particularização num país imenso como o Brasil. O modelo de centralização nacional da Ação Católica é tão bem-sucedido que encontra ressonância fora do país: formam-se Secretariados Nacionais da Ação Católica pelo mundo afora. Em 1952, Helder é nomeado Bispo auxiliar no Rio de Janeiro e aplica logo a experiência bem-sucedida da Ação Católica à centralização de dioceses, ou seja, à criação de uma Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que já mostra os primeiros resultados no final do mesmo ano 1952, quando Helder é aclamado, por unanimidade, como primeiro Secretário Geral da CNBB.

 

Na literatura corrente acerca desses sucessos, o foco comum é a figura de Helder Camara. Mas a teóloga Ivone Gebara, numa entrevista em 22 de agosto de 2019, encontra as palavras certeiras: Helder (Camara) é o que é porque havia mulheres extraordinárias que estavam junto dele. Palavras que se aplicam plenamente a Marina Bandeira.

 

Quarto parágrafo: O ano 1955.

 

Três anos depois da criação da CNBB, em 1955, a incansável equipe feminina consegue outro resultado espetacular. Ela é grandemente responsável pelo imenso sucesso do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional no Rio de Janeiro, onde o Brasil se torna, pela primeira vez em sua história, um palco do mundo.  O imenso sucesso projeta o nome de Helder Camara nacional e mesmo internacionalmente, enquanto a ‘Família’ fica na sombra.

Por volta de 1955, Marina Bandeira entra em cena. Deixemos a palavra com ela: Em 1954, deixei meu trabalho no Departamento de Imprensa da Embaixada da Índia para me dar um ano sabático. As férias duraram pouco: Dom José Vicente Távora, recém-nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, meu amigo, me pediu para colaborar na organização do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, que se realizaria entre 17 e 24 de julho de 1955, no Rio de Janeiro. Minha experiência na BBC em Londres (como locutora e tradutora júnior) e os contatos com a imprensa no Rio seriam úteis. Para aceitar, estabeleci uma condição: só estaria disponível uma tarde por semana. Minha primeira tarefa foi assistir a uma palestra de dom Helder Camara, que não conhecia, sobre o Congresso. O orador realçou a importância do evento e a extrema necessidade de voluntários. Na quarta-feira seguinte, lá estava eu no Palácio São Joaquim, para as reuniões semanais. Já na primeira presença, fui apresentada como secretária de dom Távora, na Comissão de Publicidade do Congresso (Vigília e Testemunho, p. 25).

 

Não vou contar aqui a história do famoso Congresso Eucarístico Internacional de 1955. Só quero lembrar que o sucesso foi tanto que provocou um questionamento de seus pressupostos (como acontece frequentemente na história com eventos espetaculares). Para que reunir tanta gente em torno da Eucaristia? O que significa, afinal, Eucaristia? Não significa compartilhamento, beber no mesmo cálice e comer do mesmo pão? O Bispo Auxiliar Helder Camara vivencia na alma a ‘irrupção do evangelho’ em sua vida. Já nos últimos meses do mesmo ano 1955, ele volta sua atenção às 150 favelas que configuram o panorama da cidade de Rio de Janeiro, e pede a colaboradoras e colaboradores do tempo da preparação do Congresso Eucarístico que não abandonem seus postos, mas redirecionem seus trabalhos no sentido de focar a urbanização e humanização das favelas. E no dia 29 de outubro 1955, apenas 90 dias após a conclusão do Congresso, se cria a ‘Cruzada São Sebastião’, um plano ambicioso de urbanização de favelas do Rio de Janeiro no curto prazo de dez anos, de modo que a cidade possa comemorar, em 1966, já plenamente urbanizada, seu quarto centenário. Eis, pelo menos, o planejamento na época. A Cruzada é secundada, desde 1959, pelo ‘Banco da Providência’, uma superintendência filantrópica para manter e supervisionar trabalhos assistenciais espalhados pela cidade a socorrer pessoas em situação de risco. Mais adiante vem a ‘Feira da Providência’, que deve servir para abastecer lares com recursos angariados em atividades assistenciais apoiadas pelo Banco.  A Praia do Pinto, no Leblon, fica perto da zona de apartamentos onde mora parte da burguesia do Rio. Helder, com suas auxiliares, planeja construir aí uma vila popular, para que os pobres vivam próximos de seus locais de trabalho como empregadas domésticas, porteiros, caseiros, serventes. A ideia é revolucionária: que os pobres façam parte da privilegiada Zona Sul da Cidade Maravilha.

Em tudo isso, Marina Bandeira entra de cheio e demonstra seus talentos de organizadora e articuladora. Em 1965, Helder Camara anota numa de suas Cartas Circulares (Carta Circular 19/20-11-1965, Cepe, I, III, p. 266): Marina tem jeito para public relations. Verifiquei pessoalmente, em diversas oportunidades, o grande apreço que ele tinha por Marina Bandeira.

Ela mesma conta a história, que acabo de evocar, em seu livro acerca do período 1940-1964 da história da igreja católica no Brasil, que o CAALL publicou e que, por sugestão de Cândido Mendes, recebeu o título A Igreja católica na virada da questão social. Virada na igreja, virada também na vida da autora.

 

Quinto parágrafo: Tête-a-tête com o Papa.

 

Sei que meu retrato de Marina Bandeira é incompleto e provisório. Relato aqui um episódio de sua vida que compensa um pouco essa incompletude ao flagrar, ao vivo, a personalidade de Marina Bandeira. Nas páginas 194-195 do livro Vigília e Testemunho vai uma deliciosa história vivida por ela em Roma, quando pede uma audiência privada com o Papa Paulo VI para solicitar sua colaboração no encaminhamento de problemas financeiros e humanos que ela enfrenta no Movimento de Educação de Base (MEB). A ‘audiência’ se transforma em outra coisa, como revela o texto a seguir.

 

Eis como Marina relato o ocorrido: Chegou o esperado cartão para a audiência com o papa: dia e hora em Castel Gandolfo (residência de verão). O cartão informava a vestimenta: vestido de manga comprida e véu. Tudo isso tinha em ordem – vestido de duas peças cinza-claro que Leninha, minha irmã, não queria mais. Uma das AFIs (Auxiliares Femininas Internacionais), disponível no horário, me levou no seu Volkswagen ao Castel Gandolfo. Chegamos com bastante antecedência. Recebida no castelo-palácio pelo mordomo, este, após longo percurso, indicou-me o salão, com cadeiras à volta, onde deveria aguardar. O salão, muito belo, não tinha paredes no corredor e se viram as pessoas que voltavam após a audiência. Enquanto aguardava, procurava imaginar a audiência. De todos, a quem perguntava, ouvia: de uma coisa esteja certa, tête-à-tête com o papa não existe. Então imaginava o papa em algum tipo de trono, assessores à volta, e eu em pé, tentando explicar nossos problemas. A sós, sem testemunhas, na igualdade, não existe. É audiência. Escuta-se. (Aí Marina conta que, num certo momento, apareceu Monsenhor Benelli, secretário, que explicou a Marina por que sua hora de atendimento estava demorando tanto). Benelli: ‘O papa sabe que você está aqui... Você ficou por último para não ter limite de tempo’. Perguntei como se fala com o papa: ‘apenas diplomacia ou se diz a verdade?’.  Resposta: ‘Se você não disser tudo o que pensa, cometerá o maior erro de sua vida’. Mais tranquila, esperei mais um pouco até me levarem para a antessala, onde aguardei a saída do ministro de Malta e família.

Paulo VI abriu a porta e indicou que entrasse. Tentei ajoelhar, beijar o anel, mas suas mãos seguraram as minhas, impedindo-me. Encaminhou-se para a escrivaninha e, de pé, mostrou a cadeira defronte. Durante segundos houve cena meio cômica: o papa, cavalheiro, insistia que me sentasse, mas eu não queria sentar-me antes. Devemos ter sentado ao mesmo tempo. Escolhi o idioma francês. Descrevi as dificuldades com o governo militar, a não liberação de recursos. Acentuei as contradições dos bispos: uns apoiavam firmemente, outros criticavam com dureza. Expliquei a viagem prevista para a Europa, na tentativa de conseguir recursos financeiros. Descrevi o estado de exaustão da mocidade, que se debatia, alguns com úlceras e outros problemas de saúde. Sustentei que melhor seria encerrar o trabalho e facilitar a ida dos que quisessem para outros continentes: a África, por exemplo. Eu me empolguei. Disse tudo o que pensava. De repente, vi que o papa, com as mãos nos braços da cadeira, cabeça um pouco para trás, dava uma boa gargalhada… Só então percebi meu dedo apontado para o nariz de sua Santidade! Pedi perdão e procurei me controlar. Paulo VI afirmou: ‘O MEB é muito importante. O melhor trabalho de educação de base da Igreja no mundo. Não pode acabar’. E acrescentou: ‘É inútil procurar recursos, nas entidades católicas da Europa, sem antes ter ‘un bout de papier quelconque’ (um pedaço de papel) do governo do Brasil’. Repeti que era difícil. Resposta: ‘Insista, vai conseguir’. Com seu sorriso amigo, nos despedimos.

 

Isso não é ‘audiência’, é ‘tête à tête’, diálogo ‘horizontal’ com alguém que representa, como ninguém, ‘verticalidade’ e respeito hierárquico. Aparece uma mulher segura de si, sem timidez e sem medo de externar seu pensamento. O dedo em riste (como se fosse cabo de lança) em direção ao nariz de um papa: isso é uma cena impagável! Autenticidade, pragmatismo, espontaneidade, afirmatividade. Esse diálogo, de certo modo, caracteriza a vida inteira de Marina. Ela não se intimida diante do detentor de uma dignidade considerada suprema. Não se faz de humilde suplicante, não se faz representante dos pobres, seu comportamento não tem essa coloração artificial que se percebe em muitos/as que pretendem representar ‘a base da sociedade’. Marina é elite. Elite cultural, intelectual e ética, que representa o melhor que nossa sociedade tem.

De repente, a história de Marina Bandeira evoca tempos passados. Tempos medievais, quando a igreja se empenhou em ‘evangelizar’ as classes altas da sociedade, quando o Senhor do Castelo saía para defender ‘viúvas e órfãos’, ou seja, fracos e indefesos, quando o cavaleiro nobre obedecia às regras da ‘Deuda Dei’, ou seja, respeitava os tempos, no calendário anual, de trânsito seguro (sem medo de assaltantes) nas estradas que levavam a feiras, por onde se escoava a produção local em produtos agrícolas e artesanais. O resultado foi um florescimento sem par de uma economia bastante igualitária. Há historiadores que dizem que essa ‘evangelização da nobreza’ foi a maior vitória que a igreja católica conseguiu, ao longo de dois mil anos de atuação.  

Olhando com atenção se percebe que a história de Marina se encaixa nesse método tradicional de evangelização da elite. É o que se desprende da leitura do primeiro parágrafo deste texto, onde Marina aparece herdeira de uma sucessão de gerações de uma elite cultural, intelectual e ética. É nesse sentido que repito: Marina representa o melhor que nossa sociedade tem.  

 

Por fim, faço votos para que a leitura de Vigília e Testemunho ajude a pessoas de classe privilegiada a fazer sua opção por não privilegiados.

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