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sexta-feira, 29 de abril de 2022

Pensar o impensável? a vida e o tempo

 


                                    Leonardo Boff


Foi-me solicitado escrever alguns pensamentos sobre a vida e o tempo, destinados aos jovens de hoje.Eis o que escrevi:

“Meus caros jovens,

Considerem a vida, o valor supremo, acima do qual só há o Gerador de toda vida,aquele Ser que faz ser todos os seres.Os cientistas,especialmente o maior deles que se ocupou do tema da vida, o russo-belga I.Prigogine afirmou: podemos conhecer as condições físico-químico-geológicas que permitiram o irromper a vida há 3,8 bilhões de anos. O que ela seja, no entanto, permance um mistério.

Mas podemos seguramente dizer que o sentido da vida é viver, simplesmente viver, mesmo na mais humílima condição. Viver é  realizar, a cada momento, a celebração desse evento misterioso do universo que pulsa em nós e quiçá em muitas olutras partes do universo.

A vida é sempre uma vida com e uma vida para. Vida com outras vidas, com vidas humanas, com vidas da natureza e com vidas que por acaso existirem no universo e que um dia puderem se comunicar conosco. E vida para dar-se e unir-se a outras vidas para que a vida continue vida e sempre se perpetue.

Mas a vida é tomada por uma pulsão interior que não pode ser freada. A vida quer irradiar, se expandir e se encontrar com outras vidas. A vida é só vida quando é vida com e vida para.

Sem o com e sem o para a vida não existiria como vida assim como a conhecemos, envolta em redes de relações includentes e  para todos os lados.

A pulsão irrefreável da vida faz com que ela não queira só isso e aquilo. Quer tudo. Quer até a Totalidade, quer o Infinito. No fundo, a vida quer ser eterna.

Ela carrega dentro de si um projeto infinito. Este projeto infinito a torna feliz e infeliz. Feliz porque encontra, ama e celebra outras vidas e tudo o que está ao seu redor, mas é infeliz porque tudo o que encontra, ama e celebra é finito, lentamente se desgasta, cai sob o poder da entropia e acaba desaparecendo. Apesar dessa finitude em nada enfraquece a pulsão pelo Infinito e pelo Eterno.

Ao encontrar esse Infinito repousa, experimenta uma plenitude que ninguém lhe pode dar, mas que só ela pode  desfrutar e celebrar. O infinito em nós é o eco de um Infinito maior que sempre nos chama e nos convoca.

A vida é inteira, mas incompleta. É inteira porque dentro dela está tudo: o real e o potencial. Mas é incompleta porque o potencial ainda não se fez real. E como o potencial é ilimitado, o nosso tipo limitado de vida  não comporta o ilimitado. Por isso nunca se faz completa para sempre. Permanece como abertura e espera para uma completude que quer e deve, um dia, acontecer.É um vazio que reclama ser plenificado. Caso contrário a vida não teria sentido.Como disse alguém:”a vida é oceânica demais para caber num doutrina petrificada no tempo”. Não seria a morte o momento de encontro do finito com o Infinito?

Eis que com a vida,  surge o tempo. Que é o tempo? O tempo é a espera daquilo que pode vir a acontecerEssa espera é a nossa abertura, capaz de acolher o que pode vir, fazer-nos mais inteiros e menos incompletos.

Viva intensamente cada momento do tempo! O passado já não existe porque passou, o futuro não existe porque ainda não veio. Só existe o presente. Viva-o com absoluta intensidade, valorize cada momento, ele traz o futuro para o presente e enriquece o passado.

Cada momento é a irrupção do eterno. Só pode ser vivido. Não pode ser apreendido, aprisionado e apropriado. Só ele é. Um dia foi (o passado) e um dia será (o futuro). Do tempo nós  só conhecemos o passado. O futuro nos é inacessível porque ainda não é. Nós, no entanto, vivemos o “é” do presente que nunca nos é concedido prendê-lo.Ele simplesmente passa por nós e se vai. Ele possui a natureza da eternidade que é um permanente “´é” O tempo assim significa a presença fugaz da eternidade. Nós estamos imersos na eternidade.

Viva esse “é” como se fosse o primeiro e o último. Assim você mesmo se eterniza. E eternizando-se participa Daquele que sempre é sem passado nem futuro. Um é eterno.

Podemos falar do tempo, mas ele é impensável. Esse é  eterno está vinculado ao que as tradições espirituais e religiosas da humanidade designaram como Mistério, Tao, Shiva, Alá, Olorum, Javé, Deus, nomes que não cabem em nenhum dicionário e estão para além de nosso entendimento. Diante dele afogam-se as palavras. Só o nobre silêncio é digno.

Mesmo assim cada um deve dar-lhe o nome que é o nome de sua participação nEle e de sua total abertura a  Ele. Esse nome fica inscrito em todo o seu ser temporal, mas principalmente pulsa em seu coração. Então o seu coração e o coração dAquele que eternamente é, formam um só e imenso coração”.

Dedico este texto ao prof.Wilian Martinhão que organizou um livro “O tempo, o que é? Uma história dos tempos” para o qual eu fiz  a Apresentação que me permito publicá-la antes de a  obra vir à lume.

Leonardo Boff,teólogo,filósofo e escritor

 

quinta-feira, 28 de abril de 2022

O DEBOCHE DO CAPITÃO E O RISO DO GENERAL

 

Frei Betto


 

       Todos sabemos que o capitão que atualmente ocupa a presidência da República é notório defensor da ditadura militar, apologista da tortura e do assassinato (lamentou que o regime militar não tenha “matado uns 30 mil”), e exalta como herói o coronel Brilhante Ustra, responsável pela morte, na tortura, de inúmeros presos políticos. 

       Agora que o historiador Carlos Fico e a jornalista Miriam Leitão divulgaram os áudios dos juízes do Superior Tribunal Militar, referentes às atrocidades praticadas nos porões da ditadura, o general Mourão, vice-presidente da República, deu risada ao comentar que tais crimes, cometidos em nome do Estado, não devem ser investigados: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô”. 

       Sim, também as vítimas de Auschwitz e os algozes nazistas estão quase todos mortos. No entanto, desde 2021 EUA, Alemanha e Canadá abriram processos legais contra funcionários dos campos de concentração alemães. Como a maioria dos líderes nazistas nasceu no século XIX e provavelmente está morta, o objetivo agora é capturar e julgar aqueles que cooperaram com o extermínio praticado pelo Terceiro Reich. 

       Efraim Zuroff, coordenador de investigações do Centro Simon Wiesenthal de Jerusalém, calcula que “várias centenas” de criminosos estão vivos. “Muitos vivem em países como Alemanha e Áustria, que têm sistemas de saúde muito bons e, portanto, uma alta expectativa de vida”, observa.

       No Brasil, a impunidade, assegurada pela esdrúxula e injustificável Lei da Anistia (como anistiar quem jamais foi punido?), permitiu que algozes da ditadura militar, assassinos e torturadores, jamais respondessem perante a Justiça pelos crimes cometidos. Algum dia essa aberração deverá ser corrigida. “Os caras já morreram tudo”, mas não o senso de justiça das vítimas e de seus familiares e a memória nacional.

       Duas vezes estive nos cárceres do regime militar: 15 dias em junho de 1964, sem que tenha havido acusação e processo, e quatro anos (1969-1973) sob a acusação de “terrorismo”. Fui julgado dois anos após ser preso e condenado a quatro. O STF reduziu minha sentença para dois anos no mês em que eu completava, na condição de preso comum, os quatro de encarceramento...

       Manter viva e conhecida a história dos 21 anos de ditadura é uma missão que muito me honra. Trabalhei, com o jornalista Ricardo Kotscho, na  redação do clássico “Brasil: Nunca Mais” (Vozes), que descreve os crimes da ditadura, segundo arquivos da Justiça Militar. E produzi quatro obras sobre os anos de chumbo: “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), “Batismo de sangue” (Rocco) – levado às telas de cinema pelo diretor Helvécio Ratton -, “O dia de Ângelo” (Brasiliense) e “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco). 

       É preciso que escolas e universidades se debrucem sobre aquele período trágico da história do Brasil. Conhecer o passado é evitar, no presente, que se repita no futuro. E, hoje, que o país tem um governo militarizado, que de fato adota o lema “Pátria armada, Brasil”, e reverencia o golpe militar de 1964, se faz urgentemente necessário trazer à tona as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura e os retrocessos que impôs à nação, como a censura às artes e à cultura, a falsificação dos índices econômicos, a corrupção desenfreada na construção de obras faraônicas. 

       Rememorar é um ato político e exige a ação da Justiça.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 27 de abril de 2022

PALAVRAS DE PEDRO - 27.04.2022

 


Dom Pedro Casaldáliga




 

        Com maior ou menor lucidez, com lógica vital mais ou menos consequente, já descobrimos a sociedade feita sistema, dentro da estrutura que nos envolve e condiciona, sob a inevitável solicitação da conjuntura diária.

        A Igreja, perita em eternidade e menos perita em história, durante séculos, muitas vezes e facilmente, só via pessoas; ou indivíduos isolados, ou, mais dicotomicamente ainda, às vezes só via almas . . .

        Sem nunca deixar de enfrentar esta globalidade estrutural na qual se forja a história humana e dentro da qual acontece o Reino, deveríamos agora redescobrir, comprometidamente, a pessoa, membro da sociedade e protagonista da História e do Reino.

        O homem — o homem e a mulher — é um ser estruturado e estruturante. A história, o sistema e o Reino o fazem, mas, por sua vez, ele faz o sistema, a história e o Reino.

        Para nós, cristãos, o homem é, antes de mais nada, a imagem viva de Deus, que Jesus Cristo encarna em plenitude e corporalmente, como Unigénito do Pai e como irmão maior, dentre outros irmãos.

        Ele, Jesus de Nazaré, é o protótipo do homem, porque, superando vitoriosamente a velha humanidade da escravidão, do pecado e da morte, “criou em si mesmo a nova humanidade” (Ef 2,15).

        Ser homem, ser verdadeiramente humano, para nós, terá que ser “morrer constantemente ao homem velho” e transformar-nos gradativamente nesse homem novo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo e filho da pobre aldeã, Maria.

 

Pedro Casaldáliga Na Procura do Reino

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

terça-feira, 26 de abril de 2022

Portas fechadas, Presença inesperada

 

2º Domingo da Páscoa


Jo 20, 19-31

 

Marcelo Barros

                

Neste 2o Domingo da Páscoa, o evangelho lido hoje nas Igrejas (João 20, 19- 31) revela que todas as vezes que nos reunimos no nome de Jesus refazemos e atualizamos aquele encontro dos discípulos com o Ressuscitado. Eles estavam reunidos em uma sala de portas fechadas, com medo dos sacerdotes e doutores da Bíblia. Atualmente, vivemos em um mundo dominado por guerras (nesta semana uma reportagem falava em 28 guerras maiores e 60 conflitos internos em países e o saldo de pessoas mortas é enorme), organizado para sistematicamente impedir milhões de pessoas a viverem uma vida digna e com seus direitos humanos reconhecidos. Para triplicarem seus lucros e ampliarem sempre mais o seu luxo, a elite de menos de 1% da humanidade precisa manter bilhões de pessoas em situação de semi-escravidão. No Brasil, nesta semana, o vice-presidente da República declarou rindo que os militares denunciados como torturadores na época da ditadura são heróis e que heróis matam.

Conforme este evangelho, naquele domingo, a pequena comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus estava reunida de portas fechadas. Hoje, é o mundo inteiro que vive de portas fechadas. Nossas cidades são marcadas pelos muros altos dos edifícios nos quais as pessoas se aprisionam com chaves e senhas de portões eletrificados e nos bairros de periferia, as portas fechadas com medo de milícias e gangues. Cada país fecha de mais a mais suas fronteiras contra migrantes e refugiados. Diante deste cenário, vivemos em um mundo  sob o domínio do medo.

A boa notícia deste evangelho é que mesmo com todas as portas fechadas, Jesus Ressuscitado se deixa ver pelos discípulos e lhes traz a Paz, a alegria e a reconciliação para iniciar uma nova missão. O Cristo vivo vem e se insere em nossa realidade e não há portas fechadas que impeçam a sua presença. Ele se deixa ver. Só precisamos despertar para a sua presença.

Neste evangelho, o que, em primeiro lugar, o Ressuscitado mostra aos seus amigos e amigas são suas chagas. Não mostra um corpo glorioso e etéreo e sim as chagas da cruz. É o curador ferido. Ele ressuscita desse modo: revelando as feridas que têm no corpo e na alma. Assim, nos ensina o caminho da ressurreição. Pede que vençamos o medo e a vergonha e aceitemos revelar nossas feridas interiores. Deixemos que os amigos e amigas possam tocar e cuidar de nossas feridas. Apesar de, pessoalmente, ter muita dificuldade de viver isso (aceitar ser cuidado), só quando assumimos nossas chagas  e aceitamos que os amigos/as cuidem delas, é que podemos viver a experiência da ressurreição. Só assim, podemos anunciar um modo novo de viver ressuscitados. Assim, as chagas, do Ressuscitado e as nossas, se tornam como que chagas luminosas. É ao reconhecer Jesus vivo nas pessoas feridas, que os discípulos se enchem de uma imensa alegria, como a alegria que Jesus havia prometido na ceia quando disse: "Hei de ver vocês outra vez e vocês se encherão de uma alegria tal que ninguém poderá tirar de vocês essa alegria" (Jo 16, 20).

             Este domingo é como o oitavo dia da ressurreição. Assim como Tomé era discípulo, mas não estava com o grupo no primeiro domingo, também nós não estávamos. Tomé nunca aceitou Jesus ter vindo a Jerusalém e deixou claro no capítulo 11 que ele estava ali forçado. Acreditava em um Jesus, enviado de Deus, mas sem cruz.... E agora não acreditava mais. Os outros tinham medo, tinham dúvidas, não sabiam se acreditavam ou não, mas seja como for, ficaram juntos em uma sala fechada... Tomé, não. A fé dele era individualista, era eu e Deus... Queria ser discípulo de Jesus, mas sem comunidade. Com os outros, ele não se dava. E não previa cruz, chagas. (Só se eu tocar nas chagas dele, vou crer que isso é assim, é real).

No oitavo dia da ressurreição, portanto, no domingo de hoje, Jesus se deixa ver e se deixa tocar... Ao se mostrar aos discípulos, mesmo com portas fechadas, não mostra nenhuma luz especial. Não fala de vitória nenhuma. Não voa, nem parece ter nada de especial... Mostra as chagas e pede que Tomé toque e veja o sangue ainda correndo na ferida que tem no peito nu. Só quando a gente tem coragem de mostrar as nossas feridas interiores e sociais), parece que a vida pode se recompor e - se tornar nova...

     Jesus ressuscitado ressuscita os discípulos. Faz eles passarem do medo à liberdade, à paz, à alegria e ao perdão. Hoje, Ele nos convida para reconstruir as nossas vidas, através do perdão a nós mesmos e aos outros. A ressurreição de Jesus se renova para nós hoje. Como Tomé, podemos tocar nas chagas do Ressuscitado nas pessoas feridas pelas injustiças da vida. 

Tanto na época em que o evangelho de João foi escrito, como nas Igrejas e no mundo de hoje, muitas pessoas creem em um Cristo aéreo, celestial e pouco humano. Nós, da caminhada do Cristianismo Social e Libertador, proclamamos a fé em um Jesus histórico, real, com corpo e com chagas. É diante do ser humano meio nu, ferido e sangrando, que fazemos como Tomé, nos prostramos e dizemos: Meu Senhor e meu Deus. Se não formos capazes de fazer isso diante das pessoas concretas, cada uma com suas feridas, não testemunhamos a ressurreição de Jesus. 

 

Tocar nas chagas de Jesus é tocar nas chagas da humanidade hoje e ser capaz de reconhecer a presença do Espírito nas vítimas da sociedade atual. E são tantas pessoas. As pessoas que, neste momento, nos diversos serviços, vivem a solidariedade e cuidam dos outros tocam nas chagas de Jesus e testemunham ressurreição.   Deixemos que os povos originários, cuja semana celebramos agora, entrem na sala onde estamos fechados e nos mostrem suas feridas. São ressuscitados porque resistem há mais de 500 anos e nos ensinam lições de resistência. Suas feridas são provocadas pela mesma doença que atinge toda nossa sociedade: ambição e o desamor.

Acolhendo-nos uns aos outros/umas às outras como presença do Cristo Ressuscitado, podemos experimentar, mesmo em meio às dores e aos medos justificados de cada dia, uma imensa alegria, a mesma alegria que os discípulos sentiram ao ver o Ressuscitado e a plena reconciliação conosco mesmos, uns com os outros e com Deus. Amém. Aleluia.

 

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Amanhecer (Para Lili e Salomão)

 Goretti Santos




Chegou em silêncio a manhã….

Ontem, de risos e sorrisos,


Piadas soltas , gargalhadas…

Infortúnios transformados em choro de tanto rir…

Chegou em silêncio, hoje de manhã…

Porque ontem

Ontem foi barulho de falas, de histórias, de opiniões…

Discordar, é só motivo de temperar  para a conversa cozinhar em fogo brando, como toda boa iguaria.. ..

Chegou de manhã…. silêncio…

Nenhuma demanda, ninguém no portão….

Chegou a imensa saudade de vocês….

Mas  a alegria do ontem

Renova a chama da Vida,

E traz consigo

A esperança

De uma Nova manhã…

domingo, 24 de abril de 2022

RECOMEÇO

 

Marcelo Mário de Melo


 

Bater o pó

lavar as mãos

firmar os pés.

 

Selecionar

e reciclar

o lixo.

 

Das fezes

fazer estrume

a novas lavraturas.

 

Não deixar

sujeiras de ontem

nas estradas de agora.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

DEUS FEITO PÃO

 Frei Betto


 

       Quem brincou quando criança no domingo de Páscoa e escondeu ovos de chocolate no jardim? Resta em nós uma perene idade da inocência. A ternura denuncia a veracidade do amor, sublinha Milan Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, as missas de domingo, as procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água benta, o silêncio acolhedor de igrejas que o gótico não teve vergonha de desenhar como vulvas estilizadas.

       Jesus ressuscitou! - celebra esta festa de aleluias. Ainda que a razão não alcance a dimensão do fato pascal, a intuição capta a crise da modernidade a nos induzir a um mundo sem mistérios e enigmas. Mundo sombrio, onde os mortos se sobrepõem aos vivos.

 Até o advento do Iluminismo, a inteligência recendia a incenso.  Copérnico e Galileu decifraram a harmonia da natureza como reflexo do Criador, e Newton acertou seus cálculos pelos ponteiros dos relógios das catedrais. Depois, o dilúvio inundou os claustros. A razão irrompeu soberana e relegou à superstição tudo que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.

       De que valem perguntas quando se julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde, Baudelaire e Rimbaud tatearam ávidos em busca de um Deus capaz de aplacar-lhes a sede de Absoluto. Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges das vestes eclesiásticas, escancarou-lhes a alma atormentada pelos demônios da dúvida.

       Nietzsche roubou o fogo dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o inferno são os outros e erigiu o absurdo da morte em ato final que destitui a vida de qualquer sentido.

       Entre angústias e utopias, o último século foi também marcado pelo enigma Jesus. Corações e mentes o acolheram como paradigma: Claudel, Simone Weil, François Mauriac, Chesterton, Péguy, Graham Greene, Alberto Schweitzer etc. No Brasil, Murilo Mendes, Sobral Pinto, Gustavo Corção, Tristão de Athayde, Guimarães Rosa, Hélio Pellegrino etc.

       Hoje, pavores transcendentais já não atribulariam a alma poética de um William Blake. Entre tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus que se fez homem e, de homem, virou pão. Pai Nosso/pão nosso. Esta concretude assusta. A fé cristã não proclama a ressurreição da alma, mas "da carne". Jesus não é a figura do Olimpo grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu crucificado, por razões político-religiosas, na Palestina do século I, e cujas aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária. Que autor criaria um personagem imortal com chagas nas mãos e ansioso por comida? As narrativas evangélicas são, tecnicamente, descrições de um fato objetivo. À luz da fé, proclamação de que Jesus é o Cristo.

       Antes de cair em mãos da repressão que o assassinou, Jesus fez-se comida e bebida. Poeta e profeta, dominava a linguagem realista dos símbolos. Eis aqui o desafio atual à inquietude da inteligência. O pão repartido passa a ser corpo divino; o vinho partilhado, aliança feita com sangue e prenúncio da festa sem fim. O Deus de Jesus não é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os pecadores. É Abba, o pai amoroso ("mais mãe do que pai", disse João Paulo I), cujo dom maior é a vida.

       Já não temos as longas guerras que inquietaram espíritos como Tolstói e Camus; o que vemos, de Kiev a Guantánamo, é escabroso comparado à engenharia marcial dos exércitos em conflito: a estrada rumo ao futuro palmilhada de corpos degradados e famintos. Hoje, tropeça-se na rua em seres esquartejados em sua dignidade. Todos os discursos oficiais e ajustes fiscais ofendem a condição humana por exaltarem a concentração do lucro e ignorarem a partilha da vida. Em sua hipocrisia, o sistema salva sua aura cristã e exclui o pão. A metafísica monetarista estabiliza moedas e desestabiliza famílias; reduz a inflação e aumenta a miséria; socorre bancos e multiplica o desemprego; abraça o mercado e despreza o direito à vida - e vida em abundância, para todos.

       Agora, a globocolonização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo individualiza. Estamos à deriva neste mundo hegemonizado pelo capitalismo, cujas pitonisas proclamam que "a história acabou".

       Páscoa é travessia - também para uma ética política que torne o pão acessível a cada boca e o vinho, alegria em cada alma. Somos nós que, em vida, precisamos ressuscitar as potencialidades do espírito, premissas e promessas de uma verdadeira dignidade humana. Num misto de Marcel Proust e Caçador da Arca Perdida, necessitamos urgentemente empreender a busca da consciência perdida, onde a solidária indignação contra as injustiças tenha cheiro de madeleines apetitosas. Caso contrário, seremos engolidos por esses simulacros de pirâmides - os shopping centers - que sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a pobreza de espírito de uma geração que tinha, como suprema ambição, meia dúzia de engenhocas eletrônicas.



Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

PALAVRAS DE PEDRO - DIA DA RESISTÊNCIA INDÍGENA

 Dom Pedro Casaldáliga 




      Mas, claro, para assumir assim a causa indígena, é preciso despojar-se de todo etnocentrismo pastoral, de todo colonialismo. Mas “despojar-se”. Despojamento que deve ser sumamente lúcido, inclusive cientificamente, e talvez heroico. Como não, se isso implica deixar muitas coisas, pensar de outra maneira, renunciar, em parte, até à própria religião?

     Já não é renunciar simplesmente a costumes, a modos de comer e de vestir, ou de ver e de sentir. Sequer se trata de renunciar somente às filosofias. É renunciar inclusive à própria “religião”. Não digo à fé, claro. . .

     Para falar do momento atual da luta pela causa indígena seria bom partir de uma visão mais global, continental. Depois de superar uma primeira fase colonialista (que não descrevo; aí estão os livros de História), na qual um Las Casas disse grandes coisas muito bem ditas, não é?. . . Este é um santo de minha devoção, ao qual eu levantaria um monumento — embora não faça falta — em todas as aldeias indígenas do Continente, e diante de todos os conventos de frades missionários e de todos os bispados, para que nos entrasse pelos olhos, feito pedra e feito grito, o Las Casas que nos avisou a tempo e parece que só depois de quatro séculos começamos a despertar. . .

     Com uma visão assim, um pouco continental, haveria que destacar algumas figuras em vários lugares. No México está dom Ruiz; Samuel Ruiz, que foi secretário do Departamento de Missões do CELAM, figura extraordinária que merece muito dos povos indígenas e da Igreja da América Latina. Poder-se-ia destacar também o padre Meliá, catalão no Paraguai, antropólogo e missionário, que trabalha com os índios Guarani. E outros antropólogos missionários, outros núcleos de missão que, em vários lugares da América Latina, já há alguns anos partiram para uma autocrítica, despojaram-se do preconceito religioso latino, romano, ocidental etc. e souberam distinguir bem entre religião e fé, assumiram as descobertas da Antropologia, da Etnografía e superaram inclusive o neocolonialismo que houve no próprio Concilio e que se deu no pós-Concílio. Medellín mesmo, praticamente, sequer pensou nos índios; apesar da lucidez com que Medellín soube enfrentar o Continente e seus problemas maiores, não é? E são 50 milhões de índios na América Latina. . . E são povos que estão para morrer, com essas raízes e potencialidades evangélicas. . .

 

Pedro Casaldáliga, Na Procura do Reino

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

terça-feira, 19 de abril de 2022

Páscoa para nós e para o mundo

 Marcelo Barros


 

Parece estranho falar em Páscoa para o mundo, cada vez mais sufocado pela crueldade de uma elite sem coração que organiza a sociedade de modo a sacrificar milhões de pessoas. A imprensa ocidental denuncia os crimes do governo russo na Ucrânia e cala o genocídio provocado pelo império dos Estados Unidos, responsável pela maioria das 28 guerras que destroem o mundo atual. O governo chinês acusa o serviço de inteligência norte-americano de fabricar armas biológicas e usar até aves migratórias para espalhar epidemias mortais em países que o império considera indesejáveis.

Nestes dias, desde a sexta-feira, 15 de abril, as comunidades judaicas celebram a  Pessach de 2022, que chamam “A Festa da nossa libertação”. As Igrejas cristãs se incorporam a esse mesmo espírito e também celebram a Páscoa. Em todas as tradições religiosas, é o único caso de duas religiões diferentes celebrarem a mesma festa e ao mesmo Deus, embora com formas e até significados diversos. De fato, as Igrejas retomam a memória do Êxodo bíblico, mas celebram dão a essa festa o sentido do memorial da morte e da ressurreição de Jesus, como fonte de libertação total e de vida nova para toda a humanidade.

Falar em Páscoa para o mundo não significa pensar que este vá ser transformado por algum milagre ou deva ser incorporado a alguma tradição religiosa. A Páscoa teve o seu início na celebração da primavera no antigo Oriente Médio. Tribos festejavam a lua cheia e dançavam ao ar livre, saboreando as primícias da colheita ou do rebanho de ovelhas. Em hebraico, o termo Páscoa significa passos. Conforme a Bíblia, essa celebração anual da vida, tornou-se a comemoração da vitória do povo hebreu que, pela força do Espírito, se libertou da escravidão. Jesus celebrou a Páscoa, doando a sua vida e abrindo a toda a humanidade a possibilidade de viver a liberdade dos filhos e filhas do Amor Divino.

Não se pode reduzir a Páscoa apenas à celebração religiosa. Não foi essa a tradição bíblica e nem deve ser essa a visão cristã. Os evangelhos chamam de “reino de Deus” o mundo transformado, de acordo com o projeto divino de amor, justiça e paz.  Diariamente, os cristãos oram, não para que Deus os conduza a um mundo à parte e sim: “Venha a nós o teu reino”.

No Brasil atual, mais de 20 milhões vivem a insegurança alimentar. A cada dia, aumenta a população jogada nas ruas das cidades como refugiados em campos de concentração. Cada ano, o 19 de abril é consagrado pela ONU como o dia pan-americano dos povos indígenas. Em Brasília, representantes dos povos originários acampam para denunciar o permanente desrespeito da sociedade dominante aos direitos dos índios, assegurados pela Constituição de 1988. À medida que nos unimos à causa dos povos originários e todas as pessoas marginalizadas por este sistema cruel que domina o mundo, testemunhamos que um novo mundo é possível e nos dispomos a caminhar juntos, para que a justiça e a paz possam brilhar nas relações humanas e na nossa comunhão com a mãe Terra. Já idoso, Dom Pedro Casaldáliga ensinava: “Nossa missão é espalhar pelo mundo ressurreição”.  

 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

FRANCISCO: ESTRATÉGIA DA IGREJA E DO REINO DE DEUS

                                                           Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

            O Papa Francisco tem demonstrado muitas qualidades e virtudes ao longo de seus nove anos de pontificado. Diferentes pessoas e instâncias têm apreciado e elogiado publicamente sua sensibilidade humana e pastoral, sua inteligência que responde prontamente às perguntas difíceis ou mesmo insidiosas de jornalistas e curiosos, sua capacidade de pensar de forma ampla e grande os problemas do mundo e as crises pelas quais passa a humanidade neste século XXI. 

            Sob sua liderança, a Igreja Católica – que ele sempre desejou “em saída” – ultrapassou realmente o nível eclesiástico como único fórum de diálogo e ganhou as praças, as ruas, os espaços acadêmicos, as instituições seculares.  Enfim, por todo o planeta, entre católicos e não católicos, crentes e não crentes, a figura de Francisco é respeitada e ouvida como única liderança positiva existente na atualidade. 

            Por outro lado, não são poucos igualmente os inimigos do Papa que, aberta ou em segredo, militam incansavelmente contra suas iniciativas.  Minam Francisco como pessoa, suas propostas, fazem movimentos que são obstáculos aos movimentos por ele iniciados, acusam-no infundadamente. E, sobretudo, adotam uma atitude de silêncio mal-intencionado, interpretado como macabra aposta que o Papa, agora com 84 anos, envelhece e seu pontificado não deve durar muito.  Nos bastidores correm nomes sobre seu possível sucessor. 

            No entanto, os detratores de Francisco fazem mal em não levar em conta uma das virtudes mais importantes do Papa: seu gênio estratégico.  Bergoglio é alguém que pensa e vê longe.  E age em consequência. Por isso, vem realizando desde o início de seu tempo à frente da igreja de Roma e como chefe da Igreja Católica uma reforma já iniciada com decisões pontuais e significativas. 

            É assim que a nomeação dos bispos com “cheiro de ovelha”, de perfil mais pastoral e mais próximos ao povo começa a ser visível e apresentar volume e espessura nas fileiras episcopais. Do mesmo modo, as nomeações de cargos importantes de coordenação e decisão dentro da cúria romana: de mulheres, leigos e outros segmentos representativos do povo de Deus, que até então permaneciam fora deste corpo que faz funcionar o cotidiano da Igreja Católica. 

            Criou também novos dicastérios, extinguindo outros ou reagrupando-os por afinidade.  Assim, foi promovendo um certo “enxugamento” de uma cúria que se encontrava pesada devido à existência de uma multiplicidade de organismos e setores para além de suas necessidades reais e, sobretudo, pastorais. Por trás da estratégia do pontífice pode-se vislumbrar o desejo de que uma cúria mais ágil e enxuta sirva melhor ao único propósito da existência da Igreja, qual seja, o de anunciar o Evangelho. 

            Como confirmação do que se diz acima, no último dia 19 de março, festa de São José, foi anunciada uma nova Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana e seu serviço à Igreja e ao mundo. A nova Constituição entrará em vigor a partir do domingo, 5 de junho, festa de Pentecostes. Seu título diz muito sobre o conteúdo e principalmente a respeito da intenção e objetivo com os quais é promulgada:  Praedicate evangelium.  

            O Papa não reforma a cúria apenas pelo desejo de reformá-la ou mesmo para afastá-la do que fizeram seus predecessores.  Reforma-a para que  possa realizar melhor seu serviço por excelência, que é a pregação do Evangelho, o anúncio da Boa Notícia de Jesus Cristo ao mundo de hoje. E a festa de Pentecostes é escolhida propositalmente para a entrada em vigor dessa reforma tão esperada e por fim realizada: é a festa da liberdade e da abertura universal.  A festa na qual o Espírito, como artífice da linguagem total, quebra as barreiras linguísticas e semânticas, rompe as barreiras das diferenças e abre ouvidos e línguas ao diálogo e ao entendimento.

            Uma cúria pesada e carregada de excessivas estruturas não ajuda a esse diálogo que Francisco vem tentando incansavelmente realizar.  Uma cúria reformada, mais enxuta e mais leve, seguramente será um instrumento poderoso para abrir caminhos e corações na direção de mais vida para todos, construindo uma fraternidade universal onde todos os seres vivos possam chegar à vida em plenitude.

            É hora de aplaudir e louvar o pontífice por sua estratégia que não recua diante de nada que possa ajudar a Igreja a realizar o sonho de Jesus: o Reino de paz, justiça e amor. 

Somos agradecidíssimos, Santo Padre.  Siga em frente e conte com nossa oração e nossa colaboração.  Amém. 

 

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas Editora), entre outras obras.



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