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domingo, 3 de abril de 2022

D E S A B A F O

 Marcelo Mário de Melo


Em memória de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho (*)

 

Isto não é uma exposição acadêmica nem um requebro retórico. É um desabafo.

Talvez muitos preferissem a linguagem das estatísticas.

Esta a coluninha dos torturados.

Aqui os estropiados fisicamente com subdivisões para hematomas cicatrizes fraturas lesões e toda a nomenclatura da medicina torturante de urgência.

Aqui os mutilados mentalmente com subseções reservadas a psicoses neuroses fobias úlceras gastrites insônias obsessões apatias.

Neste espaço reservado a Torturas/Mortes computem-se “Suicídios”, “Mortos em Tiroteio” e “Tentativas de Fuga”.

E nesta linha verde-acinzentada escreva-se com sangue: Distensão/Desaparecidos.

Poderia preencher um gráfico que satisfaria ao esteticismo seco do mais exigente burocrata. Tão imponente e preciso aos espíritos formalistas como as tabelas do imposto de renda e os projetos de reforma administrativa.

Mas os que precisassem disso para avalizar nossas denúncias jamais seriam convencidos de nada porque há muito estariam vacinados contra a verdade ou formados nas filas do lado de lá.

Quem não puder ser convencido hoje pelos exemplos esparsos indícios ruídos abafados da máquina de triturar presos políticos abrirá certamente os olhos só se os abrir quando as verdades vivas de agora passarem à respeitabilidade morta dos museus de amanhã ou se a máquina começar a moer a sua própria carne os próximos.

Nós os presos políticos do Brasil atual nos dirigimos àqueles que sabem pressentir a cascavel pelo sibilo e se dispõem a renegar o seu veneno.

Mesmo que apenas com o grito de alerta ou o gesto mudo repulsa de quem se associa à dor.

(*) Escrito em outubro de 1975, em cela do Esquadrão Dias Cardoso, Bongi, Recife-PE, no intervalo entre uma greve de fome e outra, depois dos assassinatos sob tortura, em São Paulo, do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho.


Marcelo Mário de Melo é poeta, escritor e militante de esquerda


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