Eduardo Hoornaert
Num primeiro
trabalho de uma série que publico sob o título ‘o espírito de Jesus’,
refletimos sobre o fato que não nos é fácil recuperar esse espírito, pois somos
herdeiros e herdeiras de uma longa tradição que nem sempre correspondeu (nem
corresponde) ao que animava Jesus de Nazaré. Num segundo texto consideramos
mais positivamente a ideia que o próprio Jesus tinha de suma missão. Nesta
terceira proposta de reflexão, proponho que nos façamos a seguinte pergunta: a
leitura dos evangelhos conduz, por si só e automaticamente, à compreensão do
espírito de Jesus?
Essa pergunta não é
de ontem. Nos últimos dois séculos se empreenderam sucessivos esforços no
sentido de se chegar à maior compreensão do que Jesus disse e/ou do que se
disse ou escreveu a respeito de seus ditos e feitos, por meio da leitura dos
evangelhos.
Nessa ‘busca de
Jesus’ se percorreram diversas etapas, que apresento aqui sumariamente:
1. Em 1862, fazem
cerca de 170 anos, o escritor francês Ernest Renan lançou o tema ‘Jesus
histórico’. Com isso se inaugurou a leitura histórico-crítica dos evangelhos,
que rendeu trabalhos de grande valor, ao longo de todos esses anos. Não dá para
citar aqui os estudos publicados nem as iniciativas empreendidas. Só realço o
surgimento, em 1985, nos Estados Unidos, de um ‘Jesus Seminar’, fundado por
iniciativa de Robert Funk, que consiste em uma reunião ‘virtual’ de
especialistas (chegou a reunir 200 ‘fellows’), a emitir valorizações
fundamentadas acerca da autenticidade histórica de fatos e ditos atribuídos a
Jesus nos evangelhos.
2. O método
histórico-crítico trouxe consigo uma maior atenção ao modo específico em que os
evangelistas escrevem. Percebeu-se que os evangelhos são, basicamente,
narrativos. O ‘narrative approach’ rendeu igualmente trabalhos valiosos e fez
com que os exegetas começassem a mostrar interesse na filosofia
linguística.
Eu mesmo publiquei,
cinco anos atrás, um ensaio, intitulado ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma
análise literária’ (Paulus, São Paulo, 2016), em que constato que os primeiros
escritores cristãos (entre nos anos 50 e 70) lançam olhares diversificados
sobre a figura de Jesus. Enquanto Paulo (inícios dos anos 50) vê em Jesus ‘o
Ungido de Deus’, o escritor anônimo da Carta aos Hebreus (entre 65 e 70) nele
enxerga ‘o Sacerdote segundo Melquisedec’. E para Marcos (no início dos anos
70), Jesus é um profeta na linha de Elias. Na introdução de meu livro, Marcelo
Barros observou, acertadamente: ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’.
Realmente, quem conta uma história costuma ‘aumentar um ponto’.
3. A questão é: por
que os evangelistas ‘aumentam um ponto’? Para tornar suas histórias mais
atraentes e desse modo captar melhor a atenção de seus ouvintes? Para fomentar
a admiração por Jesus (que mais tarde vira veneração e até adoração)? O
evangelista Marcos deixa entender que não é só isso. Depois de relatar dois
sucessivos supermilagres de multiplicação de pães por Jesus (capazes de atrair
poderosamente a atenção sobre sua figura), ele põe na boca de Jesus uma
pergunta intrigante: Vocês ainda não entendem? (Mc 8, 20-21).
Entender o quê?
Essa pergunta nos leva a prestar atenção ao caráter específico da linguagem
evangélica, ou seja, faz com que sejamos levados a praticar uma análise
estrutural do tipo de discurso que encontramos nos evangelhos, mesmo
se isso nos parece inusitado. Se, nos evangelhos, muitas histórias sobre Jesus
não passam pelo crivo da autenticidade histórica (segundo os critérios do
‘Jesus Seminar’, por exemplo), isso não significa que elas têm de ser
rejeitadas ‘ipso facto’. Elas podem, mesmo não correspondendo ao que
efetivamente foi dito ou operado por Jesus, expressar algo diferente.
Afinal, o que
diferencia uma narrativa evangélica de tantas outras narrativas? Eis o tema
deste terceiro texto sobre o espírito de Jesus. Divido minhas considerações em
três pontos: (1) O que aprendemos com a prática de leitura dos evangelhos nos
primeiros tempos? (2) O que é um texto performativo?; (3) A narrativa da
ressurreição de Jesus leva a quê? Antes de iniciar meu arrazoado, faço questão
de mencionar que, na a elaboração das presentes considerações, muito me
serviram os trabalhos de dois jesuítas franceses: Michel de Certeau (1925-1985)
e Joseph Moingt (1925-2020).
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O que aprendemos com a prática de leitura dos evangelhos nos
primeiros tempos?
No tempo do
cristianismo emergente, a população da Palestina comportava 97 % de iletrados
ou pouco letrados. A situação em outras regiões do então Império Romano não
deve ter sido muito diferente. Nessas condições, como nos informam os
historiadores, os evangelhos são lidos em voz alta por um leitor ou uma leitora
diante de um grupo, que não fica em silêncio, mas reage por meio de gestos,
exclamações e outras manifestações de entusiasmo e concordância, ou então de
repulsa (contra os inimigos de Jesus). No capítulo 14 da Primeira Carta de São
Paulo aos Coríntios, assistimos a uma reunião de cristãos na cidade de Corinto,
na Grécia, por volta dos anos 52-53, apenas uns 20 anos após a morte de Jesus.
Agitação, gritos, gestos exaltados, falas em ‘línguas’. Como num culto
pentecostal. É preciso que Paulo intervenha e diga que ele prefere cinco
palavras inteligíveis a dez mil palavras ‘em línguas’ (v. 19). E
adverte: todos podem se expressar, um por um, para instruir
a todos e encorajar a todos (v. 31).
Com esse mergulho
na realidade vivida, já estamos em condições de avançar uma primeira resposta à
pergunta que encabeça este parágrafo: o que aprendemos com a prática da leitura
do Evangelho nos primeiros tempos do cristianismo? Aprendemos que o texto
evangélico desperta, nos ouvintes, reações, por vezes estranhas e exageradas,
mas sempre propositivas, diante das situações em que vivem.
Eles são sujeitos a
tensões continuadas, como nos informa a história. Há, de um lado, a pressão
exercida pelo ‘stablishment’ judaico, que rejeita o movimento de Jesus. O
Evangelho de João apresenta essa tensão de modo muito original, quando
apresenta uma cena em que Jesus, pendurado na cruz, procura unir a Mãe Judaísmo
com o Filho Cristianismo. Ele se dirige à mulher (não é sua mãe), que está em
baixo da cruz, e diz: Mulher, eis seu filho. Em seguida, ele
diz ao discípulo amado, também presente em baixo da cruz, e
diz: Eis sua mãe (Jo 19, 26). O judaísmo, ‘mãe do
cristianismo’, frente ao cristianismo, ‘discípulo do judaísmo’. (Eis uma
leitura do referido versículo, feita pelo bispo John Shelby Spong, da Igreja
Episcopal dos Estados Unidos, em seu livro ‘The fourth Gospel’). O evangelista
João (que escreve por volta do ano 100, o que explica muita coisa) insinua,
sutilmente, que Jesus se preocupa com a falta de aceitação mútua entre judaísmo
e cristianismo. Uma preocupação que prenuncia a falta de diálogo entre judaísmo
e cristianismo, que perdura até hoje.
Há, de outro lado,
as tensões com o Império Romano, que se protelam por longos três séculos e
criam inúmeros sofrimentos. Só menciono de passagem alguns nomes que simbolizam
as contínuas perseguições contra cristãos por parte de autoridades romanas:
Suetônio (70-140 dC), Tácito (50-120 dC), Marco Aurélio (imperador entre 161 e
180), Septímio Severo (imperador entre 195 e 211), Valeriano (imperador a
partir de 257) e Diocleciano (imperador a partir de 284). Já nos evangelhos se
podem detectar marcas dessas tensões (capítulo 13 do Evangelho de Marcos, por
exemplo). As primeiras gerações cristãs convivem com contínuas tensões.
Exegetas, que tomam
em consideração essas condições peculiares da divulgação do cristianismo nos
primeiros tempos, optam por abandonar a rígida separação entre textos
evangélicos historicamente autênticos e textos ‘suspeitos’, ou seja, abandonam
uma abordagem histórico-crítica exclusivista. Por exemplo, o corte drástico entre
‘ditos autênticos’ e ‘ditos redacionais’ de Jesus (os primeiros
representariam apenas 18 % dos 1500 ditos a ele atribuídos, segundo o ‘Jesus
Seminar’). Quem conhece o modo em que os evangelhos eram lidos nesses primeiros
tempos, não admite um corte tão fora da vida vivida. Ele tem em mente que os
primeiros tempos do movimento de Jesus eram perpassados por muito sofrimento,
muita comoção, muita luta; que os exageros, excessos de linguagem e imaginações
desvairadas, em narrativas evangélicas, podem ser entendidos como contrapesos a
situações sofridas.
O leitor dos
evangelhos, que se mostra sensível à história vivida do cristianismo, deixa
para trás o frio positivismo de uma linguagem técnica e dogmática. Procura
entender os sentimentos e sofrimentos, as esperanças e aspirações, que
caracterizam a emergência do movimento de Jesus no palco da história. Ele
percebe o caráter ‘performativo’ dos textos evangélicos.
&&&&
O que é um texto ‘performativo’?
Aqui retomo,
após quase 50 anos, anotações feitas por mim durante numa semana informal de
estudos que tivemos (umas 12 pessoas) com Michel de Certeau, entre os dias 29/7
e 03/8 de 1974, em Recife. Ao me propor redigir este terceiro texto sobre o
espírito de Jesus, essa semana tão longínqua me veio à mente. Reli velhos
papéis, decifrei rascunhos e percebi que há muito que dizer sobre os evangelhos
por meio de uma análise estrutural da linguagem humana. Pois esse
foi o tema abordado por Michel de Certeau na mencionada semana de 1974. Para
definir o tema de suas falas, ele, francês, usou um adjetivo que não encontrei
no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas que, mesmo assim, escrevo aqui:
‘performativo’.
Ao aceitar
trabalhar conosco, Michel não pretendia dizer coisas novas, mas quis nos
introduzir num universo por nós largamente desconhecido: o dos ‘linguistas’. A
presença de Michel entre nós fez com que tomássemos consciência que uma das
mais importantes novidades filosóficas do século XX consistiu na linguística,
na análise de linguagens. O século XX nos trouxe figuras como Propp, Bakhtin,
Wittgenstein e, numa geração posterior, Noam Chomsky, Ricoeur, Todorov,
Bourdieu, Foucault. Ao constatar o grande sucesso do livro ‘Preconceito
linguístico’, de Marcos Bagno (Loyola, São Paulo, 2009), que alcançou no Brasil
o número de 200.000 exemplares vendidos, em 52 edições, vejo com alegria que a
leitura linguística de textos está penetrando no mundo universitário
brasileiro. Bagno explica: ‘um texto é como um peixe. Só existe peixe vivo
dentro da água, só existe texto vivo dentro da linguagem. Um texto só fica vivo
quando é lido dentro de seu devido ambiente linguístico. Fora desse ambiente,
fica morto e sem sentido’. E ainda: ‘não existimos fora da linguagem, não
conseguimos nem imaginar o que é não ter linguagem. Para nós a realidade não
existe, o que existe é a tradução que dela nos faz a linguagem, implantada em
nós de forma tão intrínseca e essencial quanto nossas células e nosso código
genético. Ser humano é ser linguagem’.
Michel de Certeau,
sabendo que estava diante de ‘agentes pastorais’, foi logo dizendo: a
finalidade do evangelho consiste em ‘performar’ o ouvinte. Aparentemente
designativo, o texto evangélico é, na realidade, performativo. Tenciona
‘performar’ um bom ouvinte/leitor, uma boa ouvinte/leitora. Eis a finalidade do
texto evangélico.
Cabem aqui umas
palavras sobre o caráter metafórico da linguagem humana. A metáfora diz uma
coisa querendo significar outra. Essa simples verdade da vida diária é capaz de
desnortear cientistas versados em linguagem técnica, puramente designativa,
inclusive teólogos versados em dogmas e verdades expressas em termos técnicos.
De outro lado, a linguagem humana pressupõe um ‘contrato’ silencioso entre
destinador (escritor) e destinatário (ouvinte, leitor). Um contrato que diz mais
ou menos o seguinte: ‘estou falando ou escrevendo para animar ações, não para
emitir verdades ou pronunciar vereditos considerados eternos’. Esse contrato
tácito é mais importante que o conteúdo enunciado. Pois se o destinatário não
capta o contrato, ele não entende nada do que se diz. No ‘contrato evangélico’,
o destinatário tem de entrar no jogo do destinador e aceitar que este pretende
modificá-lo. Eis a condição preliminar para se ler o evangelho com
fruto. Ele tem de aceitar que o ‘evangelista’ pretende lhe
transmitir a ‘alegria do evangelho (da Boa Nova)’ quando não existe,
aparentemente, nenhum motivo de se alegrar. O discurso evangélico elimina
progressivamente os modos errados de se entender as palavras e passa a falar de
coisas que faltam na realidade. Fala do Reino de Deus, que não existe; fala do
amor ao próximo, que não existe; fala do Povo de Deus, que não existe; fala em
evangelização, que não existe; fala em sinodalidade, que não existe. A falta de
‘existência’, subjacente ao discurso evangélico, é um apelo para que as coisas
venham a existir: o Reino de Deus, o amor ao próximo, a evangelização, a
sinodalidade. Não é um discurso negativista, cínico e descrente, é um discurso
de esperança. O texto evangélico não constata, mas alimenta a esperança. O
performativo vai camuflado no narrativo, ao ponto de ‘mexer’ com o ouvinte,
fazer com que ele reaja, saia de seu torpor e adquira o espírito de Jesus.
Depois da invenção
da imprensa, no século XVI, não falamos mais em ‘ouvintes’, mas em ‘leitores’.
As ‘palavras’ viraram ‘textos’. Textos que transmitem, a seu modo, as palavras
de Jesus. Do mesmo modo que as palavras, esses textos se destinam a ‘tocar’ os
leitores de hoje. Estão à procura de quem permite ‘ser tocado’, para além da
pura narrativa. Pois o texto não é inerte, ele faz uma coisa, ele opera um novo
modo de ver as coisas, de entender a vida. A eficácia do texto consiste em
mudar a posição do destinatário (ouvinte/leitor) diante da sociedade em que
vive. A parábola de Jesus faz com que as palavras não tenham mais o mesmo
sentido no início e no final da narrativa. No caso da parábola da semente, os
apóstolos precisam da ajuda de Jesus (o destinador da parábola) para entender o
que ele quer dizer. E Jesus explica que o sentido da parábola consiste em
modificar seu ouvinte/leitor. Depois de entender a parábola, o destinatário não
é mais o mesmo. Ficou ‘tocado’, compreende que a narrativa está a serviço de
sua conversão. Eis o ponto. Jesus não ordenar (‘faça isso, faça aquilo’), ele
conta uma história: ‘um samaritano passou, e viu o homem deitado à beira da
estrada, etc.’. Em vez de dar uma ordem, Jesus narra uma história. Eis seu
método, o método das parábolas. Ele prepara seu ouvinte/leitor a ver o mundo em
seu redor de modo diferente, a ser ‘bom samaritano’.
O evangelho não
serve para orientar, mas para clarificar, tornar as coisas claras. O ouvinte
(leitor) enxerga ou não enxerga, abre os olhos ou prefere continuar cego. É ele
que tem de mudar, por vontade própria. Isso supõe que seja inteligente e se
disponha a entrar no jogo de uma linguagem que nem sempre lhe se apresenta
clara (é o caso dos apóstolos, que nem sempre entendem o que Jesus lhes diz).
Uma linguagem clara, mas sutil e muito exigente. Será que o ouvinte/leitor está
disposto a mudar? Disposto a entrar no jogo, a se deixar interpelar por Jesus?
Entendida desse
modo, a cristianização não consiste em ocupar espaços físicos (paróquias) ou
sociais (hierarquias), mas no desafio de práticas concretas. A mediação não
passa pela instituição, mas pela mística, pela inteligência intuitiva de um
Deus que age no mundo, e que se comporta como aquele ‘homem forte’ do texto de
Marcos, aquele ladrão que penetra num mundo dominado por poderes estranhos a
Deus. O ladrão não entra pela porta, ele penetra por brechas entreabertas.
As lições que nos
foram dadas por Michel de Certeau em 1974 ainda hoje nos ajudam a captar o
espírito de Jesus por meio da leitura dos evangelhos. Agora compreendemos
melhor a superexposição de Jesus em determinadas narrativas evangélicas, como
na cena em que ele acalma a tempestade por simples palavras, ou quando anda
sobre as águas, transforma água em vinho (600 litros!), alimenta quatro mil
pessoas com cinco pães (sobram cinco cestos com restos de pão), ordena que o
falecido Lázaro saia de seu sepulcro. Entendemos melhor o episódio em que se
narra que os pescadores Pedro e André deixam logo o barco, a rede, os
empregados e o pai, sem discutir nem pedir maiores informações, ou a cena em
que Levi, o cobrador de impostos, se levanta sem dizer nada e segue Jesus sem
nada questionar. Entendemos que essas e outras narrativas evangélicas têm um
teor performativo, expressam a urgência em se meter na obra da pregação do
Reino de Deus, com Jesus.
&&&&
A narrativa da ressurreição de Jesus leva a quê?
O mais
impressionante discurso evangélico é a narrativa da ressurreição de Jesus. Um
discurso gestado lentamente no emergente movimento de Jesus, e que ganhou
progressivamente espaço no jovem movimento, ao longo de um transcurso de
aproximadamente cem anos, entre os anos 50 e 150 dC.
Tudo começa com o
‘grito da ressurreição’. Ressoa no grupo formado por Paulo em Corinto, nos
inícios da década de 50 dC: o Ungido despertou dos mortos! (1Cor
15, 12), provavelmente dentro do clima que Paulo evoca no capítulo
14 da mesma Carta, que já comentei acima. Um grito de entusiasmo,
que arrasta as pessoas a ações ousadas, em meio a dificuldades, decepções,
lutas e incompreensões. Um grito a expressar força, entusiasmo e persistência.
A ressurreição eleva o ânimo dos discípulos e lhes confere coragem. Encontramos
algo parecido no evangelho de Lucas (12, 49-51), quando Jesus grita: vim
derramar fogo sobre a terra, e como desejo que inflame logo tudo!
No Evangelho de
Marcos, as coisas se passam de modo mais progressivo que na Carta de Paulo.
Para entender isso, há de se observar que o referido Evangelho, em sua versão
original (por volta do ano 70, aproximadamente 40 anos após a morte de Jesus),
termina com o versículo 8 do capítulo 16, onde se lê que as mulheres têm medo.
Acontece, na edição do Novo Testamento que você tem em mãos, se acrescentam 11
versículos, (vv.9 a 20), que foram inseridos por copistas oitenta anos depois
de Marcos, por volta do ano 150. Embora esse acréscimo não apareça nos três
principais manuscritos que rendem o Novo Testamento inteiriço (o Sinaiticus, o
Alexandrinus e o Vaticanus), ele costuma ficar incluído nas edições correntes
dos evangelhos.
A diferença entre o
texto original (Mc 16, 1-8) e os acréscimos (9-20) é muito instrutivo. Por meio
dela, somos capazes de acompanhar a paulatina penetração da narrativa da
ressurreição na primeira tradição cristã.
No texto do ano 70
se conta que as mulheres entram no sepulcro onde esperam encontrar o corpo de
Jesus e se encontram, estupefatas, com um homem jovem vestido de roupa
branca, que lhes diz: avisem aos seus discípulos (de
Jesus) e a Pedro: Ele já foi a frente, a Galileia. Lá o verão (vv.
6-7). Mas as mulheres não disseram nada a ninguém. Elas tinham
medo (v. 8).
No acréscimo dos
anos 150 se contam coisas bem diferentes: Jesus aparece a Maria Madalena, mas
ninguém acredita no que ela diz (vv. 9-11). Depois aparece a dois que
iam ao campo (v. 12), mas o pessoal não acredita no que estes dizem.
Finalmente, Jesus aparece aos Onze reunidos para a refeição, e
lhes ordena: Em marcha! Andem pelo mundo inteiro proclamar a Boa Nova a
todos os homens! (v. 15). E o texto termina com as palavras: Os
Onze saíram, proclamaram a Boa Nova por todo canto e operaram muitos
prodígios (v. 20). Palavras entusiasmadas. Não podiam ser mais ‘performativas’!
Há, pois, uma
progressão. Enquanto as mulheres têm medo, os Onze partem resolutos para os
quatro cantos do mundo divulgando o evangelho. As lideranças cristãs do ano
150, resolutamente, resolvem enfrentar perseguição, marginalização, difamação,
até morte violenta em consequência da divulgação da Boa Nova de Jesus. Por
volta do ano 100, o evangelista João conta a mesma história de modo diferente.
No capítulo 21, Pedro parece querer esquecer a experiência fracassada das
andanças com Jesus, e diz: vou pescar. Seus colegas pescadores
concordam: Vamos com você (Jo, 21, 3). Mas aí acontece o
inesperado: enquanto eles não conseguem pescar nenhum peixe, um passante casual
na praia (Jesus) aconselha lançar a rede do outro lado. Aí pegam nada menos
que cento e cinquenta e três grossos peixes. A rede só não rasga por
milagre (vv. 1-14). Os apóstolos-pescadores se dão conta como
são lentos de compreensão. E eles partem para a missão.
Em todos esses
episódios, a linguagem é simples, mas ao mesmo tempo sutil e exigente. O texto
postula que o ouvinte/leitor se mostre disposto a enfrentar as consequências
concretas de seu comprometimento com Jesus. Eis a dificuldade da fé na
ressurreição. O ouvinte/leitor tem de entender que aqui não se trata de falar,
mas de agir. A ressurreição é uma narrativa em função de uma ação. Não é de
caráter designativo, mas ‘operacional’. O ressuscitado está disposto a
recomeçar sempre, não abandona o projeto (não volta a ‘pescar’), faz sua parte,
cumpre sua missão. A boa compreensão da narrativa da ressurreição mostra que a
finalidade do cristianismo consiste em suscitar ações. Que o cristianismo não é
uma religião, não é um culto, não é uma instituição. É uma prática, uma mística
(no sentido que expliquei em meu texto anterior ‘O espírito de Jesus 01’).
A narrativa da
ressurreição apela para uma história humana a serviço da conversão. Narra-se
uma história, conta-se uma parábola. O significado? A morte não tem a última
palavra, ‘a luta continua’. Como na parábola da semente, a narrativa elimina
progressivamente os modos errados de se entender as coisas e ressalta afinal o
modo certo. A intenção consiste em ‘performar’ um ‘bom ouvinte/leitor’, uma
‘boa ouvinte/leitora’. Alguém que entende de que se trata, aplica o narrado à
vida e muda de postura na vida.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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