por Leonardo Boff
É fato confessado pelo
ex-chefe supremo das FFAA, gal.Villas Boâs que o Alto Comando em 2018 deu um
golpe na democracia brasileira,ferindo o inciso XILV do artigo 5º da
Constituição que diz, tal fato: ”constitui crime inafiançável e
imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a
ordem constitucional e o Estado Democrático”. O sentido era, pressionando o STF
para manter-se distante, utilizar o juiz Sérgio Moro (exímio na aplicação
do law fare) para alijar Lula do pleito presidencial, condenando-o por
qualquer crime que fosse, no caso, “por crime indeterminado” e pô-lo na prisão
onde ficou por mais de 500 dias. Desta forma abrir-se-ia o caminho para eleição
ex-capitão compulsoriamente reformado por mau comportamento, Jair Bolsonaro. O
que de fato ocorreu.
Conhecemos a bíblica
“desolação da tribulação” que sobreveio ao nosso país com o presidente eleito.
Ocupou militarmente o Estado com 11 mil militares em distintas funções de
comando ou de administração. Não soube guardar a dignidade que o mais alto
cargo da nação exige e entregou-se às difamações, às mentiras diretas, aos fake
news, ao uso vergonhoso de palavrões com soberano desprezo da imprensa. Mente
assassina, preferiu incentivar a compra de mais armas por civis do que elaborar
um plano de enfrentamento do Covid-19 que já fez mais de 220 mil vítimas e nos
aproximando de 10 milhões de infectados. Na avaliação mundial, o Brasil ficou
em último lugar nas políticas sanitárias contra o Covid-19 e na aplicação da
vacinação à população.
A nossa democracia que
historicamente sempre foi de baixa intensidade, agora, sob Bolsonaro e
comparsas, foi estraçalhada nem chegando a ser de baixíssima intensidade. Ela
virou uma farsa e suas principais instituições um disfarce de
legalidade, por mais que se diga que “as instituições funcionam”. Cabe
perguntar a quem? Não à política sanitária mínima, não à justiça necessária aos
milhões de desempregados, aos indígenas e quilombolas, não ao cuidado da
natureza em devastação, não à defesa contra ameaças diretas ao STF, nem contra
um propósito declarado de golpe militar. Sob o disfarce da legalidade se
blindam notórios corruptos, concede-se facilmente habeas corpus a políticos
indiciados por ilegalidades e até crimes e permanecem impunes os centenas de
feminicídios e discriminações e até assassinatos dos membros do LGBTI.
Vou me permitir
usar as palavras de dois sociólogos porque encontrei neles as melhores
expressões para qualificar o que sinto e penso acerca de nossa presumida
democracia: Thiago Antônio de Oliveira Sá, sociólogo e professor universitário
(cf.O sequestro das instituições brasileiras, em Carta Maior de
14/02/2021) e de Pedro Demo, colega de estudos no Brasil e na Alemanha,
professor na Universidade de Brasília, uma das inteligências mais brilhantes
que conheço com vasta obra de pesquisa científica. Delas sirvo-me apenas de
tópicos significativos do livro Introdução à Sociologia: Complexidade, Interdisciplinaridade
e Desigualdade Social, Editora Atlas, São Paulo 2002 pp, 329-333) onda
diretamente aborda o tema da democracia no Brasil.
Começo com Oliveira Sá no
referido artigo em Carta Maior: “O público é um anexo do privado. A
perícia cede lugar à malícia. A corrosão institucional se visualiza facilmente:
obscurantistas e mal educados como ministros da Educação; um ecocida que passa
sua boiada sobre o meio ambiente; uma ruralista à frente da agricultura nos
envenena com seus mais de 500 agrotóxicos legalizados; uma evangélica
fundamentalista cuida das mulheres e demais minorias com seu machismo e sua
obsessão com a sexualidade alheia. Não nos esqueçamos do primeiro ministro da
Saúde, lobista dos planos privados, a estender sua mão visível sobre o SUS. Um
emissário do mercado financeiro dirige o ministério da economia. Um maluco,
pária orgulhoso e antiglobalista (seja lá o que isso for), faz do Brasil vexame
internacional nas relações exteriores. Um racista à frente da Fundação
Palmares. Polícia federal convertida em guarda-costas particular da presidência
e de seus filhos. A Procuradoria Geral da República a livrar a cara do
empreendedor das rachadinhas. Um militar na Saúde dispensa maiores explicações….
juízes que têm lado, vejam-se os novos vazamentos das tramóias nada
republicanas de Moro, Dallagnol e seus comparsas. Absurdo, mas não
surpreendente: a velha conversão das instâncias judiciais em arma de grupos
dominantes. Para perseguição de adversários, para inviabilizar suas
candidaturas em favor de outros”.
Não perde em contundência
Pedro Demo. O que escreveu em 2002 vale muito mais para 2021: “Nossa democracia
é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis “bonitas”, mas
feita sempre, em última instância, pela elite dominante para que sirva a ela do
começo até o fim. Nossa democracia espelha, cruamente, a ‘luta pelo poder’ no
sentido mais maquiavélico da luta por privilégios. Político sem
privilégios é figura espúria em nosso cenário – desde logo é gente que se
caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco (comentário meu: vide o ex-deputado
Jair Bolsonaro por sucessivos mandatos), fazer negociatas, empregar parentes e
apaniguados, enriquecer-se à custa dos cofres públicos, entrar no mercado por
cima. Mas há exceções que confirmam a regra…A própria Constituição de 1988 não
abriga propriamente projeto nacional coletivo, afinado sob a batuta da justiça
e da equalização de oportunidades, mas proposta corporativista retalhada por
meio da pressão particularizada: os magistrados fizeram o seu capítulo,
bem como a polícia, as universidades, o legislativo, o judiciário, o Executivo
e a iniciativa privada…É a tão decantada por Ulysses Guimarães de “Constituição
Cidadã”, mas que detém concepção corporativista extrema, muito distante
dos interesses das maiorias…Fazem-se muitas propostas mas sem qualquer ligação
com embasamento financeiro e institucional…No final fizemos outra vez imitação
barata do welfare state. Mas há coisas boas como a lei de responsabilidade
fiscal para evitar que se gaste o que não se arrecada…O Legislativo longe de
defender ideias, propostas, equidade, defende verbas, fatias de poder,
privilégios exclusivos. É o lugar principal da negociata, do cá e o da lá…Não
é pois difícil de mostrar que nossa democracia é apenas
formal, farsante, que convive solenemente com a miséria das grandes maiorias.
Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria
negação. Não se nota na classe política dominante em geral
qualquer gesto dirigido a superar mazelas
históricas plantadas em privilégios absurdos para poucos…Nossa pobre política
lancinante se traduz na miséria de nossa democracia. Por isso é tão
importante manter a ignorância política das massas” (333).
A realidade política sob
Bolsonaro é muito pior do que a desenhada acima. Visa reconduzir o país à fase
pré-iluminista, da universalização do saber, dos direitos e da democracia na
direção regressiva a tempos obscuros do pior da Idade Média tardia, não da
Idade Média áurea com suas imensas catedrais, com a criação de universidades,
com suas sumas teológicas, com seus sábios, místicos e santos. Tudo o que foi
criado nos governos Lula-Dilma que tivesse sabor popular ou inserção dos
empobrecidos na sociedade foi literalmente desmontado de forma criminosa
pois implicou sofrimento aos que já sempre sofreram historicamente.
Causa-nos espanto que
aquelas autoridades judiciais e políticas que poderiam mover ações
juridicamente fundadas contra a irresponsabilidade e crimes sociais do
presidente não se movam, seja por se sentirem cúmplices, seja por ausência de
espírito patriótico e mesmo faltos de sentido de justiça social. Como vivem a
quilômetros luz do drama do povo e veem seus direitos adquiridos e privilégios
garantidos não os move a nobre compaixão para usar os instrumentos
jurídicos de que dispõem para livrar a nação daquele que a está destruindo e
segue mais aferrado ainda nesse mesmo intento perverso.
Razão tem o Papa
Francisco ao falar várias vezes aos movimentos sociais mundiais, aqueles
que querem outro mundo porque este lhes é um inferno ou um purgatório: ”não
esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou pior. Comecem por vocês
mesmos, vale dizer, as multidões devem ocupar ruas e praças e botar para
correr aqueles que lhes sequestraram as oportunidades de serem gente, de
sentirem-se sujeitos um mínimo de dignidade e de alegria de viver. Esperamos
isso aconteça. Só depois que se sentirem ameaçados, os dominantes aderem. Se
não cuidarmos se apropriam da energia emergente para seus próprios fins
privados. Mas o que deve ser tem força: o afastamento o mais rápido possível de
quem conduz uma política necrófila contra o seu próprio povo.
Diante da obscuridade do
horizonte e, a muito custo, mantendo a esperança contra a esperança, faço
minhas as palavras do Mestre, também tomado de profundo pesar: tristis est
anima mea usque ad mortem”
Leonardo Boff é teólogo,
filósofo e escritor.
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