Maria Clara Lucchetti Bingemer
Muitos já ouviram falar no martelo de Nietzsche. Trata-se do penúltimo livro do
famoso filósofo alemão, escrito pouco antes do perder a razão. O título
remete a uma ópera de Wagner, “Crepúsculo dos ídolos”, que tem como subtítulo
“Como filosofar com o martelo”.
A
obra consiste em uma síntese de toda a obra do filósofo, que tem ao fundo uma
declaração de guerra contra os ídolos antigos e novos do Ocidente, que
obscurecem a mente humana com ilusões, tais como equívocos e tendências várias
do pensar moderno e seus representantes. O martelo ou marreta nietzschiano
pretende destroçar esses ídolos diversos, assim como, tocando-os e
destrinchando-os com sua acurada crítica, comprovar que são ocos e vazios,
carentes de consistência.
Aqui
e agora, não é do martelo de Nietzsche que pretendo falar, embora a metáfora
possa aplicar-se ao caso. O tema desta crônica é uma marreta empunhada
não por um filósofo, mas por um sacerdote católico: o Pe. Julio Lancelotti,
coordenador da pastoral do povo da rua da diocese de São Paulo. Figura
presente e incansável no atendimento aos moradores de rua, por ele chamados de
irmãos, o padre aparece todos os dias nas redes sociais servindo
misericordiosamente os pobres e ao mesmo tempo denunciando toda e qualquer
instância que ameace prejudicá-los e aumentar ainda mais seu sofrimento.
Foram
já inumeráveis as vezes em que o Pe. Lancelotti postou fotos dos irmãos de rua,
no rigor do inverno paulistano, sendo atacados com jatos de água fria, a fim de
desocuparem espaços públicos; ou do rapa passando e confiscando todos os
pertences com que os moradores da rua armavam sua precária habitação para
passar a noite. Desta vez, a denúncia teve como personagens uma série de
pedras pontiagudas que foram postas sob um viaduto situado no bairro do
Tatuapé, na zona leste da cidade, e que pretendia evitar que moradores de rua
colocassem colchões no local.
Pe.
Julio primeiramente exibiu fotos das pedras que encheram as redes sociais deixando
perplexos os internautas. Com palavras indignadas, denunciava o gesto cruel que
retirava dos sem teto o único lugar onde poderiam descansar seus corpos mal
alimentados e maltratados: o chão debaixo do viaduto, ao abrigo dos carros que
transitam na via pública.
Em
seguida, porém, resolveu fazer algo mais concreto: com uma marreta na mão
passou a destruir e arrancar as pedras ali colocadas. E explicava seu gesto
como pretendendo destruir as “pedras da injustiça”. Sua atitude profética e indignada
inspirou fotógrafos e cartunistas vários. Os desenhos do padre com a
marreta na mão derrubando as pedras encheram as redes e testemunharam como este
gesto traduzia os sentimentos de muitos. O corajoso gesto do sacerdote era
portador da indignação em que hoje vivemos neste país, que nos faz todos os
dias acordar com vontade de empunhar uma marreta e destruir as pedras da
opressão que se interpõem entre os cidadãos brasileiros, sobretudo os mais
pobres, e seu direito à vida digna e plena.
O
gesto e o comportamento de Jú lio Lancelotti certamente não se coadunam muito
com o estereótipo que se tem de um padre. Espera-se que o mesmo se atenha ao
interior da igreja ou da paróquia, não se imiscuindo nos assuntos seculares ou
materiais, cuidando apenas das almas dos fiéis.
Sucede que a tradição judaico-cristã, da qual o padre Lancelotti é digno
representante, sempre teve entre seus quadros profetas que denunciaram em alto
e bom som os dois grandes males que impediam o povo de viver plenamente a
aliança com seu Deus: a injustiça e a idolatria. E inúmeras vezes
aparecem na Bíblia hebraica as chamadas de atenção que esses mesmos profetas
faziam contra os ídolos que tinham pés de barro e eram ocos como os que
Nietzsche queria destruir com seu martelo. Na Bíblia Cristã, Jesus de
Nazaré, que com tanto carinho tratava publicanos e pecadores, aparece no Templo
de Jerusalém usando o chicote para repudiar o uso que fazem da casa de oração
para comércio e lucro indevido.
A
marreta de Júlio Lancelotti encontra-se, portanto, afinada com o melhor da
tradição à qual pertence. Golpeando as pedras, chamou a atenção da opinião
pública e a própria prefeitura tomou providências para retirá-las, concordando
que o fato de as colocar havia sido equivocado. O espaço público voltou a
abrir-se para os pobres. Se é escandaloso que não tenham lugar para viver
e devam recorrer à rua para isso, que pelo menos possam ali colocar seus
colchões e descansar seus corpos.
Ao
Pe. Júlio vai nosso agradecimento por nos recordar constantemente que o
Evangelho é um fogo que arde e queima, e não um analgésico que disfarça as
dores e acalma falsamente as consciências.
Maria Clara Bingemer é
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de
“Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
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