FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Os comentários de alguns leitores e
leitoras da nossa última Reflexão me motivam a dar-lhe uma certa continuidade.
A atenção
de muitos centrou-se na
declaração
do filósofo francês
Montesquieu: "Se
souber de uma coisa que é
favorável para o meu povo mas prejudicial
para a raça humana, eu a encaro como crime."
Eis a questão. Como integrar o entendimento sobre humanidade
dentro da nossa concepcão de nacionalidade e patriotismo? Qual dos dois
sentimentos tem a primazia? Quem deve ceder a quem e em que circunstâncias?
Nós
cristãos confessos não
descobrimos nenhuma passagem bíblica em que o Criador tenha decretado ou
recomendado a divisão da terra em
países e nações. Entretanto, de acordo com a narrativa do
Gênesis, Ele não criou este planeta de
forma perfeita e acabada, mas plantou as sementes de todas as coisas, deixando
ao ser humano a tarefa de levá-las ao seu acabamento.
A este respeito, a Bíblia traz uma
sugestiva alegoria (cfr. Gen.11,1ss). Criaturas humanas, levadas pela ambição
de dominar o mundo, resolveram centralizar o poder político. Este
propósito é significado pela construção de uma torre de
imensas proporções, "tão alta que chegasse a tocar o céu", a Torre de
Babel. Contrariado, Javé frustrou seus planos, diversificando os idiomas e
assim boicotando a comunicação entre eles. Babel quer dizer caos,
confusão. As criaturas humanas se
dispersaram e passaram a constituir-se em diferentes povos.
A partir desta alegoria compreende-se a
evolução histórica da humanidade. Jamais
desapareceu, no entanto, a tensão entre
os dois sentimentos, o universal e o particular, entre humanidade e
nacionalidade.
Milênios se passaram, mas as ambições sobrevivem. Ao longo dos últimos séculos,
prevaleceu a idéia de que há uma parte da humanidade esclarecida que deve ir ao encontro da outra parte
obscurecida, a fim de civilizá-la. Como se devesse haver um modo único de viver
na terra, ou mesmo uma Verdade única, a ser imposta a qualquer preço. Como se houvesse culturas superiores e outras
inferiores, e não, simplesmente, culturas diferentes ou diferentemente
evoluídas no tempo. Daí a legitimação
para que povos brancos europeus saissem
invadindo o resto do mundo sob o pretexto de colonizá-lo.
Daí
também o conchavo entre a "A Espada e a Cruz", aquela para defender a Fé e esta para
"sacralizar" a conquista. O esforço de inculturar gradualmente o
processo de evangelização era substituído pela eliminação imediata das culturas locais e a implantação
das novas culturas dos invasores. Com o argumento de salvar almas, eliminava-se
a identidade cultural dos nativos, o que equivalia a destruir-lhes a própria
alma.
Até
hoje os dois polos se conflitam. valores supranacionais como a vida, a
liberdade, o direito e a justiça, etc. são subordinados a ideologias
nacionalistas. Em contra-partida, jamais cessaram as vozes proféticas de
protesto e combate. Quem não se lembra
de Dom Helder Câmara denunciando, fora do país, os crimes de tortura, durante a
ditadura militar, e sendo acusado de traidor da pátria? Como se a defesa da
vida pudesse ser limitada pela xenofobia pseudo-patriótica.
A pandemia do coronavirus apareceu como se
chegasse do início do mundo, dos primórdios
da Criação, invisível,
indecifrável, irredutível. Nivelou opressores e oprimidos. De início se
imaginou que os povos "civilizados" da Europa, da América do Norte,
logo venceriam o vírus assassino e viriam cobrar o preço do seu socorro aos
países subdesenvolvidos. Nada disso aconteceu . A nação mais poderosa da terra bateu todos os
recordes de contágios e mortes. Os países
do continente europeu tiveram de usar os mesmos recursos elementares de
defesa como quaisquer outros países. As UTIs foram ocupadas por bilionários e por deserdados da sorte. O Poder Econômico
escondeu suas fortunas logo que percebeu sua impotência de exercer controle e
faturar alto. E, para cúmulo da ironia, inverteu-se o movimento entre
colonizados e colonizadores. Um dos países mais ricos da terra, com milênios de
história (Itália), aplaudiu de pé os médicos de um outro país pequenino e
oprimido (Cuba), que partiram voluntariamente em seu socorro.
Bem diziam os latinos: "Veritas filia
temporis" - A Verdade é filha do
tempo.
Quem se der ao trabalho de reler
atentamente o "Magnificat", Lc.1,28, verá que se cumprem literalmente os vaticínios da
Mãe de Jesus.
Frei Aloísio
Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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