O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 17 de janeiro de 2021

NACIONALISMO EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


   


  Os comentários de alguns leitores e leitoras da nossa última Reflexão me motivam a dar-lhe uma certa continuidade. A atenção  de muitos centrou-se na declaração  do filósofo francês  Montesquieu: "Se  souber de uma coisa que é  favorável para o meu povo mas prejudicial para a raça humana, eu a encaro como crime."

     Eis a questão.  Como integrar o entendimento sobre humanidade dentro da nossa concepcão de nacionalidade e patriotismo? Qual dos dois sentimentos tem a primazia? Quem deve ceder a quem e em que circunstâncias?

      Nós  cristãos confessos não  descobrimos nenhuma passagem bíblica em que o Criador tenha decretado ou recomendado a divisão  da terra em países  e nações.  Entretanto, de acordo com a narrativa do Gênesis, Ele não  criou este planeta de forma perfeita e acabada, mas plantou as sementes de todas as coisas, deixando ao ser humano a tarefa de levá-las ao seu acabamento.

      A este respeito, a Bíblia traz uma sugestiva alegoria (cfr. Gen.11,1ss). Criaturas humanas, levadas pela ambição de dominar o mundo, resolveram centralizar o poder político. Este propósito  é  significado pela construção de uma torre de imensas proporções, "tão alta que chegasse a tocar o céu", a Torre de Babel. Contrariado, Javé frustrou seus planos, diversificando os idiomas e assim boicotando a comunicação entre eles. Babel quer dizer caos, confusão.  As criaturas humanas se dispersaram e passaram a constituir-se em diferentes povos.

      A partir desta alegoria compreende-se a evolução  histórica da humanidade. Jamais desapareceu, no entanto, a tensão  entre os dois sentimentos, o universal e o particular, entre humanidade e nacionalidade.

      Milênios se passaram, mas as ambições  sobrevivem. Ao longo dos últimos séculos, prevaleceu a idéia de que há uma parte da humanidade esclarecida  que deve ir ao encontro da outra parte obscurecida, a fim de civilizá-la. Como se devesse haver um modo único de viver na terra, ou mesmo uma Verdade única, a ser imposta a qualquer preço.  Como se houvesse culturas superiores e outras inferiores, e não, simplesmente, culturas diferentes ou diferentemente evoluídas no tempo. Daí  a legitimação para que povos brancos europeus  saissem invadindo o resto do mundo sob o pretexto de colonizá-lo.

     Daí  também o conchavo entre a "A Espada e a Cruz", aquela  para defender a Fé e esta para "sacralizar" a conquista. O esforço de inculturar gradualmente o processo de evangelização era substituído pela eliminação  imediata das culturas locais e a implantação das novas culturas dos invasores. Com o argumento de salvar almas, eliminava-se a identidade cultural dos nativos, o que equivalia a destruir-lhes a própria alma.

      Até  hoje os dois polos se conflitam. valores supranacionais como a vida, a liberdade, o direito e a justiça, etc. são subordinados a ideologias nacionalistas. Em contra-partida, jamais cessaram as vozes proféticas de protesto e combate. Quem não  se lembra de Dom Helder Câmara denunciando, fora do país, os crimes de tortura, durante a ditadura militar, e sendo acusado de traidor da pátria? Como se a defesa da vida pudesse ser limitada pela xenofobia pseudo-patriótica.

      A pandemia do coronavirus apareceu como se chegasse do início do mundo, dos primórdios  da Criação,  invisível, indecifrável, irredutível. Nivelou opressores e oprimidos. De início se imaginou que os povos "civilizados" da Europa, da América do Norte, logo venceriam o vírus assassino e viriam cobrar o preço do seu socorro aos países subdesenvolvidos. Nada disso aconteceu . A nação  mais poderosa da terra bateu todos os recordes de contágios e mortes. Os países  do continente europeu tiveram de usar os mesmos recursos elementares de defesa como quaisquer outros países. As UTIs foram ocupadas por bilionários   e por deserdados da sorte. O Poder Econômico escondeu suas fortunas logo que percebeu sua impotência de exercer controle e faturar alto. E, para cúmulo da ironia, inverteu-se o movimento entre colonizados e colonizadores. Um dos países mais ricos da terra, com milênios de história (Itália), aplaudiu de pé os médicos de um outro país pequenino e oprimido (Cuba), que partiram voluntariamente em seu socorro.

    Bem diziam os latinos: "Veritas filia temporis" - A Verdade é  filha do tempo.

     Quem se der ao trabalho de reler atentamente o "Magnificat", Lc.1,28, verá  que se cumprem literalmente os vaticínios da Mãe  de Jesus.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário