Leonardo Boff
Estamos vivendo num momento trágico de nossa história nacional. Tivemos regimes
autoritários e até ditatoriais. Estes se caracterizam pela brutalidade nas
relaçõe sociais, a tortura e o desaparecimento de seus opositores.Era feita
política de estado e seus líderes apresentam-se farsescos, arrogantes e
toscos na linguagem e nos comportamentos públicos.
O
Brasil atual é dominado por um fascismo tardio com características nossas mas cujo
miolo teórico é inegavelmente nazifascista. Dizemos que é um proto fascismo
porque é tão fraco de propósito e desorientado teeoricamente que mesmo querendo
não consegue se impor como um real fascismo. Mas excele em grosserias, fake
news, mentiras deslavadas e perda quase total de sentido de realidade. Nosso
“Führer/Duce”de araque afirma que o Brasil está em primeiro lugar no mundo no
combate ao Corona-vírus quando no ranking internacional figura em último lugar.
O ministro das relações exteriores, conhecido terraplanista, considera um
louvor ser “pária internacional” e o afirma dentro do próprio prédio do
Itamaraty para vergonha da memória de notáveis diplomatas e chanceleres.
Se há um poço em nossa história, encontramo-nos no
mais profundo, embora o seu “Führer/Duce” tresloucado, acha que estamos
no monte das bem-aventuranças. Todas as sombras de nossa história, os níveis de
karma coletivo do genocídio indígena, de nossa fase colonial, da bruta
escravidão e da dominação das classes argentárias que nunca tiveram um projeto
de Brasil mas somente para si,com explícita exclusão do povo, a maioria
empobrecida e marginalizada, ganharam densidade na atual administração. Sequer
pode ser considerado de governo, pois não apresenta nenhum projeto nacional e
atua conforme o humor de seu “chefe”. As constituições não funcionam, como se
pretende, pois os piores crimes como os ecológicos (os incêndios de
Amazônia e no Pantanal) e sociais (a matança de jovens, na maioria negros, nas
periferias das grandes cidades, especialmente no Rio de Janeiro) e a humilhação
sistemática de pessoas de outra opção afetiva como os LGBTI permanecem
impunes e sequer investigados.
Notáveis juristas nacionais e internacionais
apontaram dois tipos de crimes do atual chefe de estado: crimes de
responsabilidade que embasaram dezenas de pedidos de impeachment a serem
analisados e julgados pelo Parlamento; e outros dezenas de crimes comuns a
serem acolhidos e julgados pelo STF em razão da imunidade da figura do
presidente. Nenhum deles foi acolhido e analisado, para perplexidade da
consciência cívica da nação e por descaso acerca dos destinos de todo um povo
que não lhes importa desde que sejam assegurados seus privilégios monetários e
de estado de que gozam à custa do erário público.
Os que mais deveriam se preocupar com a vida do
povo como o STF e o MPF colocam a Constituição ou as leis diante dos olhos para
assim não verem a realidade e se dispensarem de agir como deveriam. Poucas
vezes em nossa história conhecemos tão vergonha omissão e leniência que se
aproxima da cumplicidade.
Mas procuremos conhecer melhor esse nefasto modo
proto fascismo de governar, conhecer suas origens e darmo-nos conta de sua
versão tupiniquim e de araque entre nós. Ficamos entre o riso amargo e o
escárneo.
O fascismo originário é uma derivação extremada do
fundamentalismo que tem larga tradição em quase todas as culturas. S.
Huntington em sua discutida obra Choque de civivlizações denuncia o
Ocidente como um dos mais virulentos fundamentalistas e nas guerras exteriores
com claros sinais de fascismo. Imagina que sua cultura é a melhor do mundo,
possui a melhor religião, a única verdadeira, a melhor forma de governo, a
democracia, a melhor tecno-ciência que mudou a face do planeta e que lhe
conferiu a capacidade de destuir todos os seres humanos e parte da biosfera com
suas armas letais. Quando o fujão ex-presidente Donald Trump afirma “America first” está entendendo “só a América” e o resto do mundo que se lasque.
Conhecemos o fundamentalismo islâmico e outros,
também de grupos da Igreja Católica atual que ainda creem ser ela a única e
exclusiva Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação. Tal visão errônea
medieval e superada oficialmente pelo Concílio Vaticano II (1962-1965)
publicada de forma oficial pelo então Card. Joseph Ratzinger, depois Papa Bento
XVI, num documento oficial do ano 2000 “Dominus Jesus”,
humilhou todas as igrejas e abriu espaço para a satanização e até a perseguição
de outras denominações cristas e não cristas. Graças a Deus temos o Papa
Francisco, cheio de razoabilidade e de bom senso, que invalidou tais distorções
e favoreceu o mútuo reconhecimento das igrejas, todas unidas, no serviço à
humanidade e na salvaguarda do planeta seriamente ameaçado.
Todo aquele que pretende ser portador exclusivo da
verdade está condenado a ser fundamentalista, com mentalidade fascistoide
e fechar-se sobre si mesmo, sem diálogo com os outros.
Aqui vale recordar as palavras do grande poeta
espanhol António Machado, vítima da ditadura de Francisco Franco na Espanha:”Não a tua verdade. Mas a verdade.Vem comigo buscá-la. A tua
guarde-a para ti mesmo”. Se juntos a procurarmos, ela será
então mais plena.
O fascismo nasceu e nasce dentro de um determinado
contexto de anomia, de desordem social ede crise generalizada bem como estamos
vivendo no Brasil e em outras partes do mundo, particularmente no Norte da
África e no Oriente Médio. Desaparecem as certezas e as ordens estabelecidas se
debilitam. A sociedade e os cidadãos têm dificuldade em viver em tal situação.
Cientistas sociais e historiadores como Eric
Vögelin (Order and History, 1956; L. Götz, Entstehung der Ordnung 1954; Peter Berger, Rumor de Anjos: a sociedade moderna e
redescoberta do sobrenatural,1973), mostraram que os seres humanos possuem um
tendência natural para a ordem. Lá onde se assentam, criam logo uma ordem e o
seu habitat. Quando esta desaparece, usa-se comumente a violência para impor
certa ordem. O Leviatã de Thomas Hobbes de 1651 (ed. Vozes 2020) elaborou o
arcabouço teórico desta urgência de ordem. Todos os impérios, desde aquele dos
romanos até o russo e o atual norte-americano, mesmo sob Joe Biden, não
ocultam sua excepcionalidade e se acercam ao Estado descrito por Hobbes, sempre
alegando razões de segurança.
O nicho do fascismo encontra seu nascedouro nesta
desordem. Assim o final da Primeira Guerra Mundial gerou um caos social,
especialmente na Alemanha e na Itália. A saída foi a instauração de um sistema
autoritário, de dominação que capturou a representação política, mediante um
único partido de massa, hierarquicamente organizado, enquadrando todas as
instâncias, a política, a econômica e a cultural numa única direção. Isso só
foi possível mediante um chefe (Füher na
Alemanha e o Ducce, na Itália) que organizaram
um Estado corporativista autoritário e de terror.
Como legitimação simbólica cultuavam-se os mitos
nacionais, os heróis do passado e as antigas tradições, geralmente num quadro
de grandes liturgias políticas com a inculcação da ideia de uma regeneração
nacional. Esta visão foi tão tentadora que chegou a iludir, por um curto tempo,
o maior filósofo do século XX que foi Martin Heidegger e por isso feito reitor
da Universidade de Friburgo i. B. Especialmente na Alemanha os seguidores
de Hitler se investiram da convicção de que a raça alemã branca é “superior”às
demais com o direito de submeter e até de eliminar as inferiores. Nos USA o
supremacismo da raça branca encontra nessa visão seu embasamento prático. No
Brasil a estratégia continua sendo perversa: destruir todo um passado seja na
cultura, nas leis sociais e ambientais, seja nos costumes e implantar um regime
com nítidos indicadores pre-iluministas, inspirados pelo lado escuro do
mundo medieval encobrindo o lado luminoso das grandes catedrais, das geniais
sumas teológicas de seus sábios e místicos.
A palavra fascismo foi
usada pela primeira vez por Benito Mussolini em 1915 ao criar o grupo “Fasci d’Azione Revolucionaria”. Fascismo se deriva do
feixe (fasci) de varas, fortemente amarradas, com um machado preso ao lado. Uma
vara pode ser quebrada, um feixe, é quase impossível de fazê-lo. Em 1922/23
fundou o Partido Nacional Fascista que perdurou até sua derrocada em 1945. Na
Alemanha se estabeleceu a partir de 1933 com Adolf Hitler que ao ser
feito chanceler criou o Nacional-socialismo, o partido nazista que impôs ao
país dura disciplina, vigilância e pavor.
O fascismo se apresentou como anticomunista,
anticapitalista, como uma corporação que vai além das classes e cria uma
totalidade social cerrada. A vigilância, a violência direta, o terror e o
extermínio dos opositores são características do fascismo histórico de
Mussolini e de Hitler e entre nós de Pinochet no Chile, de Videla na
Argentina e do governo de Figueiredo e de Médici no Brasil.
O fascismo nunca desapareceu totalmente, pois
sempre há grupos que, movidos por um arquétipo fundamental desintegrado da
totalidade, buscam a ordem de qualquer forma. É o proto fascismo atual.
Hoje no Brasil há uma figura mais hilária que ideológica que propõe o fascismo
em nome do qual justifica a violência, a defesa da tortura e de
torturadores, da homofobia e outras distorções sociais. Sempre em nome de
uma ordem a ser forjada contra a pretensa desordem vigente, usando de
violência simbólica e real.
O fascismo sempre foi criminal. Criou a Shoah (eliminação de milhões de judeus). Usou a
violência como forma de se relacionar com a sociedade, por isso nunca pode nem
poderá se consolidar por longo tempo. É a perversão maior da sociabilidade que
pertence à essência do ser humano. No Brasil ganhou uma forma assassina e
trágica: um governo que se opõe à vacina contra o Covid-19, estimula as
conglomerações e ridiculariza o uso da máscara e, o que é pior, vê hilariamente
mais de 218 mil vitimados pela pandemia, sem qualquer sentido de empatia pelos
familiares e próximos, com quase dez milhões de afetados, como expressão
criminosa de desprezo pela vida de seus compatriotas. Não só nada ou pouco faz,
como impede e cria entraves para quem faz. Dada a omissão senão da cumplicidade
das autoridades competentes que deveriam agir em termos de salvação nacional e
não agem, nos levam a pensar na verdade deixada por Martin Heidegger em
sua última entrevista sobre os riscos letais de nosso tipo de civilização:”Só um Deus nos poderá salvar” (nur noch ein Gott kann uns retten). Mas temos confiança
de que o Brasil é maior e melhor do que seu atual algoz e por isso, vamos
ainda viver, sobreviver e irradiar um futuro bom para nós e para a inteira
humanidade. Cremos e esperamos.
Leonardo Boff teólogo, filósofo e escritor e
publicou: Fundamentalismo e terrorismo:desafios para o
século XXI, Vozes 2009; Brasil: concluir a
refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018 e Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a humanidade,
Vozes 2020/2021.
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