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quarta-feira, 16 de junho de 2021

CEGUEIRA (3), EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

 Frei Aloísio Fragoso


     Por respeito à memória do genial autor  de "Ensaio Sobre a Cegueira", continuemos visitando o manicômio onde ele internou todos os habitantes de uma cidade grande, à exceção da "mulher do médico". Nosso intuito é descobrir mais a fundo as razões subjetivas deste enclausuramento que, por um triz, não foi total. Somos movidos também pela suspeita de que vamos nos reconhecer ali dentro. José Saramago não teria ganho o prêmio Nobel, se esta suspeita não fosse comum aos habitantes de todas as cidades do mundo, as  grandes ou as menores.

      Por outra parte, elucidar estas razões ajuda-nos a decifrar outro mistério, o de este assunto da loucura suscitar incríveis simpatias da parte de muita gente. Simpatias estas expressas em forma de indagações: será que a plena Sinceridade, a que todos almejamos, a da alma, reside nos subterrâneos da loucura? Será que, justo por isso, nos tornamos compulsoriamente normais?

      Saramago conduz seu enredo através de metáforas, confiante em nossa capacidade de decifrá-las, de dar uma identificação atemporal a seus personagens. Ele abre um cenário para esta dor que fura o nosso peito, a de não sermos plenamente nós mesmos.

      Vejamos o que se passa no manicômio. A tragédia obriga todo mundo a viver de maneira inteiramente fora do comum. Em pouco tempo pulam para fora de seus esconderijos interiores alguns monstros da maldade. Aquele bom cidadão, que se oferecera para socorrer o primeiro que cegou, aproveita-se da sua deficiência e rouba-lhe o carro. O manicômio vira pandemônio. O instinto animal vai aos poucos sobrepondo-se à razão e à dignidade. As "razões do estômago" derrubam para segundo plano laços afetivos e princípios morais. Não há mais como impedir a violência. Os caixotes de comida deixados no pátio são atacados numa batalha selvagem. Ao final "ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido".

     (Chego a imaginar a figura do Papa Francisco caminhando em meio a estas ruinas humanas, denunciando o que ele chama "cultura  da insensibilidade", ao tempo em que se desenrola o que ele descreve como Terceira Guerra Mundial, com batalhas esparsas, travadas aqui, ali, acolá, por toda parte)

     O manicômio se divide entre "cegos malvados" e "cegos resignados" A fome e o medo forçam estes últimos a se habituarem aos desmandos da tragédia.

     (Abro novo parêntese para acender um alerta real: como enquadrar, nesta situação, a caridade humano-cristá de distribuir cestas básicas  com famintos de algumas comunidades pobres? Dentro de mim, e de outros, há um embate constante entre a necessidade inadiável de socorrê-los, uma vez que a fome tem pressa e não tem ideologia, e a outra necessidade de que não se embote a consciência de seus direitos, nem se aplaque  a justa revolta, que estimula para a luta. Por enquanto, usamos a modesta estratégia de ajuntar a cada cesta básica uma breve carta conscientizadora).

     Enfim, não há como fugir à pergunta mais crucial: e as consequências para o futuro? O que torna impossível prevê-las é justamente a cegueira. Como escreve Saramago: "se antes de cada ato nos puséssemos a prever suas consequências, a pensar nelas a sério....não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar"

     Enquanto a "mulher do médico" exclama perplexa "o inominável existe!", surge um personagem providencial, "a mulher do isqueiro". Graças a ela, abre-se uma luz no escuro do manicômio. Que luz é esta?

 

     Prometo finalizar, no próximo capítulo, esta novela, que já me deu nervoso, imaginando a impaciência dos leitores por uma solução final. Só não consigo admitir que o grande humanista Saramago escreva um "Ensaio Sobre a Cegueira" que não acabe sendo um "Ensaio Sobre  a Visão".

     Enquanto aguardamos a peripécia da "mulher do isqueiro", meditemos sobre o que Jesus queria significar quando declarou: "Vim  trazer fogo sobre a terra e como desejaria que ele já estivesse aceso" Lc.12,49.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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