O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

COVID 19 - TRIGÉSIMA QUINTA REFLEXÃO - ANONIMATO EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


Por Frei Aloísio Fragoso

     Passada a Festa de Pentecostes, tem início, na liturgia da Igreja, o chamado "Tempo Comum". O Espírito Santo passa a ser o Patrono do tempo comum. Convém não confundir o adjetivo "comum" com algo menos importante, menos significativo.

     Logo após o acontecimento extraordinário de Pentecostes, os apóstolos iniciaram o longo processo de Evangelização dos povos, literalmente entendido como "Anúncio das Boas Notícias de Deus". Onde plantar as boas notícias de Deus, senão no vasto campo da vida cotidiana das pessoas?

     O extraordinário cede lugar ao ordinário. Na verdade, é das coisas ordinárias que brotam as  extraordinárias. Os frutos maravilhosos das plantas nascem do labor incessante e obscuro do agricultor e do movimento silencioso da semente. A primeira lâmpada elétrica  acendeu nas mãos de Thomas Edson, após mais de 2.000 tentativas fracassadas durante anos de ensaios. A cura de milhares de infectados do COVID 19 resultou do trabalho estafante e paciente de profissionais da saúde, dos quais nem o nome conhecemos.

     Pentecostes e Páscoa constituem uma unidade indissolúvel. Páscoa é o embate permanente de vida-morte-ressurreição. Sempre que dores ou mortes humanas tem alguma semelhança com a Paixão de Jesus, a nossa Fé se apercebe de que nelas a semente da ressurreição está fertilizando. Daí a esperança de que esta pandemia vai trazer mudanças libertadoras, tranformações benéficas de mentes, valores e comportamentos, ultrapassa a angústia natural de tantos sofrimentos e perdas.

     Costumamos admirar os heróis da Humanidade. Tudo bem, eles podem ser boas referências para a fecundação de novos heróis. No entanto, precisamos rever nossos conceitos sobre heroísmo. E comecemos por considerar aquela pobre e anônima mulher que se acorda na madrugada e prepara o café da família e varre a casa e forra a cama e lava a louça e estende a roupa úmida no varal e dá banho nos filhos menores e volta à cozinha, pensando no almoço da família e vai ao mercado e passa a camisa do marido e decora a sala com um jarro de flores do campo e volta à cozinha, pensando no jantar da família e cantarola uma canção dolente para espantar o demônio da rotina e se cansa e senta-se finalmente e logo cochila e deita-se e não sonha de noite porque é preciso acordar de madrugada e não pensa jamais que isso um dia vai ter um fim. Quem vê nesta pobre mulher uma verdadeira heroína, uma peça-chave para o progresso da nação?

     Conta-se, faz séculos, que o rei Antíoco Segundo mandou construir uma ponte gigantesca no centro do seu Império. Para cobrir as despesas, duplicou os impostos, penalizando a população mais pobre. Um exército de 15.000 operários e 30.000 bestas de carga trabalharam dia e noite, sem pausa. O rei só esteve lá uma vez, no dia da inauguração. No entanto, todos que por ali passam vêem uma grande placa de metal com o seguinte letreiro: "PONTE CONSTRUÍDA PELO GRANDE REI ANTÍOCO SEGUNDO".

     Estas são imagens simbólicas e reais do que acontece enquanto os livros de História forem escritos por representantes das classes dominantes.

    Mais recentemente, o espetáculo de grupos da elite social, protestando nas ruas contra o isolamento, que tira os operários de suas fábricas, provou esta verdade: quem produz riquezas são os trabalhadores e não o grande capital.

    Em meio a estes paradoxos, o que nos oferece o Patrono do tempo comum? Ele nos oferece a chance de superar a praga do estresse, provocado pelo vírus da rotina. Ele nos oferece a Mística do Reino de Deus. Para entendê-la melhor, repasso outra destas estórias que herdamos dos antepassados, do tempo em que iniciou-se a construção da Catedral de Notre Dame, de Paris, na hora exata em que um viajante observa os operários carregando pedras para os seus alicerces, e pergunta a um deles: "o que fazes?", Ao que este responde com enfado: "estou carregando pedra, não vês?" E repete a pergunta a outro, que, por sua vez, responde: "estou construindo uma catedral'. Assim, uma mulher que varre a casa está apenas "varrendo a sua casa" ou está "preparando um lar feliz". Assim um amoroso pai de família que inventa mil artifícios para livrar seus familiares do estresse, neste isolamento compulsório do COVID 19, está "obedecendo às ordens do poder público" ou está "salvando vidas de pessoas amadas". Depende da mística. O  passarinho que dá mil pequenos vôos de lá pra cá, carregando minúsculos gravetos, para fazer um ninho no galho de uma grande árvore, onde  vai gerar seus pequeninos filhotes.... está construindo a Vida do Universo.

     Tudo isso é a Mística do Reino de Deus, com  olhos abertos para as realidades humanas e

a Fé atenta à ação do Espírito, invisível a estes olhos.

     E nós somos os seus artífices, tanto mais fiéis quanto mais contemplarmos todas as coisas com o olhar do Espírito Santo. Passada a festa de Pentecostes, continuamos a suplicar-lhe: "Enviai o vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da terra".

 Amém.

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário