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segunda-feira, 1 de junho de 2020

POESIA E MÍSTICA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

por Frei Aloísio Fragoso

      Quero apresentar-lhe o Pe. Daniel Lima. Depois de conhecê-lo melhor, através de seus poemas, compreendi o sentido real da expressão "ilustre desconhecido". Viveu até 2012, 95 anos, dos quais a metade, enclausurado voluntariamente, em sua residência, nesta cidade de Recife. Fez poemas a vida inteira e nunca permitiu qualquer divulgação. Passados os 90 de idade, por artimanha de alguns amigos, sua obra finalmente foi publicada em livro. Logo na primeira edição, ganhou o prêmio nacional Alphonsus Guimarães, o melhor livro de poesias publicado no Brasil, aquele ano. Nestes tantos anos, consegui visitá-lo três vezes e, de cada visita, saí com a mesma impressão: ele era um mistério em forma humana.

     Quem lê seus poemas começa a desvendar este mistério.

     Segundo um de seus amigos mais próximos, Zeferino Rocha, "a obra poética de Daniel Lima aborda temas existenciais cuja atualidade é perene. Entre estes temas tem lugar de destaque: a dialética da vida e da morte, a fugacidade do tempo, o valor único dos instantes, o homem como ser em viagem, esperança e desespero, presença e ausência, a dialética da luz e das sombras, o problema da liberdade e da escolha, o misterioso mundo do silêncio".

     A simples menção dos assuntos, que ele aborda dialeticamente, nos indica a sua atualidade para o momento pandêmico que estamos enfrentando.

     Por isso gostaria de alternar com ele algumas das nossas próximas REFLEXÕES. Comecemos por um poema que expressa o conflito maior que ele viveu, a decisão de viver enclausurado por mais de 40 anos enquanto  versificava  a utopia de correr mundo em busca do sentido da vida.

 

SÚPLICA AOS SANTOS ANDEJOS

 

Abraão, que andaste terras,

Sem cansaço, sem

queixumes,

Patrono dos vagabundos,

Da fé tão pura, tão limpa,

Que nunca se questiona

Nem se faz filosofia.

          (.....)

Pela fé sempre levado

Pra diante para cima,

Céu bem claro ou noite escura,

Abraão, meu santo andejo,

Que, se por fora eu não ande,

Por dentro eu não pare nunca.

          (....)

E tu, José Carpinteiro,

Que eu chamo de S. José,

Tantas viagens fizeste

Com o Deus-Menino e Maria,

Eles, tu, mais um jumento,

E a fé que te sustentava.

          (....)

José, carpinteiro santo,

Que nessa comprida fuga

Por anjo em sonho assoprada,

Salvando a Virgem e o Menino

Salvastes a salvação,

Te beijo o sapato e os pés.

 

E tu, Francisco de Assis,

Árvore, peixe, passarinho,

Luz do fogo, água do mar,

Tu, Chico dos meus amores,

Que mendigo te fizeste,

Santo e malandro de Deus;

           (....)

Roga por mim, viajeiro,

Que não sei largar bagagem:

Tenho doze guarda-chuvas,

Vinte pares de chinelos,

Cinco mil e oitenta livros,

Medo e preguiça demais!

 

Vós, ó santos peregrinos,

Andejos  que em vida fostes,

Por livre escolha ou destino,

Mas fiéis à vocação

(Que andar é coisa divina

Parar é que é perdição);

 

Andejas  fazei-me as pernas,

O coração e os sapatos!

Tirai-me esta sonolência!

Sacudi-me esta preguiça!

Calçai-me vossas sandálias

De peregrinos fiéis!

 

Pés dos santos vagabundos,

Vagabundai os meus pés!

     Pé. Daniel Lima


FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


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