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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Morrer Abraçados




Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

O edifício, que tinha cinco unidades de confecção, desabou no dia 24 de abril, quando quase três mil pessoas trabalhavam no local. A tragédia ocorrida em Bangladesh tem mobilizado emoções mundo afora, com seu balanço de mais de 800 mortos, entre aqueles cujos corpos foram encontrados sob os escombros e os que faleceram nos hospitais para onde foram levados.
         A tragédia, além de estrutural, é também criminal.  A polícia de Bangladesh apura as responsabilidades do proprietário do edifício que desmoronou e dos responsáveis pelas fábricas têxteis, onde centenas de pessoas trabalhavam em condições desumanas e foram impedidas de deixar o local apesar das rachaduras constatadas no edifício um dia antes. 

         Em meio a todo este luto, a foto clicada pela ativista Taslima Akhter transformou-se em ícone da tragédia e denúncia profética da injustiça terrível que é sua causa direta. O casal abraçado morto sob os escombros transformou-se em símbolo eloquente daquilo que se espera que nunca mais aconteça.  O rosto já enrijecido do homem, coberto de pó, apoiado sobre o corpo da mulher, cujo rosto não se vê, serve de rosto e identidade às vítimas sem voz desta tragédia.

          A parte de baixo dos corpos está enterrada no cimento.  E do rosto visível do homem escorre sangue como lágrimas. Seguramente se abraçaram no momento em que ruía o prédio e eram soterrados.  O abraço derradeiro dá testemunho de sua humanidade, de sua carne que procura em outra carne apoio e ajuda em um momento extremo. É o perfeito retrato da dor de um país inteiro, de um mundo inteiro.  Pois quem, dotado de alguma sensibilidade, pode ficar intocado interiormente pela visão desta foto?

          Com toda a dor que transmite, com toda a feiura e brutalidade da tragédia que revela, no entanto, a foto possui uma estranha beleza.  Trata-se da beleza da humanidade, obra do Criador, que deixa o selo do amor mesmo em meio ao mais assombroso e aterrorizante desamor.  Que marca com o selo da vida as situações onde só existe a morte e a destruição. A ternura que emana do abraço do casal não pode deixar de tocar e sensibilizar a todos que a vêem e se sentem atingidos e sabem que nunca a esquecerão.

          A fotógrafa tentou por todos os meios descobrir a identidade do casal e a relação que os unia. Seriam casados?  Amantes?  Amigos? Colegas? Nada foi descoberto até agora. Porém, desde o seu anonimato, seu abraço é mais eloquente que todos os documentos de identidade possíveis.  Retratam um povo, uma parcela da humanidade que vive e trabalha em condições subumanas. Um povo solidário na opressão e na dor de sua subjugada situação.  E que ao ser empurrado para a morte pela injustiça que o oprime só encontra no abraço do outro, da outra, do amor, da amizade ou da proximidade física um canal para expressar sua humanidade. 

          Emocionada ao falar sobre a foto que conseguiu fazer com sua câmera, Taslima Akhter diz ser assombrada por essa imagem em seu sono e vigília.  Sente como se o casal dissesse: “Nós não somos um número. Não somos apenas vidas baratas e mão de obra barata. Somos seres humanos como você. As nossas vidas são tão preciosas quanto a sua, e os nossos sonhos são preciosos também.”

          Como na música de Chico Buarque “Futuros Amantes”, o casal da foto foi descoberto e seu abraço na morte trazido à luz não pelos escafandristas que mergulham em cidades submersas.  Nem tampouco pelos sábios que se debruçam sobre pergaminhos e documentos antigos para decifrar seu sentido. Mas pelo clic de uma mulher inconformada com a injustiça que existe em seu país e no resto do mundo onde vive. 

          Eles e ela hoje nos dizem que a única força capaz de ser sempre amável é o amor.  E o amor acolhe e aplaude abraços ternos e amorosos.  Mas repudia com veemência estruturas e meios de produção onde seres humanos são massacrados diariamente, expostos a perigos e agredidos em sua chama vital.

          No entanto, como diz ainda o poeta, “amores serão sempre amáveis”.  E este também o é, apesar da tristeza que envolve a situação onde foi encontrado. Do fundo de seu abraço infinitamente terno, o homem e a mulher da foto de Tasmina Akhter são novo Adão e nova Eva. Atestam que, apesar de tudo, amor é sempre sopro de vida, ainda que em meio à morte e aos escombros poeirentos de uma fábrica têxtil devoradora de vidas. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. é autora de “Crônicas de cá e de lá” (editora Subiaco), que  pode ser  encomendado diretamente à escritora pelo e-mail –  agape@puc-rio.br – R$ 20,00.
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

 

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