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sexta-feira, 3 de maio de 2013

Teologia e Trabalho: Relação a construir


Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

A  teologia cristã tem uma relação complexa com o trabalho e um entendimento  ambíguo deste. Por um lado, o apóstolo Paulo afirma que cada pessoa tem de  trabalhar, pois "quem não trabalha não tem o direito de comer".  O livro  do Gênesis, que relata a Criação feita por Deus do mundo e do cosmo, afirma  que o trabalho encontra sua fonte no próprio Deus que trabalhou para criar o  mundo.  E aqui o judaísmo se diferenciava do pensamento greco-romano,  para o qual o trabalho "braçal" era indigno dos cidadãos, devendo ser feito  apenas pelos escravos. Por outro lado, o trabalho está colocado debaixo de  maldição desde a  "Queda" de Adão e Eva - trabalho do homem com suor e  canseira; trabalho de parto da mulher com dores e suores. É o castigo pelo  pecado original e, portanto, tem muito mais uma dimensão de pena do que de  prazer.

            O  Novo Testamento confirma a visão da necessidade do trabalho que Paulo ratifica  com palavras do próprio Jesus: “Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho”.  Afinal, de que trabalho se trata, este que o próprio Deus não cessa de  executar, e que seu Filho, encarnado e andando pelo mundo, também exerce  continuamente?  Pode tratar-se de um castigo algo que o próprio Criador  executa sem cessar, ao preço de afadigar-se divinamente?  Pode ser apenas  suplício e dor, algo que o Filho contempla como sendo a atividade constante de  seu amado  Pai?

            Neste  Dia do Trabalho, vale meditar em algumas implicações da fé cristã para uma  teologia do trabalho.  Sobretudo em tempos onde a presença de um trabalho  enobrecedor e criativo corre o risco de desaparecer, engolido por um ativismo  febricitante e louco, onde o emprego tomou o lugar do trabalho e é exercido  apenas para sobreviver, enriquecer e consumir, sem nenhuma conotação de  criatividade, gozo ou transcendência.  Há pessoas que são empurradas a  executar um trabalho que as embrutece porque senão morrem de fome.  E há  outras que trabalham cada dia mais para poder acumular os bens sem os quais  creem não poder viver.  O fim de umas e outras é uma morte prematura,  seja por infarto, hipertensão ou depressão e suicídio.

            A  filósofa francesa Simone Weil experimentou na carne as agruras do trabalho  operário em fábricas da primeira metade do século XX.  Ali sentiu que à  medida  que passava os dias em frente das máquinas, os pensamentos iam  fugindo e escapando de sua mente.  As cadências das máquinas e o ritmo da  produção eram muito rápidos. Simone  havia sido sempre lenta para os  trabalhos manuais e não estava habituada a agir sem pensar.  Ela fazia   a triste descoberta de que a sociedade moderna se edifica sobre  trabalhos para os quais o ser humano deve obrigar-se a não pensar. E constatou  que se não houvesse o repouso hebdomadário, que fazia com que as ideias  voltassem a circular em sua cabeça, ela estaria logo convertida em uma besta  de carga.

     No entanto, experimentava igualmente que em meio à dureza do  trabalho tão pesado para ela que jamais exercera um trabalho manual aconteciam  lampejos de solidariedade fraternal que a consolavam. Cada vez que sentia na  pele a mordida da queimadura do forno, o soldador que se encontrava à sua  frente lhe dirigia “um sorriso triste, cheio de simpatia fraterna”, que lhe  fazia “um bem indizível”. E quando, depois de uma hora e meia, o calor, a  fadiga e a dor a faziam perder o controle dos movimentos, impedindo-a de  baixar a tampa do forno, um metalúrgico se precipitava e baixava-o para ela.   Isso a inundava de gratidão e reconforto.

    E Simone então reflete  sobre esta dupla face do trabalho, de embrutecimento, mas igualmente do  exercício da solidariedade. Ela diz que  mesmo sofrendo tudo isso, está  feliz ali onde está.  Declara: “Tenho o sentimento, sobretudo, de haver  escapado de um mundo de abstrações e de me encontrar entre os homens reais –  bons ou maus, mas de uma bondade ou de uma maldade verdadeiras. A bondade em  uma fábrica é qualquer coisa de real quando ela existe; pois o mínimo ato de  benevolência... exige que se triunfe da fadiga, da obsessão do  salário.”

     Quando Simone Weil saiu da fábrica, após um ano de trabalho,  sentia que sua juventude havia ficado para trás e ela se encontrava marcada  pelo ferro em brasa da escravidão.  Escravidão essa que, segundo ela, é  “o trabalho sem luz de eternidade, sem poesia e sem religião.” Todo trabalho,  para ser criativo e realizador, deve ser ungido por essa transcendência que  nos diz que não somos animais nem bestas de carga, mas participantes ativos no  trabalho do Criador, que jamais abandona a obra de suas mãos.


Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora  do departamento de teologia da  PUC-Rio e é  autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas),  entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)

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