Por Eduardo Hoornaert
No momento pipocam por toda parte
explicações da situação atual no Brasil, principalmente na Internet, mas também
na rádio, na TV e nos jornais. Enumero algumas:
– O Brasil está em crise.
Nos grandes meios de comunicação, essa afirmação é hoje um postulado. Mas não
se explica o que se entende por ‘crise’. Em 1939, quando eu tinha 9 anos, o
país em que nasci estava em ‘crise’: as pessoas estocavam alimentos e todos
sentiam que a guerra se aproximava. Isso era crise. Neste momento, no Brasil,
os preços aumentam, o consumo diminui, mas será que isso é crise? O fato de
alguns deixarem de viajar a Orlando com a família porque o dólar está alto é
sinal de crise? É o que se diz na TV. Minha impressão é que os grandes meios de
comunicação têm interesse em falar em ‘crise’.
– Vivemos numa democracia.
O termo ‘democracia’ virou uma palavra sagrada, intocável. Mas o que dizer de
um país de 200 milhões de habitantes, em cima dos quais os porta-vozes de uma
só família, os filhos de um bem-sucedido jornalista do Rio de Janeiro que criou
uma rede de meios de comunicação, pronunciam a cada dia oráculos que passam por
verdades eternas, praticamente nunca contestadas? Isso é democracia? Há muitos
outros exemplos que mostram que a palavra ‘democracia’ não corresponde ao que
está efetivamente acontecendo.
– A economia é uma ciência.
A indicação, pela presidenta Dilma, de Joaquim Levy como ministro da Economia,
é interpretada por muitos como escolha de alguém formado em ‘ciência
econômica’. Dá se a impressão que Levy domina uma ciência que o comum dos
mortais não consegue entender, mas que deve ter seus segredos. Faz
aproximadamente 250 anos, desde Adam Smith (1776), que os economistas procuram
erguer suas ‘artes’ ao patamar de ciência. A história desmente essa pretensão e
apresenta muitos casos em que a economia provou ser, não uma ciência, mas uma
‘arte de fazer’.
– O Brasil está dividido
entre inteligentes e ignorantes. Essa é uma análise extremamente
grosseira, mas hoje vejo que ela é adotada por quem se autoproclama ‘filósofo’,
‘analista político’, ‘jornalista qualificado’. No final do ano passado, os
ignorantes colocaram Dilma no poder, mas ‘depois de ver como ela governa’,
compreendem que os inteligentes têm razão. Daí os números extremamente baixos
da popularidade da presidenta. Mas, como se sabe de que modo Dilma governa?
Isso passa necessariamente pela mediação dos grandes meios de comunicação, e
assim voltamos ao acima exposto acerca da concentração da comunicação pública
no Brasil nas mãos de um número extremamente reduzido de pessoas.
– O ciclo PT passou. Alguém
disse isso e muitos o repetem. A explicação tem uma aura de verdade inconteste
que dispensa análise empírica. Como foi dito por uma pessoa inteligente, deve
ser verdade. Se você duvidar, é petista ignorante.
– Lula é populista. Essa frase também tem ares de inteligência. Mas o
que se entende por ‘populista’? Assisti recentemente a um programa na
televisão, em que se disse que populista é quem simpatiza os governos
‘populistas’ de Venezuela, Bolívia e Ecuador (as repúblicas bolivarianas).
Isso, disse o interlocutor, não tem futuro, pois esses governos não têm
dinheiro. Melhor aliar-se aos Estados Unidos e à Europa, onde há dinheiro.
Então entendi o que é populista: é o contrário de dinheirista.
– Temos de combater o terrorismo. Divulgado
aos quatro ventos pelo presidente americano Bush na manhã do dia 11 de novembro
de 2001 (data do ataque às torres gêmeas em Nova Iorque) depois de receber um
telefonema de seu conselheiro Kissinger que falou em ‘war on terror’ (guerra contra
o terror), o terrorismo é um dos termos que caracterizam as sociedades em que
vivemos. A civilização está sendo ameaçada por terroristas, assim como no
passado esteve ameaçada por comunistas. Mas, se um drone americano mata pessoas
inocentes no Afeganistão, isso é terrorismo? Não, ninguém diz isso. Matar
inocentes no Afeganistão é combater o terrorismo, assim como apoiar golpes
militares na América Latina, nos anos 1960-70, era combater o comunismo. Dias
passados, a Câmara Federal aprovou uma lei que de certa forma aplica ao Brasil
o pacote antiterrorista fabricado nos Estados Unidos. Essa lei parte da ideia
que o terrorismo pode estender seus tentáculos sobre o país, o que deve ser
evitado a qualquer custo. Temos de ficar de sobreaviso, pois a conspiração
terrorista pode eclodir onde menos se espera. Quem não concordar com ideias
divulgadas pelos grandes meios de comunicação, por exemplo, é potencialmente
‘terrorista’.
A lista de frases que hoje pretendem
explicar o Brasil não se esgota com esses poucos exemplos. Mas as que
apresentei brevemente acima bastam para que enxerguemos a saída diante do poder
avassalador dessas e de outras frases que costumamos ouvir diariamente nos
grandes meios de comunicação. Penso que, mais que nunca, é preciso usar o cérebro.
A coisa mais preciosa que a natureza pode nos oferecer é um cérebro que
funcione bem, ou seja, que nos faça pensar de forma independente. O cultivo de
uma inteligência independente constitui a tarefa mais importante da vida.
Como o cérebro está diretamente
ligado aos órgãos de observação (visão, audição) e trabalha os dados
provenientes desses órgãos, tudo depende da capacidade de elaborar corretamente
o que nos vem por meio da observação. Quando assistimos à TV, por exemplo, o
cérebro não fica totalmente passivo mas interage com as imagens e as palavras.
Diante do bombardeio diário de
imagens e mensagens, um cérebro sadio se posiciona de forma independente. Isso
se chama reflexão. Esse cérebro forma um ‘critério’, ou seja, um pensamento
crítico acerca do que ouvimos e vimos na tela. O critério correto é resultado
de uma luta permanente pelo domínio sobre nossa própria mente. Arriscamos
‘perder a cabeça’ quando não reagimos diante da maré montante de palavras e
imagens diariamente despejadas sobre nós. Pois se trata realmente de uma maré,
que ameaça inundar tudo, se não construímos um dique seguro para conter seu
avanço. Esse dique é nossa inteligência. Se não preservamos nossa inteligência
independente, corremos o perigo de virar um rebanho empurrado por um louco.
A marcha do dia 16 de agosto. Para terminar, umas palavras acerca da marcha do
dia 16 de agosto, em grande parte preparada pelo movimento ‘Vem Pra Rua’ (VPR),
que se articula de forma bem organizada por meio da Internet. Há quem pensa que
essa marcha apresenta uma alternativa para o Brasil. Mas é preciso saber que o
movimento VPR se articula em torno de um núcleo duro de apenas cinco pessoas,
um verdadeiro ‘comando’ muito bem organizado, com disciplina e sem crítica
interna (como acaba de revelar o Jornal ‘Valor’). Se alguma mensagem corre pela
Internet que não esteja de acordo com o que esse núcleo decide, ela é eliminada
do circuito organizado pela VPR.
Estamos diante de um movimento que
não tem nada de novo, a não ser a técnica de comunicação e o charme de pessoas
bem-sucedidas na vida, que têm entre 40 e 50 anos e participam do dito núcleo
central u colaboram com ele. Esse núcleo duro decide atacar Dilma e
Lula (talvez Renan Calheiros), mas não Eduardo Cunha. Você
participa da marcha, grita palavras de ordem e pensa agir com liberdade, mas na
realidade está enquadrado dentro de um movimento que ‘outros’ (Globo, Veja,
etc.) já começaram a interpretar antes mesmo que aconteça a marcha do dia 16 de
agosto. É essa interpretação ‘pré-fabricada’ que constitui a ração a ser
digerida pelo grande público a partir do dia 16 de agosto.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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