Por Marcelo
Barros
Para o Catolicismo popular do
interior da Bahia e do norte de Minas, em agosto acontecem as peregrinações a
Bom Jesus da Lapa (Ba) e a Pirapora (MG). Tudo começa no dia 06 de agosto, celebração
da Transfiguração do Senhor. Conforme os evangelhos, ao subir uma montanha, os
discípulos viram Jesus com uma aparência luminosa, toda tomada pela presença
divina em seu corpo. Até hoje, as comunidades celebram a memória da
transfiguração de Jesus no alto do monte para estimular todos nós a vivermos,
no dia a dia, esse mesmo processo de divinização. Jesus se deixou ver como
impregnado de Deus quando já estava indo a Jerusalém, como profeta pobre e
perseguido, enfrentar o poder político e religioso da época. Nós também somos
chamados a perceber essa presença divina em nós, principalmente em meio à
realidade da luta social e no dia a dia, quando nos descobrimos frágeis e
feridos por tantas cicatrizes da vida.
Atualmente, em nossa sociedade, cada
vez mais se espalha uma cultura do cuidado com o corpo. As pessoas fazem caminhadas,
freqüentam academias de malhação e procuram alimentos mais saudáveis.
Entretanto, esses cuidados necessários só dão pleno resultado se cada um/uma
rever o seu ritmo de vida e, em tudo o que faz, privilegiar uma dimensão mais humana
e profunda do seu ser. Nos anos 70, no Recife, um padre, tido como alguém de
trato difícil, recebeu um telefonema. Era Dom Helder Camara e lhe pedia uma
audiência. O padre se sentiu honrado que o arcebispo lhe solicitasse a
audiência. Mas, Dom Helder esclareceu que o diálogo que propunha era do padre consigo
mesmo. O padre respondeu: “Faço bem o meu trabalho, mas não aceito que ninguém
interfira na minha vida pessoal”.
É lamentável que muita gente ainda
faça essa separação entre a competência no trabalho e a coerência interior, no
nível mais profundo do seu ser. A ciência moderna criou uma concepção de
verdade objetiva que parece desligada da relação entre ética pessoal e verdade.
Os antigos pensadores se interessavam pela verdade, à medida que ela
engajava o mais profundo do nosso ser interior. Em um artigo recente no IHU,
Castor Bartolomé Ruiz afirmou: “A verdade da filosofia como forma de vida só
pode ser atestada como verdadeira e útil, na medida em que a pessoa que a ela
adere a assume efetiva e concretamente pelo seu modo de viver”. Na Filosofia
antiga, não havia separação entre ciência e ética.
A Ética era concebida como um caminho pelo
qual se pratica a verdade em que se crê e a qual se adere. Do mesmo modo que um
atleta, para manter sua boa forma física deve praticar permanentemente os
exercícios necessários, o caminho da prática das virtudes exige a opção por
expressar isso em forma de beleza, de estética. Dentro dessa concepção, a Arte
não é algo separado da fé e da proposta de vida que o artista tem. Ética e
Estética estão ligadas em um único processo de transformação interior. Conforme
os filósofos antigos, tanto em uma obra de arte, como no modo de ser e de se
relacionar, cada pessoa deve alcançar o seu autodomínio. Para isso, a Filosofia
propunha “o cuidado de si” que nada
tinha a ver com um zelo egoísta ou individualista com seus próprios interesses.
Tratava-se muito mais de um empenho em progredir como pessoa na direção de uma
plena humanização. Em nossos tempos, Michel Foucault chamou isso de “veridição”,
um neologismo para expressar a busca de uma coerência entre o que a pessoa
pensa e o que a pessoa faz. Nas obras de arte, quando vemos uma obra de
arquitetura, contemplamos um quadro, uma pintura ou ouvimos uma música
determinada, quando elas são verdadeiras e profundas, podemos discernir nos
traços e na forma de expressão o caminho espiritual do/a artista.
Nas tradições orientais, o silêncio
e a meditação são elementos para ajudar as pessoas a aprimorar a busca
interior. Nas tradições afrodescendentes, a descoberta do seu Orixá e a
obediência a um caminho comunitário são instrumentos desse desdobramento da
pessoa no cuidado com a sua verdade interior e a sua inserção na comunidade.
No Cristianismo, a meta não é apenas
partir de si mesmo e em busca de si mesmo. A meta é alta porque se trata de
deixar-se impregnar e transformar pelo Espírito que recebemos no batismo. E a
pessoa percorre esse caminho como discípulo/a no seguimento de Jesus e ao
aderir à causa pela qual Jesus deu a vida: a realização do projeto divino de
paz, justiça e comunhão nesse mundo.
Para realizar essa peregrinação interior,
é preciso simplificar o modo de viver, buscar a sobriedade e principalmente,
aprofundar a sua capacidade de amar. Conforme os evangelhos, Jesus propôs, como
condição para o discipulado, o despojamento pessoal e a disposição de partilhar
com o outro tudo o que se tem e o que se vive. A espiritualidade bíblica
insiste que o cuidado com a interioridade é para ajudar a pessoa a sair de si e
viver a comunhão com os outros e com a natureza como sinal e sacramento da
presença amorosa do Espírito no mundo. Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano,
mártir do nazismo, dizia: “Deus está em mim para você e está em você, para mim.
De fato, a divindade está em mim, mas eu só a percebo em você. Se eu a visse em
mim, poderia confundi-la com minha própria autoimagem, o meu próprio eu. Eu
descubro o Espírito revelado em você. Então, você o revela presente em mim,
assim como eu o mostro presente e atuante em você”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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