por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Talvez o ouvido seja o
órgão que mais se encontra em crise de uso hoje em dia. É tanto ruído,
tanto barulho, tanta diversidade de sons que é difícil ouvir o outro. Ou
ouvir a beleza que se esconde nas dobradiças do universo. Ou ouvir os
lamentos dos pobres que carregam às costas um pesado cotidiano. Ou ouvir
a alegria inocente das crianças que brincam.
Os psicanalistas são pagos
para ouvir. Os padres não. Mas nem por isso deixam de ouvir, nos
confessionários, as misérias e angústias de tantos e tantas. Dali saem os fiéis
para cumprir a penitência que lhes foi determinada e, assim, fechar o ciclo do
perdão e recomeçar.
O fato de se ter que
buscar um especialista – cientista ou religioso – para ser ouvido dá bem uma
dimensão de como o ouvir anda em crise e como é precária a escuta em nossa
sociedade de muito falar e prestar atenção.
No entanto, é com a escuta
que tudo começou. O povo da Bíblia sempre experimentou a presença do
Eterno como Palavra. Palavra que desde o silêncio sem começo foi livremente pronunciada
no tempo e na história, penetrou os ouvidos humanos e fez cair os véus que
velavam aos olhos interiores o dinamismo existencial sobrenatural que os
habitava.
Nos primórdios da
Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre
essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e
fala. Porém, para que a essa conclusão se chegasse, a essa metáfora para falar
do Indizível e Inefável, foi necessário que existisse um ouvinte, homem ou
mulher, que ouviu, ouve e fala sobre aquilo que ouviu.
A linguagem humana, à
medida que toma consciência de si mesma, percebe que fala do que lhe foi dado,
fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do
mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na
origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.
Se físicos e cientistas se
debatem com a pergunta sobre o porquê de existir algo em vez de nada, o poeta e
o crente, pelo contrário, em sua inspiração, “sabem”, já que o apalpam em sua
povoada ignorância que o fazem dizer o que não diriam porque não sabiam, mas
que sabem porque lhe é ensinado gratuita e amorosamente ao pé do ouvido.
Antes do nome, antes
podermos dar nome às coisas, está o Nome que a tudo nomeia e por nada nem ninguém
pode ser nomeado. “Coisa grave e surda, inventada para ser calada,” diz Adélia
Prado. Nome existente no silêncio e nele eloquente como dom amoroso, que se
experimenta indizível e inexprimivelmente. Nome impronunciável pelos lábios
humanos, mas que misericordiosamente se faz acessível à carne perecível e
mortal, destinada à morte e transpassada de finitude.
Nó de relações, aberto ao
mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco, cuja flecha
mira o infinito, lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde
partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal.
Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o
constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o
caos primitivo.
Místicos, profetas e
poetas, ao longo da história da humanidade, têm expressado essa dignidade da
condição humana de ser “confidente” privilegiada do misterioso e “esplêndido
caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros” onde nascem as preposições,
os advérbios, os nomes próprios e comuns tal como diz ainda a poeta de
Divinópolis. São esses e essas, eleitos e apaixonados confidentes, que padecem
os silêncios da Palavra que é Silêncio recolhido e imanipulável; mas são igualmente
os gozosos interlocutores que gozam da graça de saber-se feitos para ouvir e
ser recriados por essa Palavra que os surpreende a cada minuto.
A Revelação chega ao ser
humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e
gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que
a precede. É, portanto, graça de Deus não só Ele fazer essa proposta ao ser
humano, mas o é também o fato de este último, em sua limitação e sua finitude,
poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e
comprovações empíricas.
Sendo algo tão fundamental
para a compreensão do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma
definição da própria identidade: “ouvinte da palavra”. Bem o sabia o povo
de Deus, quando era instado pelo Senhor a ouvir: “Escuta, Israel!”. E muitas
vezes, convidado a ir para o deserto, sem nada que recreasse a vista, sem
ídolos que aprisionassem as pupilas dos olhos para poderem, enfim, ouvir.
Afinar os ouvidos para um
silêncio grávido e esperar pacientemente que deste emerja o parto da Palavra
ansiada e desejada é a vocação maior do ser humano, sua própria identidade,
constitutiva e instituinte. Ouvir para acolher; ouvir para aprender;
ouvir para amar; ouvir para ser. Ouvir para receber sempre de novo o convite de
“voltar ao primeiro amor” e não esquecê-lo. Ouvir para converter-se sempre de
novo em “ouvinte” de uma Palavra maior, que revela, convoca e envia.
Pois o Senhor Deus desperta-nos
todas as manhãs, desperta-nos o ouvido para que ouçamos, como aqueles que
aprendem.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por
Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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