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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

OUVIDO: ÓRGÃO SIGNIFICANTE DA IDENTIDADE HUMANA

por Maria Clara Lucchetti Bingemer 


Talvez o ouvido seja o órgão que mais se encontra em crise de uso hoje em dia.  É tanto ruído, tanto barulho, tanta diversidade de sons que é difícil ouvir o outro.  Ou ouvir a beleza que se esconde nas dobradiças do universo.  Ou ouvir os lamentos dos pobres que carregam às costas um pesado cotidiano.  Ou ouvir a alegria inocente das crianças que brincam.

Os psicanalistas são pagos para ouvir.  Os padres não.  Mas nem por isso deixam de ouvir, nos confessionários, as misérias e angústias de tantos e tantas. Dali saem os fiéis para cumprir a penitência que lhes foi determinada e, assim, fechar o ciclo do perdão e recomeçar. 

O fato de se ter que buscar um especialista – cientista ou religioso – para ser ouvido dá bem uma dimensão de como o ouvir anda em crise e como é precária a escuta em nossa sociedade de muito falar e prestar atenção.

No entanto, é com a escuta que tudo começou.  O povo da Bíblia sempre experimentou a presença do Eterno como Palavra. Palavra que desde o silêncio sem começo foi livremente pronunciada no tempo e na história, penetrou os ouvidos humanos e fez cair os véus que velavam aos olhos interiores o dinamismo existencial sobrenatural que os habitava.

Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Porém, para que a essa conclusão se chegasse, a essa metáfora para falar do Indizível e Inefável, foi necessário que existisse um ouvinte, homem ou mulher, que ouviu, ouve e fala sobre aquilo que ouviu.

A linguagem humana, à medida que toma consciência de si mesma, percebe que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.

Se físicos e cientistas se debatem com a pergunta sobre o porquê de existir algo em vez de nada, o poeta e o crente, pelo contrário, em sua inspiração, “sabem”, já que o apalpam em sua povoada ignorância que o fazem dizer o que não diriam porque não sabiam, mas que sabem porque lhe é ensinado gratuita e amorosamente ao pé do ouvido.

Antes do nome, antes podermos dar nome às coisas, está o Nome que a tudo nomeia e por nada nem ninguém pode ser nomeado. “Coisa grave e surda, inventada para ser calada,” diz Adélia Prado. Nome existente no silêncio e nele eloquente como dom amoroso, que se experimenta indizível e inexprimivelmente. Nome impronunciável pelos lábios humanos, mas que misericordiosamente se faz acessível à carne perecível e mortal, destinada à morte e transpassada de finitude.

Nó de relações, aberto ao mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco, cuja flecha mira o infinito, lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal. Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o caos primitivo.

Místicos, profetas e poetas, ao longo da história da humanidade, têm expressado essa dignidade da condição humana de ser “confidente” privilegiada do misterioso e “esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros” onde nascem as preposições, os advérbios, os nomes próprios e comuns tal como diz ainda a poeta de Divinópolis. São esses e essas, eleitos e apaixonados confidentes, que padecem os silêncios da Palavra que é Silêncio recolhido e imanipulável; mas são igualmente os gozosos interlocutores que gozam da graça de saber-se feitos para ouvir e ser recriados por essa Palavra que os surpreende a cada minuto.

A Revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que a precede. É, portanto, graça de Deus não só Ele fazer essa proposta ao ser humano, mas o é também o fato de este último, em sua limitação e sua finitude, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas.

Sendo algo tão fundamental para a compreensão do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma definição da própria identidade: “ouvinte da palavra”.  Bem o sabia o povo de Deus, quando era instado pelo Senhor a ouvir: “Escuta, Israel!”. E muitas vezes, convidado a ir para o deserto, sem nada que recreasse a vista, sem ídolos que aprisionassem as pupilas dos olhos para poderem, enfim, ouvir.

Afinar os ouvidos para um silêncio grávido e esperar pacientemente que deste emerja o parto da Palavra ansiada e desejada é a vocação maior do ser humano, sua própria identidade, constitutiva e instituinte.  Ouvir para acolher; ouvir para aprender; ouvir para amar; ouvir para ser. Ouvir para receber sempre de novo o convite de “voltar ao primeiro amor” e não esquecê-lo. Ouvir para converter-se sempre de novo em “ouvinte” de uma Palavra maior, que revela, convoca e envia.

Pois o Senhor Deus desperta-nos todas as manhãs, desperta-nos o ouvido para que ouçamos, como aqueles que aprendem.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

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