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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

70 ANOS DE CAMINHADA E AMOR


 por Maria Clara Bingemer

  


Sempre me pareceu muito sugestiva a comparação feita pelo célebre filósofo E. Levinas entre Ulisses e Abraão como figuras paradigmáticas da relação com o outro. Acho que, mais ainda, são protótipos antropológicos, figuras paradigmáticas da identidade humana.

Ulisses, depois da Guerra de Troia, de volta à casa, viveu a aventura de encontros múltiplos com outros, experiências variadas. Travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente. Coberto de vitórias e glória, regressou. Ao chegar, mesmo disfarçado, "diferente" do Ulisses que partira, é ainda o "mesmo"; seu cachorro, pelo faro, e Penélope, pelo amor, o reconhecem. Ulisses representa o herói do regresso, que tomou contato com o diferente apenas para, num mundo domesticado e assimilado, reduzi-lo ao mesmo.

Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra para nunca mais voltar. Sua viagem foi na direção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida. Há só uma palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica. Rompe com o passado, e o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e novo.

Há 50 anos um homem nascido em Buenos Aires, de pais alemães, empreendeu essa viagem em direção ao novo.  Movia-o nessa aventura um amor incondicional por uma mulher e uma disponibilidade para empreender com ela um caminho que não sabia qual era mas confiava em que Deus o sabia.  Aportou no Rio de Janeiro e casou-se com sua amada, viajou, teve filhos.  Juntos viveram momentos belos e difíceis.  Alguns muito difíceis. 

Jamais houve monotonia nesta união e na família que formaram. E isso porque sempre estiveram abertos ao novo, aos desafios, jamais se conformando com o mesmo e com o já conseguido.  Sua identidade foi sendo configurada por essa alteridade sempre renovada e reconfigurada diante do que a realidade e a vida lhes apresentaram.  Jamais se abismaram apenas na contemplação um do outro que rapidamente se esgota, compreenderam que eram chamados a olhar ambos na mesma direção, buscando esse horizonte, esse telos, esse Ômega que é também e ao mesmo tempo seu Alfa, sua origem e sua meta.

Este homem é meu marido, Ekke Bingemer, que no dia 1 de agosto completou 70 anos de uma vida bem vivida.  Há quarenta e seis anos caminho pela vida sem saber onde vou, mas com o apoio forte e amoroso de sua mão,  que me apoia e a confiança em Deus que nos conduz a ambos.  Já nos conduziu a muitos desafios, muitas missões que pareciam impossíveis e se concretizaram, muitas situações maiores que nós mesmos e foram vividas apesar de tudo. 

Hoje olho comovida seus cabelos brancos, sua face marcada, seu passo mais lento e sinto que está tudo menos velho.  Seu coração ainda é capaz de bater em sintonia com as dores e as alegrias da humanidade, com as belezas da criação, com a chaga das injustiças e os apelos da justiça. Vejo ao redor de nós filhos e netos confirmando as escolhas que fizemos e as graças que recebemos.  São eles e elas a personificação da fecundidade que sempre desejamos e que nos foi dada por acréscimo.

Aquele amor que começou em um navio em viagem para a Europa, quando tínhamos respectivamente 16 e 20 anos e  posteriormente foi sacramentado pelo matrimônio tampouco envelheceu.  Foi sendo consolidado, reafirmado, transformado, incessantemente reconfigurado, não pela idade nem pelo tempo passado, mas pelo novo que se apresentava a cada passo e urgia uma resposta.

Se algum desejo expresso neste momento de seu aniversário de 70 anos é o de que ainda possamos caminhar muito pela vida, sempre para a frente, com os olhos no horizonte que não conseguimos agarrar com nossas mãos, mas  nos seduz e fascina, e nos dá forças para seguir adiante.  Minha mão na sua me faz forte de uma força que conjura os medos, exorciza as ambições estéreis e faz o coração bater mais forte de um entusiasmo sempre renovado.

Você sempre foi livre e me deixou livre para ser o que desejasse.  E o que desejo é que continuemos sendo cúmplices, companheiros, amantes e caminhantes nesta eterna viagem.  Nosso protótipo não é o Ulisses do eterno retorno, mas o Abraão, pai da fé, que caminhou para uma terra que não tinha e uma posteridade impossível, confiando apenas na palavra d´Aquele que lhe disse: “Eu estarei contigo”.  E também, mais ainda, nosso caminho é Aquele que disse de Si mesmo: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. ”
Feliz aniversário, meu amor!!!


  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
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