por Maria Clara Bingemer
Sempre me pareceu muito sugestiva a comparação
feita pelo célebre filósofo E. Levinas entre Ulisses e Abraão como figuras
paradigmáticas da relação com o outro. Acho que, mais ainda, são protótipos
antropológicos, figuras paradigmáticas da identidade humana.
Ulisses, depois da Guerra de Troia, de volta à
casa, viveu a aventura de encontros múltiplos com outros, experiências
variadas. Travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente.
Coberto de vitórias e glória, regressou. Ao chegar, mesmo disfarçado,
"diferente" do Ulisses que partira, é ainda o "mesmo"; seu
cachorro, pelo faro, e Penélope, pelo amor, o reconhecem. Ulisses representa o
herói do regresso, que tomou contato com o diferente apenas para, num mundo
domesticado e assimilado, reduzi-lo ao mesmo.
Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua
terra para nunca mais voltar. Sua viagem foi na direção do novo, do não
familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de
partida. Há só uma palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais
adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a
cada passo, é processual, histórica. Rompe com o passado, e o seu êxodo vai no
sentido de um futuro imprevisível e novo.
Há 50 anos um homem nascido em Buenos Aires, de
pais alemães, empreendeu essa viagem em direção ao novo. Movia-o nessa
aventura um amor incondicional por uma mulher e uma disponibilidade para
empreender com ela um caminho que não sabia qual era mas confiava em que Deus o
sabia. Aportou no Rio de Janeiro e casou-se com sua amada, viajou, teve
filhos. Juntos viveram momentos belos e difíceis. Alguns muito
difíceis.
Jamais houve monotonia nesta união e na família que
formaram. E isso porque sempre estiveram abertos ao novo, aos desafios, jamais
se conformando com o mesmo e com o já conseguido. Sua identidade foi
sendo configurada por essa alteridade sempre renovada e reconfigurada diante do
que a realidade e a vida lhes apresentaram. Jamais se abismaram apenas na
contemplação um do outro que rapidamente se esgota, compreenderam que eram
chamados a olhar ambos na mesma direção, buscando esse horizonte, esse telos,
esse Ômega que é também e ao mesmo tempo seu Alfa, sua origem e sua meta.
Este homem é meu marido, Ekke Bingemer, que no dia
1 de agosto completou 70 anos de uma vida bem vivida. Há quarenta e seis
anos caminho pela vida sem saber onde vou, mas com o apoio forte e amoroso de
sua mão, que me apoia e a confiança em Deus que nos conduz a ambos.
Já nos conduziu a muitos desafios, muitas missões que pareciam impossíveis e se
concretizaram, muitas situações maiores que nós mesmos e foram vividas apesar
de tudo.
Hoje olho comovida seus cabelos brancos, sua face
marcada, seu passo mais lento e sinto que está tudo menos velho. Seu
coração ainda é capaz de bater em sintonia com as dores e as alegrias da
humanidade, com as belezas da criação, com a chaga das injustiças e os apelos
da justiça. Vejo ao redor de nós filhos e netos confirmando as escolhas que
fizemos e as graças que recebemos. São eles e elas a personificação da
fecundidade que sempre desejamos e que nos foi dada por acréscimo.
Aquele amor que começou em um navio em viagem para
a Europa, quando tínhamos respectivamente 16 e 20 anos e posteriormente
foi sacramentado pelo matrimônio tampouco envelheceu. Foi sendo
consolidado, reafirmado, transformado, incessantemente reconfigurado, não pela
idade nem pelo tempo passado, mas pelo novo que se apresentava a cada passo e
urgia uma resposta.
Se algum desejo expresso neste momento de seu
aniversário de 70 anos é o de que ainda possamos caminhar muito pela vida,
sempre para a frente, com os olhos no horizonte que não conseguimos agarrar com
nossas mãos, mas nos seduz e fascina, e nos dá forças para seguir
adiante. Minha mão na sua me faz forte de uma força que conjura os medos,
exorciza as ambições estéreis e faz o coração bater mais forte de um entusiasmo
sempre renovado.
Você sempre foi livre e me deixou livre para ser o
que desejasse. E o que desejo é que continuemos sendo cúmplices,
companheiros, amantes e caminhantes nesta eterna viagem. Nosso protótipo
não é o Ulisses do eterno retorno, mas o Abraão, pai da fé, que caminhou para
uma terra que não tinha e uma posteridade impossível, confiando apenas na
palavra d´Aquele que lhe disse: “Eu estarei contigo”. E também, mais
ainda, nosso caminho é Aquele que disse de Si mesmo: "Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida. ”
Feliz aniversário, meu amor!!!
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha
da paixão e da compaixão" (Edusc)
Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a
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