por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
Dizem que a idade, na medida em que avança, vai nos tornando nostálgicos.
Passamos a sentir-nos exilados, fora de lugar, estrangeiros em toda
parte. Nossa sensibilidade se exacerba, fazendo com que cada perda, cada
ausência, cada distância seja maior, mais ameaçadora, mais sentida e, sobretudo,
sofrida. A cada partida de alguém querido, admirado, amado, abre-se uma
clareira que parece que nos vai deixando a nu e solitários em um mundo que não
mais reconhecemos como sendo nosso.
Assim me senti hoje com a
notícia da morte do grande cineasta italiano Ettore Scola. Jamais o vi
nem o conheci pessoalmente. Mas vi seus filmes, pelo menos alguns deles,
e isso foi suficiente para senti-lo próximo, identificado, quase um
amigo. E sentir-me igualmente um tanto órfã e desamparada com sua morte.
Parece que o mundo se
empobrece e obscurece quando um gênio assim deixa de povoa-lo. Andamos tão
machucados com tanto horror e brutalidade que perder alguém sensível como o
grande Scola nos arranha a alma e faz o coração envelhecer. Na era dos Matrix,
Jogos Vorazes, Guerra nas Estrelas 1, 2, 3, 4, 5 etc., seus filmes lidavam com
a cotidianidade e a simplicidade da vida. E com esses simples elementos,
tão humanos e frágeis, sem efeitos especiais, sem violência, sem barulho e 3D,
inundava de emoção e beleza olhares, corações, sentidos.
Aliando a ironia com a
profundidade, o sentimento com o humor, a crítica inteligente com a capacidade
de maravilhar-se e provocar maravilhamento, Ettore Scola criou cenas imortais,
como aquela em que uma Sofia Loren ainda jovem e muito bela estende lençóis
lavados no terraço de casa e, de repente, o vento a cobre com os lençóis
expulsos do varal. Abraçada pelo vizinho Marcello Mastroiani, riem os
dois, reencontrando alegria na profundeza de suas infelicidades. Ela é
mãe de seis filhos, cativa de um casamento infeliz com um fascista
fanático. Ele é um homossexual perseguido pelo fascismo.
Encontram-se sozinhos em casa porque Hitler, o Fuhrer, estava na cidade
visitando seu comparsa Mussolini, o Duce.
A situação não pode ser
mais negativa e, no entanto, a ternura da cena é de apertar a garganta e molhar
os olhos. A câmera de Scola afaga a humanidade tão machucada pela
barbárie do nazi-fascismo, pela infelicidade de uma mulher sozinha em meio ao
machismo de uma sociedade que a responsabiliza por uma família carregada no
ventre e nas costas em profunda solidão, pela marginalização em que se encontra
um homem correto e bom pelo simples fato de ser diferente. O filme, Una
giornata particolare (no Brasil lançado como Um dia muito especial)
é uma das obras- primas de Scola.
E, pensando bem, o que há
de tão extraordinário em seu conteúdo? Nada de excepcional, nem que fuja
aos padrões da simples condição humana. Alegria, dor, sentimentos.
Olhares, gestos, movimento. E sempre, infalivelmente, ao fundo, uma trilha
sonora bela, cheia de talento, harmonia e simplicidade comoventes. É essa
a receita do melhor cinema italiano, do qual Scola é representante mais que
autorizado.
Ele constitui um elo de
grande e respeitável tradição, à qual pertencem grandes nomes como Vittorio de
Sica (por ele homenageado no filme C'eravamo tanto amati (Nós que nos
amávamos tanto), Federico Fellini, Roberto Rosselini e outros.
Não digo que não haja hoje
em dia sucessores à altura dessa geração que se vai e da qual já restam muito
poucos. De Sica, Fellini, todos esses já povoam nosso panteão de
admiradas celebridades que nos fizeram rir, chorar, vibrar e sentir-nos
honrados de sermos pessoas humanas capazes de tão rica gama de sentimentos e
experiências. Hoje podemos identificar, entre outros, Nani Moretti, Paolo
Sorrentino. Porém, constatamos tristemente que são minoria em meio à
floresta inexpugnável das ficções mais ou menos bem-sucedidas que Hollywood
derrama incessantemente em nossas salas de projeção, locadoras e sites “on demand”.
Paciência comigo,
leitor. Avisei no princípio que a idade se fazia sentir. Gostaria
de estar menos nostálgica. Mas a notícia da partida de Scola me fez parar
para sentir, chorar e perguntar-me: por que a vida humana não interessa mais como
tema? Por que deixamos de lado a maravilha da subjetividade para ir
buscar assunto em outras galáxias e esferas? Por que até a coisa mágica e
inebriante do cinema foi tomada de assalto e transformada em indústria de
consumo, esterilizada e esterilizante?
Fico, no entanto, com a
esperança de que a herança bendita de Scola e outros a ele semelhantes não se
perca. Alenta-me ver as mulheres entrando mais e mais na sétima arte e
produzindo obras primas como o nosso Que horas ela volta?. Nem tudo
está perdido. Foi só um acesso de nostalgia. Pertinente ou não, só
o tempo dirá.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é
autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed.
Vozes)
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