O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O CINEMA SEM ETTORE SCOLA


por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Dizem que a idade, na medida em que avança, vai nos tornando nostálgicos.  Passamos a sentir-nos exilados, fora de lugar, estrangeiros em toda parte.  Nossa sensibilidade se exacerba, fazendo com que cada perda, cada ausência, cada distância seja maior, mais ameaçadora, mais sentida e, sobretudo, sofrida. A cada partida de alguém querido, admirado, amado, abre-se uma clareira que parece que nos vai deixando a nu e solitários em um mundo que não mais reconhecemos como sendo nosso.

Assim me senti hoje com a notícia da morte do grande cineasta italiano Ettore Scola.  Jamais o vi nem o conheci pessoalmente.  Mas vi seus filmes, pelo menos alguns deles, e isso foi suficiente para senti-lo próximo, identificado, quase um amigo.  E sentir-me igualmente um tanto órfã e desamparada com sua morte.

Parece que o mundo se empobrece e obscurece quando um gênio assim deixa de povoa-lo. Andamos tão machucados com tanto horror e brutalidade que perder alguém sensível como o grande Scola nos arranha a alma e faz o coração envelhecer. Na era dos Matrix, Jogos Vorazes, Guerra nas Estrelas 1, 2, 3, 4, 5 etc., seus filmes lidavam com a cotidianidade e a simplicidade da vida.  E com esses simples elementos, tão humanos e frágeis, sem efeitos especiais, sem violência, sem barulho e 3D, inundava de emoção e beleza olhares, corações, sentidos.

Aliando a ironia com a profundidade, o sentimento com o humor, a crítica inteligente com a capacidade de maravilhar-se e provocar maravilhamento, Ettore Scola criou cenas imortais, como aquela em que uma Sofia Loren ainda jovem e muito bela estende lençóis lavados no terraço de casa e, de repente, o vento a cobre com os lençóis expulsos do varal.  Abraçada pelo vizinho Marcello Mastroiani, riem os dois, reencontrando alegria na profundeza de suas infelicidades.  Ela é mãe de seis filhos, cativa de um casamento infeliz com um fascista fanático.  Ele é um homossexual perseguido pelo fascismo.  Encontram-se sozinhos em casa porque Hitler, o Fuhrer, estava na cidade visitando seu comparsa Mussolini, o Duce.

A situação não pode ser mais negativa e, no entanto, a ternura da cena é de apertar a garganta e molhar os olhos.  A câmera de Scola afaga a humanidade tão machucada pela barbárie do nazi-fascismo, pela infelicidade de uma mulher sozinha em meio ao machismo de uma sociedade que a responsabiliza por uma família carregada no ventre e nas costas em profunda solidão, pela marginalização em que se encontra um homem correto e bom pelo simples fato de ser diferente.  O filme, Una giornata particolare (no Brasil lançado como  Um dia muito especial) é uma das obras- primas de Scola.

E, pensando bem, o que há de tão extraordinário em seu conteúdo?  Nada de excepcional, nem que fuja aos padrões da simples condição humana.  Alegria, dor, sentimentos.  Olhares, gestos, movimento.  E sempre, infalivelmente, ao fundo, uma trilha sonora bela, cheia de talento, harmonia e simplicidade comoventes.  É essa a receita do melhor cinema italiano, do qual Scola é representante mais que autorizado.
Ele constitui um elo de grande e respeitável tradição, à qual pertencem grandes nomes como Vittorio de Sica (por ele homenageado no filme C'eravamo tanto amati (Nós que nos amávamos tanto), Federico Fellini, Roberto Rosselini e outros.

Não digo que não haja hoje em dia sucessores à altura dessa geração que se vai e da qual já restam muito poucos.  De Sica, Fellini, todos esses já povoam nosso panteão de admiradas celebridades que nos fizeram rir, chorar, vibrar e sentir-nos honrados de sermos pessoas humanas capazes de tão rica gama de sentimentos e experiências. Hoje podemos identificar, entre outros, Nani Moretti, Paolo Sorrentino.  Porém, constatamos tristemente que são minoria em meio à floresta inexpugnável das ficções mais ou menos bem-sucedidas que Hollywood derrama incessantemente em nossas salas de projeção, locadoras e sites “on demand”.

Paciência comigo, leitor.  Avisei no princípio que a idade se fazia sentir.  Gostaria de estar menos nostálgica.  Mas a notícia da partida de Scola me fez parar para sentir, chorar e perguntar-me: por que a vida humana não interessa mais como tema?  Por que deixamos de lado a maravilha da subjetividade para ir buscar assunto em outras galáxias e esferas?  Por que até a coisa mágica e inebriante do cinema foi tomada de assalto e transformada em indústria de consumo, esterilizada e esterilizante?

Fico, no entanto, com a esperança de que a herança bendita de Scola e outros a ele semelhantes não se perca.  Alenta-me ver as mulheres entrando mais e mais na sétima arte e produzindo obras primas como o nosso Que horas ela volta?.  Nem tudo está perdido.  Foi só um acesso de nostalgia.  Pertinente ou não, só o tempo dirá.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
  Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


Nenhum comentário:

Postar um comentário