Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Ao longo de todo o Advento e também agora no Natal, vimos refletindo sobre a
misericórdia e procurando unir-nos à convocação do Papa Francisco para toda a
Igreja com o Ano da misericórdia. Encontramo-nos agora às portas de 2016. E
desejamos fazer da misericórdia nosso projeto, nossa resolução de ano novo.
Já vimos que a misericórdia não é apenas emoção frente ao sofrimento
alheio. Isto é o movimento que a desencadeia, certamente, mas não é
autêntica misericórdia se não se faz práxis e ética. Tem que converter-se
rapidamente em fatos concretos e transformadores, geradores de justiça, paz,
perdão e alegria.
No entanto, parece-nos também que o conceito e a categoria de misericórdia
devem ter uma tradução cultural, a fim de poder ser melhor entendida e
consequentemente praticada em nossos tempos secularizados e plurais. Foi
o que aconteceu também com o termo “caridade”, que se diz hoje muito mais como
“amor”, entendendo esse amor como uma sensibilidade à vulnerabilidade do outro,
do diferente. Essa concepção de caridade é hermeneuticamente mais
compreensível quando uma mensagem deseja ser bem recebida pelos que hoje
escutam a Igreja, mas não manejam sua linguagem com intimidade e conhecimento.
Ainda que ultrapasse a justiça, a misericórdia não existe sem ela.
Portanto, tem que sair do âmbito da pura subjetividade e lançar-se para o
espaço público, provocando impactos políticos de transformação da
realidade. Não se pode conceber uma misericórdia que exista desconectada
dos direitos fundamentais da pessoa humana, da comunidade humana como um todo.
A hermenêutica da palavra o exige, a fim de que possa dar os frutos que o mundo
deseja e espera.
A conversão à misericórdia a que nos chama o Papa Francisco tem que ter diante
dos olhos a materialidade da vida, das necessidades concretas do outro, do
semelhante, do próximo. Tem que impactar sobre o comer e o vestir, sobre
a moradia como direito de todos, assim como o acesso geral à saúde. Terá
que ver com segurança no viver, sem medo que a violência e a morte interrompam
a existência a cada passo e em cada esquina. Dirá respeito à qualidade
afetiva de uma existência que não se exime de consolar os tristes e aflitos
através do dom da consolação e da esperança. Exige abrir as portas das
casas para acolher os estrangeiros que chegam e necessitam um lugar para ficar,
dormir durante a noite, enquanto buscam trabalho em um país que não é o
seu. Trata-se, enfim, de reconstruir a dignidade de vidas inteiras
afetadas pela falta de respeito e o descarte subjetivo, coletivo e sobretudo
tristemente real.
Assim, a misericórdia tem que abandonar a esfera do privado e chegar igualmente
à esfera pública, influir sobre a polis e ganhar dimensões políticas. E
não se trata aqui de uma política meramente partidária, mas de política em
sentido amplo que, ainda segundo
Francisco de Roma, é uma das formas
mais elevadas da caridade, uma vez que busca o bem comum.
O amor que vem de Deus, inspira e converte os corações, enchendo-os da mesma
misericórdia que enchia e se derramava do coração de Jesus. E o que este
amor faz é suscitar uma mística de olhos abertos, que olha em volta, vê, para e
se compadece. E busca atender as distintas situações onde a misericórdia
se faz urgente e necessária. A isso está chamada a Igreja de Cristo: a
ser no mundo uma das forças vivas onde pulsa o dinamismo do amor suscitado pelo
Espírito do próprio Jesus Cristo. É um amor que sabe que ainda que as
urgências materiais sejam prioritárias no atendimento misericordioso, uma vez
que sem isso não há vida possível, tampouco tudo não se resume à materialidade
para que haja plenitude de vida. Nem só de pão vive o homem nem a
mulher. Ambos necessitam, além de alimento, moradia e vestuário, de
tranquilidade, cuidado, liberdade, dignidade, reconhecimento. Em suma,
justiça e paz.
Uma cultura da misericórdia, portanto, tem que estar sempre em movimento, tem
que ser mais e mais dinâmica. Inclusive porque a história não se detém e
vão aparecendo novas situações de necessidade, pobreza e crise. Se não há
um olhar misericordioso, inspirado e movido pelo amor, essas situações podem
não ser percebidas. Como por exemplo, a depressão que ataca tanta gente a
ponto de ser considerada a doença do século. Ou a solidão abrumadora, que
faz com que anciãos morram em casa e ninguém se dê conta, a não ser quando,
dias depois, o cadáver entra em decomposição e chama a atenção pelo
cheiro. Tudo isso revela uma sociedade de exclusão, que glorifica o
consumo e a produtividade, não olhando e sobretudo não cuidando dos aspectos
mais dolorosos e, por isso, mais escondidos da vida.
No ano que se inicia, somos chamados a voltar-nos para o sofrimento dos mais
fracos, mas também para os excessos dos mais ricos e do consumismo capitalista
enquanto sistema. Assim também somos convocados a combater a exploração
indiscriminada e impenitente dos recursos do planeta, que está a ponto de
lançar toda a vida em um abismo sem retorno.
Assim, estaremos colaborando para uma ética global da compaixão e da
misericórdia, onde a autoridade não é dos que mandam, ou dos governos que detêm
poder, mas dos que sofrem de forma injusta e não merecida. Deles provém a
verdadeira autoridade, pois são as vítimas de todas as violências e todas as
exclusões e, portanto, os destinatários prioritários de toda a misericórdia.
Que o compromisso com eles possa ser nossa resolução maior para 2016.
Feliz Ano Novo para todos!
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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