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sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

MISERICÓRDIA: PROJETO PARA 2016

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Ao longo de todo o Advento e também agora no Natal, vimos refletindo sobre a misericórdia e procurando unir-nos à convocação do Papa Francisco para toda a Igreja com o Ano da misericórdia. Encontramo-nos agora às portas de 2016. E desejamos fazer da misericórdia nosso projeto, nossa resolução de ano novo.

            Já vimos que a misericórdia não é apenas emoção frente ao sofrimento alheio.  Isto é o movimento que a desencadeia, certamente, mas não é autêntica misericórdia se não se faz práxis e ética.  Tem que converter-se rapidamente em fatos concretos e transformadores, geradores de justiça, paz, perdão e alegria.

            No entanto, parece-nos também que o conceito e a categoria de misericórdia devem ter uma tradução cultural, a fim de poder ser melhor entendida e consequentemente praticada em nossos tempos secularizados e plurais.  Foi o que aconteceu também com o termo “caridade”, que se diz hoje muito mais como “amor”, entendendo esse amor como uma sensibilidade à vulnerabilidade do outro, do diferente.  Essa concepção de caridade é hermeneuticamente mais compreensível quando uma mensagem deseja ser bem recebida pelos que hoje escutam a Igreja, mas não manejam sua linguagem com intimidade e conhecimento.

            Ainda que ultrapasse a justiça, a misericórdia não existe sem ela.  Portanto, tem que sair do âmbito da pura subjetividade e lançar-se para o espaço público, provocando impactos políticos de transformação da realidade.  Não se pode conceber uma misericórdia que exista desconectada dos direitos fundamentais da pessoa humana, da comunidade humana como um todo. A hermenêutica da palavra o exige, a fim de que possa dar os frutos que o mundo deseja e espera.

            A conversão à misericórdia a que nos chama o Papa Francisco tem que ter diante dos olhos a materialidade da vida, das necessidades concretas do outro, do semelhante, do próximo.  Tem que impactar sobre o comer e o vestir, sobre a moradia como direito de todos, assim como o acesso geral à saúde.  Terá que ver com segurança no viver, sem medo que a violência e a morte interrompam a existência a cada passo e em cada esquina.  Dirá respeito à qualidade afetiva de uma existência que não se exime de consolar os tristes e aflitos através do dom da consolação e da esperança.  Exige abrir as portas das casas para acolher os estrangeiros que chegam e necessitam um lugar para ficar, dormir durante a noite, enquanto buscam trabalho em um país que não é o seu.  Trata-se, enfim, de reconstruir a dignidade de vidas inteiras afetadas pela falta de respeito e o descarte subjetivo, coletivo e sobretudo tristemente real.

            Assim, a misericórdia tem que abandonar a esfera do privado e chegar igualmente à esfera pública, influir sobre a polis e ganhar dimensões políticas.  E não se trata aqui de uma política meramente partidária, mas de política em sentido amplo que, ainda segundo Francisco de Roma, é uma das formas mais elevadas da caridade, uma vez que busca o bem comum.
            O amor que vem de Deus, inspira e converte os corações, enchendo-os da mesma misericórdia que enchia e se derramava do coração de Jesus.  E o que este amor faz é suscitar uma mística de olhos abertos, que olha em volta, vê, para e se compadece.  E busca atender as distintas situações onde a misericórdia se faz urgente e necessária.  A isso está chamada a Igreja de Cristo: a ser no mundo uma das forças vivas onde pulsa o dinamismo do amor suscitado pelo Espírito do próprio Jesus Cristo.  É um amor que sabe que ainda que as urgências materiais sejam prioritárias no atendimento misericordioso, uma vez que sem isso não há vida possível, tampouco tudo não se resume à materialidade para que haja plenitude de vida.  Nem só de pão vive o homem nem a mulher.  Ambos necessitam, além de alimento, moradia e vestuário, de tranquilidade, cuidado, liberdade, dignidade, reconhecimento.  Em suma, justiça e paz.

            Uma cultura da misericórdia, portanto, tem que estar sempre em movimento, tem que ser mais e mais dinâmica.  Inclusive porque a história não se detém e vão aparecendo novas situações de necessidade, pobreza e crise.  Se não há um olhar misericordioso, inspirado e movido pelo amor, essas situações podem não ser percebidas.  Como por exemplo, a depressão que ataca tanta gente a ponto de ser considerada a doença do século.  Ou a solidão abrumadora, que faz com que anciãos morram em casa e ninguém se dê conta, a não ser quando, dias depois, o cadáver entra em decomposição e chama a atenção pelo cheiro.  Tudo isso revela uma sociedade de exclusão, que glorifica o consumo e a produtividade, não olhando e sobretudo não cuidando dos aspectos mais dolorosos e, por isso, mais escondidos da vida. 
           
            No ano que se inicia, somos chamados a voltar-nos para o sofrimento dos mais fracos, mas também para os excessos dos mais ricos e do consumismo capitalista enquanto sistema.  Assim também somos convocados a combater a exploração indiscriminada e impenitente dos recursos do planeta, que está a ponto de lançar toda a vida em um abismo sem retorno.

            Assim, estaremos colaborando para uma ética global da compaixão e da misericórdia, onde a autoridade não é dos que mandam, ou dos governos que detêm poder, mas dos que sofrem de forma injusta e não merecida. Deles provém a verdadeira autoridade, pois são as vítimas de todas as violências e todas as exclusões e, portanto, os destinatários prioritários de toda a misericórdia. Que o compromisso com eles possa ser nossa resolução maior para 2016. 
Feliz Ano Novo para todos!

 Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 

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