Por Frei Betto
Os antigos, desprovidos de ciência, buscavam em suas crenças explicações aos
fenômenos da natureza. O trovão seria a voz (brava) de Deus, assim como o
arco-íris o sinal de que não haverá novo dilúvio.
A fé servia de muleta à ignorância, como provavelmente as gerações futuras
haverão de rir de muitas de nossas atuais “certezas” científicas. Ora, com
exceção da classe política, tudo evolui, felizmente.
A razão moderna, sob os holofotes do iluminismo, questionou a fé. Ela seria o
ópio do povo, clamou Marx. Pura ilusão infantil, enfatizou Freud. Incompatível
com a liberdade humana, alardeou Nietzsche.
Eis que surge um fenômeno novo: o ateísmo. A negação da existência de Deus. A
fé convicta de que Deus não merece fé. Há que centrar os olhos na Terra, e não
no céu.
Na minha opinião, o ateísmo resulta da mediocridade dos cristãos. Não há fé que
não seja reflexo do testemunho. Como convencer que Deus é um Pai amoroso se há
tanta maldade, desigualdade, sofrimento e outras atrocidades? Onde se esconde
esse Deus omisso frente à Inquisição, ao genocídio indígena na colonização da
América Latina, à Auschwitz, ao terrorismo islâmico?
Como suscitar fé nos princípios evangélicos se historicamente os cristãos
promoveram o colonialismo, atualizaram o imperialismo e confundem democracia
com capitalismo?
Daí o bazar de crendices. Para todos os gostos. Desde o Deus misericordioso do
papa Francisco, ao racista de Donald Trump até o vingativo do Estado Islâmico.
Nesse emaranhado, como separar o joio do trigo? Qual modalidade de fé cristã
merece credibilidade?
Nós, cristãos, temos fé em Jesus. O que não nos impede de fazer tudo aquilo que
contradiz o que ele pregou. Basta estudar a história do Ocidente “cristão”. Em
nome de Deus se fez o diabo!
Convém lembrar que Jesus viveu em uma sociedade profundamente religiosa. Seus
embates não foram com a religião pagã do Império Romano. Foi com aqueles que,
como ele, se identificavam com a tradição judaica representada por Abraão,
Moisés, Davi e os profetas.
Todos tinham fé em Deus: fariseus, saduceus, doutores da lei, sacerdotes,
levitas e essênios. Contudo não tinham a mesma fé de Jesus.
Eis o ponto. Não basta ter fé em Jesus. “Até os demônios creem”, diz a Carta
de Tiago (2, 19). O desafio é ter a fé de Jesus.
A fé de Jesus se centrava no valor primordial: a vida. “Vim para que todos
tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).
Jesus não fazia distinção entre fé e amor. Tanto que, ao curar, dizia ao
paciente: “A tua fé te salvou” (Lucas 7, 50). Fé como sinônimo de atuação
amorosa e solidária, e não como abstração da mente em projeções oníricas que
consolam o coração sem instaurar justiça.
Enquanto os fariseus mediam a prática religiosa pela régua do puro e do impuro,
Jesus adotava a do justo ou injusto. Importa crer no Deus da vida. Não há que
imaginá-lo por piedosos exercícios de fantasia. Basta olhar para aqueles
criados à imagem e semelhança dele: todos os seres humanos. Todos são templos
vivos de Deus.
Deus nos criou para viver em um paraíso e a nossa liberdade, ao optar pelo
egoísmo, gerou dor, injustiça e opressão. Ter fé, na óptica de Jesus, é lutar
para resgatar o paraíso. Fazer do reino de César o Reino de Deus. Defender e
aprimorar os direitos humanos. Agir segundo os valores enfatizados no
Evangelho: misericórdia, solidariedade, desambição, partilha de bens e,
sobretudo, amor.
Quem assim age, ainda que seja o mais empertigado ateu, é discípulo de Jesus
sem o saber, e faz a vontade de Deus sem nisso crer.
Frei Betto é escritor,
autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.
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