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quinta-feira, 17 de março de 2016

MODALIDADES DE FÉ

Por Frei Betto


      Os antigos, desprovidos de ciência, buscavam em suas crenças explicações aos fenômenos da natureza. O trovão seria a voz (brava) de Deus, assim como o arco-íris o sinal de que não haverá novo dilúvio.

      A fé servia de muleta à ignorância, como provavelmente as gerações futuras haverão de rir de muitas de nossas atuais “certezas” científicas. Ora, com exceção da classe política, tudo evolui, felizmente.

      A razão moderna, sob os holofotes do iluminismo, questionou a fé. Ela seria o ópio do povo, clamou Marx. Pura ilusão infantil, enfatizou Freud. Incompatível com a liberdade humana, alardeou Nietzsche.

      Eis que surge um fenômeno novo: o ateísmo. A negação da existência de Deus. A fé convicta de que Deus não merece fé. Há que centrar os olhos na Terra, e não no céu.

      Na minha opinião, o ateísmo resulta da mediocridade dos cristãos. Não há fé que não seja reflexo do testemunho. Como convencer que Deus é um Pai amoroso se há tanta maldade, desigualdade, sofrimento e outras atrocidades? Onde se esconde esse Deus omisso frente à Inquisição, ao genocídio indígena na colonização da América Latina, à Auschwitz, ao terrorismo islâmico?

      Como suscitar fé nos princípios evangélicos se historicamente os cristãos promoveram o colonialismo, atualizaram o imperialismo e confundem democracia com capitalismo?

      Daí o bazar de crendices. Para todos os gostos. Desde o Deus misericordioso do papa Francisco, ao racista de Donald Trump até o vingativo do Estado Islâmico.

      Nesse emaranhado, como separar o joio do trigo? Qual modalidade de fé cristã merece credibilidade?

      Nós, cristãos, temos fé em Jesus. O que não nos impede de fazer tudo aquilo que contradiz o que ele pregou. Basta estudar a história do Ocidente “cristão”. Em nome de Deus se fez o diabo!

      Convém lembrar que Jesus viveu em uma sociedade profundamente religiosa. Seus embates não foram com a religião pagã do Império Romano. Foi com aqueles que, como ele, se identificavam com a tradição judaica representada por Abraão, Moisés, Davi e os profetas.

      Todos tinham fé em Deus: fariseus, saduceus, doutores da lei, sacerdotes, levitas e essênios. Contudo não tinham a mesma fé de Jesus.

      Eis o ponto. Não basta ter fé em Jesus. “Até os demônios creem”, diz a Carta de Tiago (2, 19). O desafio é ter a fé de Jesus.
      A fé de Jesus se centrava no valor primordial: a vida. “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

      Jesus não fazia distinção entre fé e amor. Tanto que, ao curar, dizia ao paciente: “A tua fé te salvou” (Lucas 7, 50). Fé como sinônimo de atuação amorosa e solidária, e não como abstração da mente em projeções oníricas que consolam o coração sem instaurar justiça.

      Enquanto os fariseus mediam a prática religiosa pela régua do puro e do impuro, Jesus adotava a do justo ou injusto. Importa crer no Deus da vida. Não há que imaginá-lo por piedosos exercícios de fantasia. Basta olhar para aqueles criados à imagem e semelhança dele: todos os seres humanos. Todos são templos vivos de Deus.

      Deus nos criou para viver em um paraíso e a nossa liberdade, ao optar pelo egoísmo, gerou dor, injustiça e opressão. Ter fé, na óptica de Jesus, é lutar para resgatar o paraíso. Fazer do reino de César o Reino de Deus. Defender e aprimorar os direitos humanos. Agir segundo os valores enfatizados no Evangelho: misericórdia, solidariedade, desambição, partilha de bens e, sobretudo, amor.

      Quem assim age, ainda que seja o mais empertigado ateu, é discípulo de Jesus sem o saber, e faz a vontade de Deus sem nisso crer.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.


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