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quarta-feira, 23 de março de 2016

O IMPÉRIO DA LEI.


por Eduardo Hoornaert



Nos últimos dias vimos altos representantes do poder judiciário brasileiro vir ao público para defender o ‘império da lei’, acima de tudo. Nesse cenário, a Carta ao Povo Brasileiro, que Lula mandou publicar na noite de 17/03, constitui um contraponto. Ele escreve: ‘Não tive acesso a grandes estudos formais, como sabem os brasileiros. Não sou doutor, letrado, jurisconsulto. Mas sei, como todo ser humano, distinguir o certo do errado, o justo do injusto’. Por conseguinte, contesta o valor absoluto do ‘império da lei’.

Permitam-me os que lerem este texto evocar uma história que todos os cristãos bem conhecem: a condenação de Jesus, tal qual vai descrita no Evangelho de Marcos. Como afirmam os melhores estudiosos, Jesus foi condenado à morte segundo a Lei Romana e a Jurisprudência Judaica. Quando Jesus é preso, ele é levado ao Sinédrio reunido na Casa do Sumo Sacerdote Caifás. Aí sacerdotes, letrados e anciãos investigam se ele é culpado de morte. Os depoimentos são contraditórios e não levam a nada, como relata o Evangelho de Marcos: ‘os Sumos Sacerdotes e todo o Sinédrio procuraram contra Jesus um depoimento que lhes permitisse condená-lo à morte e eles não encontraram nada’ (Mc 14, 55). Mas aí, o Sumo Sacerdote Caifás intervém. Faz um depoimento em que deixa entender que Jesus é um perigo para a nação israelita. Caifás é o exemplo de um juiz preocupado em salvaguardar as instituições.

 Ele passa a trabalhar com suspeitas nebulosas, que impressionam vivamente os sacerdotes do Sinédrio. Vale a pena observar aqui que esses sacerdotes não devem ser considerados pessoas amorais, corruptas, perversas. O contrário é verdade. Eles agem em conformidade com a responsabilidade que lhes compete, instalam um processo, chamam testemunhas e interrogam o acusado (leia o trecho Mc 14, 55-65 por inteiro).  A questão é que eles se deixam guiar por questões formais e não compreendem o que os aldeões da Galileia compreendem muito bem: que Jesus é gente boa, faz bem ao povo e o ajuda a superar seus problemas. Isso é algo que os letrados de Jerusalém não conseguem enxergar. As leis os cegam. Eles ficam obcecados pela ideia que seguir procedimentos legais é fazer a coisa certa. Insisto nesse ponto: o que é realmente perturbador, nos relatos evangélicos sobre a condenação de Jesus, é que Ele não é condenado por pessoas perversas. O contrário é verdade. Alguns sacerdotes que seguem a jurisprudência de Caifás são particularmente honrados e respeitados por sua maneira de viver. Mas a questão da justiça propriamente dita (o que Lula chama de ‘distinguir o certo e o errado, o justo e o injusto’) não lhes aflora à consciência. Eles seguem cegamente a lei e com isso se tornam absolutamente incapazes de distinguir entre o bem e o mal. Não são levados por ódio ou fanatismo, simplesmente não conseguem enxergar a criminalidade de seus próprios comportamentos. Praticam o mal, pensando fazer o bem. Pensam que glorificam a Deus enquanto condenam à morte Aquele que age em conformidade com a Vontade de Deus. Isso provém do fato que se deixam nortear pela lei e não pelo senso de justiça inato em todas as pessoas.

Não estou aqui querendo comparar Lula com Jesus e fazer dele um santo. Todos os brasileiros sabem que Lula não é um santo. Mas quem é o santo nessa história? Escrevi este texto para defender o senso de justiça que existe ‘em todo ser humano’, a capacidade de distinguir ‘o certo do errado, o justo do injusto’, e que a atual jurisprudência oculta quando fala em ‘império da lei’. Como não duvidar do ‘império da lei’ quando estamos com os presidentes da Câmara e do Senado acusados de ser corruptos, diversos membros da Comissão do Impeachment com ações de improbidade (suspensas pela lei?), etc. etc. Os aldeões da Galileia bem sabiam que Jesus era uma pessoa de grande valor, algo que escapou à compreensão dos jurisprudentes em Jerusalém.


O tipo de reflexão que subjaz a esse texto pode causar estranheza em ambientes cristãos. Isso provém do fato que o cristianismo viveu durante séculos aliado ao poder e dessa forma perdeu largamente a capacidade de criticar o império da lei em nome de um princípio superior: o amor, a sensibilidade pelo mais fraco, o compromisso com o marginalizado. A confusão na mente de muitos cristãos é causada por uma leitura superficial e fundamentalista dos Evangelhos. Temos de reaprender a ler os Evangelhos. Inclusive para poder refletir sobre o momento político que atravessamos.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

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