por Eduardo
Hoornaert
Nos
últimos dias vimos altos representantes do poder judiciário brasileiro vir ao
público para defender o ‘império da lei’, acima de tudo. Nesse cenário, a Carta
ao Povo Brasileiro, que Lula mandou publicar na noite de 17/03, constitui um
contraponto. Ele escreve: ‘Não tive acesso a grandes estudos formais, como
sabem os brasileiros. Não sou doutor, letrado, jurisconsulto. Mas sei, como
todo ser humano, distinguir o certo do errado, o justo do injusto’. Por
conseguinte, contesta o valor absoluto do ‘império da lei’.
Permitam-me
os que lerem este texto evocar uma história que todos os cristãos bem conhecem:
a condenação de Jesus, tal qual vai descrita no Evangelho de Marcos. Como afirmam
os melhores estudiosos, Jesus foi condenado à morte segundo a Lei Romana e a
Jurisprudência Judaica. Quando Jesus é preso, ele é levado ao Sinédrio reunido
na Casa do Sumo Sacerdote Caifás. Aí sacerdotes, letrados e anciãos investigam
se ele é culpado de morte. Os depoimentos são contraditórios e não levam a
nada, como relata o Evangelho de Marcos: ‘os Sumos Sacerdotes e todo o Sinédrio
procuraram contra Jesus um depoimento que lhes permitisse condená-lo à morte e
eles não encontraram nada’ (Mc 14, 55). Mas aí, o Sumo Sacerdote Caifás intervém.
Faz um depoimento em que deixa entender que Jesus é um perigo para a nação
israelita. Caifás é o exemplo de um juiz preocupado em salvaguardar as
instituições.
Ele passa a trabalhar com suspeitas nebulosas, que impressionam
vivamente os sacerdotes do Sinédrio. Vale a pena observar aqui que esses sacerdotes
não devem ser considerados pessoas amorais, corruptas, perversas. O contrário é
verdade. Eles agem em conformidade com a responsabilidade que lhes compete,
instalam um processo, chamam testemunhas e interrogam o acusado (leia o trecho
Mc 14, 55-65 por inteiro). A questão é
que eles se deixam guiar por questões formais e não compreendem o que os
aldeões da Galileia compreendem muito bem: que Jesus é gente boa, faz bem ao
povo e o ajuda a superar seus problemas. Isso é algo que os letrados de
Jerusalém não conseguem enxergar. As leis os cegam. Eles ficam obcecados pela
ideia que seguir procedimentos legais é fazer a coisa certa. Insisto nesse
ponto: o que é realmente perturbador, nos relatos evangélicos sobre a
condenação de Jesus, é que Ele não é condenado por pessoas perversas. O
contrário é verdade. Alguns sacerdotes que seguem a jurisprudência de Caifás
são particularmente honrados e respeitados por sua maneira de viver. Mas a questão
da justiça propriamente dita (o que Lula chama de ‘distinguir o certo e o
errado, o justo e o injusto’) não lhes aflora à consciência. Eles seguem
cegamente a lei e com isso se tornam absolutamente incapazes de distinguir
entre o bem e o mal. Não são levados por ódio ou fanatismo, simplesmente não
conseguem enxergar a criminalidade de seus próprios comportamentos. Praticam o
mal, pensando fazer o bem. Pensam que glorificam a Deus enquanto condenam à
morte Aquele que age em conformidade com a Vontade de Deus. Isso provém do fato
que se deixam nortear pela lei e não pelo senso de justiça inato em todas as
pessoas.
Não
estou aqui querendo comparar Lula com Jesus e fazer dele um santo. Todos os
brasileiros sabem que Lula não é um santo. Mas quem é o santo nessa história? Escrevi
este texto para defender o senso de justiça que existe ‘em todo ser humano’, a
capacidade de distinguir ‘o certo do errado, o justo do injusto’, e que a atual
jurisprudência oculta quando fala em ‘império da lei’. Como não duvidar do
‘império da lei’ quando estamos com os presidentes da Câmara e do Senado acusados
de ser corruptos, diversos membros da Comissão do Impeachment com ações de
improbidade (suspensas pela lei?), etc. etc. Os aldeões da Galileia bem sabiam
que Jesus era uma pessoa de grande valor, algo que escapou à compreensão dos
jurisprudentes em Jerusalém.
O
tipo de reflexão que subjaz a esse texto pode causar estranheza em ambientes
cristãos. Isso provém do fato que o cristianismo viveu durante séculos aliado
ao poder e dessa forma perdeu largamente a capacidade de criticar o império da
lei em nome de um princípio superior: o amor, a sensibilidade pelo mais fraco,
o compromisso com o marginalizado. A confusão na mente de muitos cristãos é
causada por uma leitura superficial e fundamentalista dos Evangelhos. Temos de
reaprender a ler os Evangelhos. Inclusive para poder refletir sobre o momento
político que atravessamos.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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