Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
No Dia Internacional da Mulher, sempre escolhemos uma ou outra das inúmeras
mulheres admiráveis que conhecemos para homenageá-las. Desta vez, escolho
um coletivo: o grupo de mulheres de Calama, no Chile. Trata-se de um grupo de
mulheres que se organizou na pequena cidade de Calama, no deserto de Atacama,
norte do Chile, e que há 30 anos dedica-se a buscar os corpos de seus
familiares assassinados.
Situada a 2.260 metros de altura, Calama é a porta de entrada para a
maravilha do deserto de Atacama, monumento arqueológico e geológico que atrai
turistas do mundo inteiro. Ali estão instalados os telescópios mais
poderosos do mundo, uma vez que o céu do Atacama é onde se pode visualizar mais
astros e estrelas, descobrir novos movimentos do firmamento que não se
conseguem enxergar em outras partes do mundo. Ao mesmo tempo o Atacama é o
deserto mais seco do mundo.
Em 1973, o Chile sofreu um golpe de estado que culminou com a morte do
presidente Salvador Allende e a tomada do poder pela ditadura encabeçada pelo
general Augusto Pinochet. Até 1990 o país viveu sob esse regime de
força que se notabilizou por ser um dos mais cruéis de todos os que assolaram,
naqueles anos de chumbo, o continente latino-americano.
A tragédia que dá origem ao grupo de mulheres ocorreu também em 1973, no mês de
outubro. Chegou a Calama a missão militar ordenada pelo general Pinochet
com 26 prisioneiros políticos que foram tirados da prisão onde se
encontravam detidos – em pleno deserto – e executados, com golpes de facas e
rajadas de metralhadora. Os cadáveres foram colocados em um caminhão,
levados 15 quilômetros deserto adentro e sepultados clandestinamente em uma
grande fossa.
Como acontecia no regime Pinochet, os detidos “desapareciam”. A
família não sabia de seus paradeiros nem onde procurá-los. Assim foram
vividos os quase 20 anos da ditadura militar chilena. As mulheres de
Calama – mães, esposas, filhas, noivas e namoradas – passaram todo esse tempo
procurando, batendo à porta de batalhões e tribunais, falando com quem
podiam. Quando se iniciou a transição, em 1990, foram informadas sobre a
existência da fossa clandestina. E ao visitá-la, encontraram-na quase
vazia. Só havia alguns ossos remanescentes que testemunhavam a presença
dos corpos ali.
Dez anos depois, um novo crime foi revelado. Em 2001, um relatório
oficial do exército informava que para evitar que os corpos fossem encontrados
algum dia, Pinochet havia ordenado exumá-los e lançá-los ao mar.
Começou ali uma nova etapa
da via sacra dessas mulheres que há 20 vinte anos procuram pelo deserto os
restos de seus amados, um dia levados brutalmente de suas casas e nunca mais
vistos. Quase vinte anos percorrendo o terreno árido do Atacama, buscando
na areia um sinal do túmulo clandestino onde sepultaram seus homens.
Antes de encontrarem a fossa clandestina, as mulheres iam ao deserto e lançavam
cravos no ar, já que não tinham uma tumba onde depositar flores para seus
amados. Ao encontrá-la passaram a depositar ali suas flores, sinal de um amor
que não esquece. A busca continua, incansável e paciente, dolorosa e
pungente. Já vão mais de 40 anos que esperam por justiça, mas nada ainda
foi claramente estabelecido.
O único cúmplice é o deserto. Com a extrema secura do clima, os corpos
ali enterrados não se decompõem. Assim é que os arqueólogos que
escavam o terreno em busca de civilizações antigas e sinais de povos
originários, de vez em quando encontram, além de múmias, pedaços de corpos que
aparecem e são entregues às mulheres. Elas desejam apenas encontrar os
restos daqueles que amaram para poder enterrá-los com dignidade e fechar o
ciclo de seu luto.
Sua história não terminou. Essas mulheres, seus filhos e, agora, seus
netos pedem justiça e ainda esperam a identificação daqueles dos quais nenhum
resto foi encontrado. Apoiam-se umas às outras, consolam-se, ajudam-se.
Sustenta-as sua inquebrantável aliança com a vida. Desde tempos
imemoriais, a mulher tem inscrita em sua corporeidade a marca indelével da
vida. Em seu ventre gesta vida, carrega-a, transporta-a, alimenta-a com
sua própria substância. Como poderia ela acreditar que a morte tenha a
última palavra?
Assim aconteceu igualmente com outro grupo de mulheres, em Jerusalém. O
carpinteiro fazedor de milagres e palavras de fogo estava morto. Elas
viram quando a pedra se fechou sobre seu túmulo. Pois não é que
prepararam perfumes e óleos preciosos para ungi-lo? E, ao chegar, o medo
ao receber a notícia de sua ressurreição rapidamente se transformou em
alegria e energia para anunciar ao mundo inteiro a Boa Nova.
A grande escritora norte americana Susan Sontag afirma que o jogo da guerra tem
gênero. É um invento de homens. Mulheres inventam, criam e realizam
vida. E quando a morte parece haver engolido as vidas que criaram,
buscam, escavam desertos, desmentem notícias, esperam pacientemente o sinal de
ossos, de restos, para recompor a imagem dos seres amados, mais vivos que nunca
em seus corações.
Neste Dia Internacional da Mulher, saúdo emocionada minhas irmãs do grupo
Calama. Que a beleza do deserto e a maravilha do céu que é cenário de sua
silenciosa luta possa breve consumar a páscoa que tanto desejam e esperam, a
fim de que seus entes queridos possam estar ainda mais vivos em sua memória e
na história de seu povo.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A
teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da
compaixão" (Edusc)
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