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segunda-feira, 14 de março de 2016

MULHERES DE CALAMA


Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



            No Dia Internacional da Mulher, sempre escolhemos uma ou outra das inúmeras mulheres admiráveis que conhecemos para homenageá-las.  Desta vez, escolho um coletivo: o grupo de mulheres de Calama, no Chile. Trata-se de um grupo de mulheres que se organizou na pequena cidade de Calama, no deserto de Atacama, norte do Chile, e que há 30 anos dedica-se a buscar os corpos de seus familiares assassinados.

            Situada a 2.260 metros de altura, Calama é  a porta de entrada para a maravilha do deserto de Atacama, monumento arqueológico e geológico que atrai turistas do mundo inteiro.  Ali estão instalados os telescópios mais poderosos do mundo, uma vez que o céu do Atacama é onde se pode visualizar mais astros e estrelas, descobrir  novos movimentos do firmamento que não se conseguem enxergar em outras partes do mundo. Ao mesmo tempo o Atacama é o deserto mais seco do mundo.

            Em 1973, o Chile sofreu um golpe de estado que culminou com a morte do presidente Salvador Allende e a tomada do poder pela ditadura encabeçada pelo general Augusto Pinochet.  Até  1990 o país viveu sob esse regime de força que se notabilizou por ser um dos mais cruéis de todos os que assolaram, naqueles anos de chumbo, o continente latino-americano. 

            A tragédia que dá origem ao grupo de mulheres ocorreu também em 1973, no mês de  outubro. Chegou a Calama a missão militar ordenada pelo general Pinochet com 26  prisioneiros políticos que foram tirados da prisão onde se encontravam detidos – em pleno deserto – e executados, com golpes de facas e rajadas de metralhadora.  Os cadáveres foram colocados em um caminhão, levados 15 quilômetros deserto adentro e sepultados clandestinamente em uma grande fossa.

            Como acontecia no regime Pinochet, os  detidos “desapareciam”.  A família não sabia de seus paradeiros nem onde procurá-los.  Assim foram vividos os quase 20 anos da ditadura militar chilena.  As mulheres de Calama – mães, esposas, filhas, noivas e namoradas – passaram todo esse tempo procurando, batendo à porta de batalhões e tribunais, falando com quem podiam.  Quando se iniciou a transição, em 1990, foram informadas sobre a existência da fossa clandestina.  E ao visitá-la, encontraram-na quase vazia.  Só havia alguns ossos remanescentes que testemunhavam a presença dos corpos ali.

            Dez anos depois, um novo crime foi revelado.   Em 2001, um relatório oficial do exército informava que para evitar que os corpos fossem encontrados algum dia, Pinochet havia ordenado exumá-los e lançá-los ao mar.

Começou ali uma nova etapa da via sacra dessas mulheres que há 20 vinte anos procuram pelo deserto os restos de seus amados, um dia levados brutalmente de suas casas e nunca mais vistos.  Quase vinte anos percorrendo o terreno árido do Atacama, buscando na areia um sinal do túmulo clandestino onde sepultaram seus homens.

            Antes de encontrarem a fossa clandestina, as mulheres iam ao deserto e lançavam cravos no ar, já que não tinham uma tumba onde depositar flores para seus amados. Ao encontrá-la passaram a depositar ali suas flores, sinal de um amor que não esquece. A busca continua, incansável e paciente, dolorosa e pungente.  Já vão mais de 40 anos que esperam por justiça, mas nada ainda foi claramente estabelecido. 

            O único cúmplice é o deserto.  Com a extrema secura do clima, os corpos ali enterrados não se decompõem.  Assim é  que os arqueólogos que escavam o terreno em busca de civilizações antigas e sinais de povos originários, de vez em quando encontram, além de múmias, pedaços de corpos que aparecem e são entregues às mulheres.  Elas desejam apenas encontrar os restos daqueles que amaram para poder enterrá-los com dignidade e fechar o ciclo de seu luto. 

            Sua história não terminou.  Essas mulheres, seus filhos e, agora, seus netos pedem justiça e ainda esperam a identificação daqueles dos quais nenhum resto foi encontrado. Apoiam-se umas às outras, consolam-se, ajudam-se.  Sustenta-as sua inquebrantável aliança com a vida.  Desde tempos imemoriais, a mulher tem inscrita em sua corporeidade a marca indelével da vida.  Em seu ventre gesta vida, carrega-a, transporta-a, alimenta-a com sua própria substância.  Como poderia ela acreditar que a morte tenha a última palavra?

            Assim aconteceu igualmente com outro grupo de mulheres, em Jerusalém.  O carpinteiro fazedor de milagres e palavras de fogo estava morto.  Elas viram quando a pedra se fechou sobre seu túmulo.  Pois não é que prepararam perfumes e óleos preciosos para ungi-lo?  E, ao chegar, o medo ao receber a notícia de sua ressurreição  rapidamente se transformou em alegria e energia para anunciar ao mundo inteiro a Boa Nova. 

            A grande escritora norte americana Susan Sontag afirma que o jogo da guerra tem gênero.  É um invento de homens.  Mulheres inventam, criam e realizam vida.  E quando a morte parece haver engolido as vidas que criaram, buscam, escavam desertos, desmentem notícias, esperam pacientemente o sinal de ossos, de restos, para recompor a imagem dos seres amados, mais vivos que nunca em seus corações.

            Neste Dia Internacional da Mulher, saúdo emocionada minhas irmãs do grupo Calama.  Que a beleza do deserto e a maravilha do céu que é cenário de sua silenciosa luta possa breve consumar a páscoa que tanto desejam e esperam, a fim de que seus entes queridos possam estar ainda mais vivos em sua memória e na história de seu povo.

          Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
    
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