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quarta-feira, 27 de outubro de 2021

AMOR E SENSUALIDADE, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (2)

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO 


21/10/2021

     Segundo o livro do Gênese, no início da Criação, o Universo era apenas um imenso vazio. Então o amor de Deus começou a pulsar e todas as coisas passaram a existir. O mundo criado é, pois, uma expansão do amor divino. Sua substância, sua matéria prima é moldada no amor. Daí nascemos nós, por um ato de amor e, a vida inteira, travamos uma ardente batalha de amar e ser amados. Até sermos um dia mergulhados na eternidade onde, escreve S. Paulo, "Deus será tudo para todos".

     Este belo hino cósmico ao amor encontra fundamento na realidade? Uma coisa é o que é o amor, outra coisa, o que dele  fizemos. O próprio mundo que construímos para nossa habitação não o favorece, ao contrário, propõe objetivos que lhe roubam as condições de bom êxito.

     Haverá uma relação intrínseca que faça uma ponte entre amor, sensualidade e espiritualidade? Pagamos promessa da reflexão anterior, cedendo a palavra aos grandes místicos:

    Sto. Agostinho foi uma mente genial em falar coisas belas e profundas sobre este assunto. "Amor pondus meus", dizia ele, "o amor é meu centro de gravitação". E ousava "pressionar" o próprio Deus: "não me negues o que amo, Senhor, pois me deste o dom de amar". Contudo, jamais conseguiu conciliar os dois tempos da sua existência, os anos da juventude, repleto de aventuras sensuais, e os anos posteriores da sua conversão. Ao filho que teve, e amava ternamente, deu o nome de Deodato ( dado por Deus), mas também o chamou de "fruto do meu pecado". O grande Agostinho fica sendo um exemplo a mais das incoerências humanas, a que nem os santos escapam. Nele o amor sublimado acabou asfixiando o amor carnal e isso teve uma influência marcante na doutrina moral da Igreja até hoje.

     Sto. Tomás de Aquino, outro gênio do pensamento cristão, coloca, entre os primeiros anseios do amor, o êxtase. A pessoa movida pela paixão foge do habitual para o excepcional. A paixão o leva para fora de si e o põe em estado de êxtase.

     Sta. Teresa D'Avila, uma das maiores místicas do cristianismo, levitava com frequência. A lei da gravidade não podia deter o seu voo apaixonado para Deus

("vivo sem viver em mim e tão alto bem almejo que morro por não morrer", escreve ela).

     Engana-se quem pensa que os grandes místicos foram privados de todos os prazeres prometidos aos amantes. No mundo da transcendência eles descobriram um manancial de prazer incomparável e inesgotável. Só quem os experimentou sabe a diferença.

     A pandemia do coronavírus tem sido uma oportunidade ímpar de enxergarmos os paradoxos de uma sociedade mercadora de sensações hedonistas. Ocupada 24 horas em produzir objetos de consumo, ela não se dá conta do que se passa na alma dos seus clientes. O coronavírus, fazendo jus ao próprio nome, tirou-nos do trono de nós mesmos e devolveu-nos a nossa real dimensão; obrigou-nos a reavaliar nossas relações nas várias esferas da existência e repensar nossas vidas; derrubou os mecanismos montados para legitimar  as seduções e promessas do Mercado;  aniquilou de vez a confiança em quaisquer atitudes de auto-suficiência. Ao final, nos deparamos com uma verdade assustadora: nossos maiores inimigos somos nós mesmos.

     Por outra parte, trouxe-nos a certeza de como somos peças importantes, indispensáveis, para a sobrevivência do planeta. E mais, confirmou que a única referência insubstituível de prazer confiável e duradouro está na relação com nosso semelhante. Tudo isso pode significar uma guinada na concepção do amor humano, favorecendo o equilíbrio entre sensualidade e espiritualidade. O tempo dirá se a lição foi apreendida. Enquanto esperamos, anima-nos a advertência de S. Paulo: "ainda que se corrompa o nosso homem exterior, o interior se renova dia a dia" 2Cor. 4,16.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

 

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