por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
De novo, o horror, gratuito e inexplicável. Em uma boate gay de Orlando, o
afegão Omar Mateen, de 29 anos, disparou sua poderosa metralhadora sobre os
frequentadores. Era sábado à noite, o local estava cheio de jovens.
Saldo de 50 mortos e 53 feridos. O atirador, casado e pai de família,
figura entre os mortos. Quando a polícia entrou, tirou-lhe a vida.
Mais um massacre, mais uma declaração de fracasso da humanidade em sua
dignidade. Novamente o relato da dor, as imagens do sofrimento estampadas na
mídia. As lágrimas, as mensagens antes da morte, as fotos. Tudo
horrível.
Mas o que mais me impressionou desta feita foi ler que a mulher de Omar sabia
de seus planos e havia mesmo ido com ele mapear a Disney, lugar onde, pelo
visto, ele pretendia realizar outro massacre. Algo o fez optar pela boate
gay, mas um dos alvos planejados era a Disney.
Isso me encheu de horror e me convenceu que a vida hoje é um contínuo e
ininterrupto sobressalto, um nunca mais ter sossego nem tranquilidade apenas
devido ao fato de ser humano e viver neste planeta. Por maior que seja
minha implicância contra o parque temático da Disneylandia, que acho fútil,
idiotizador, levando seus frequentadores apenas a consumir mais e mais ideologia,
brinquedos inúteis e outros fetiches pós-modernos, meu horror persiste por se
tratar de um lugar onde comparecem majoritariamente crianças.
Isso revela que Omar Mateen tinha entre seus alvos principais e deliberados
crianças da idade de seu filho ou mesmo mais novas. Mapeava o local para
fazer seus planos macabros e acionar ali sua metralhadora, se não houvesse sido
abatido pela polícia na boate gay. Este lugar onde meus netos já foram
mais de uma vez, já que meus filhos não participam de minha antipatia pelo
local, podia ter sido o palco onde o atirador pretendia espetacularizar suas
frustrações e recalques vários de vida inteira. E com as minhas amadas
crianças lá dentro.
É claro que quando penso
em meus netos a barbárie me dói mais no peito. Me atinge mais, na medida
do amor por eles. Mas o fato é aterrador em si mesmo, ainda que meus
netos não fossem personagens, ainda que a tragédia não fosse com os seres que
amo.
Um ser humano armar-se com
a mais requintada e poderosa das metralhadoras e planejar cuidadosamente o
assassinato de pessoas indefesas é algo monstruoso. O fato de que tudo
isso possa ser dirigido a crianças é mais monstruoso ainda. Crianças
pequenas, incapazes de se defender, pois não têm ainda sequer entendimento.
Os
frequentadores da boate Pulse também foram tomados totalmente de
surpresa. Até porque o atirador frequentava a boate. Apesar de
casado, Omar Mateen era usuário de sites de relacionamento gay e frequentador
da boate.
Sobre sua vida privada,
não queremos nem devemos comentar, embora inevitavelmente detalhes de sua
infância e adolescência tenham vindo à tona após o massacre que
perpetrou. E esses nos dizem ter sido Omar vítima de cruel e constante
bullying na escola que frequentava. A hostilidade dos colegas, que chegava até
a agressão física, se devia à sua aparência: gordinho e “de outra raça”,
descendente de afegãos. Mais uma vítima da discriminação e do racismo que
impera na sociedade onde vivia e que se vinga de sua frustração e sua dor
provocando a dor alheia.
Preocupado em afirmar sua
masculinidade, Omar Mateen trabalhava como segurança, andava armado, carregava
em si todos os símbolos do macho americano. Mas quando a pressão dentro
de si ameaçava explodir frequentava sites de relacionamento gays e boates gays.
Sua homofobia transbordava em identidade bem próxima daqueles a quem tanto
odiava e tanto desejava exterminar e combater. E na boate Pulse, no
último sábado, explodiu pela última e definitiva vez, matando os que formavam
parte do grupo que lhe ensinaram a odiar, mas ao qual temia pertencer.
Omar Mateen, o assassino
de 49 pessoas cuja maneira de amar odiava, é um produto típico do processo para
formar homens em um sistema machista. E o adulto Omar, que não hesitou em
descarregar sua arma sobre pessoas indefesas e pretendia fazer o mesmo com
crianças na Disney, carregava em si o menino machucado pelas cruéis
brincadeiras dos colegas sobre sua raça, sua cor, seu corpo.
A impressão é que não
estamos minimamente seguros em lugar algum. Queremos proteger os que
amamos, mas não temos poder para isso. A qualquer momento pode cruzar nosso
caminho um ser cruelmente ferido pela sociedade que construímos. Um ser como
Omar Mateen. E seremos as vítimas de nossa própria intolerância, nosso
racismo, nosso machismo, nossa aversão às diferenças dos outros. É bom
parar enquanto é tempo...se é que ainda é tempo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ.
A teóloga é autora
de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de
descrença”, Editora Rocco.
Copyright 2016 –
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário