Por Maria Clara Bingemer
A notícia nem é tão nova,
mas só agora os acontecimentos sociais e eclesiais me permitiram fazer o que há
semanas desejava: escrever a alegria que é ter a estátua de Clarice Lispector
enchendo de mistério e encanto as calçadas do Leme, bairro onde viveu e que não
pode ser mais carioca.
Alegro-me por infinitas
razões. Primeiro, por ser Clarice que merece tanto estas e outras
homenagens. Sobre a notícia dada na internet pelo G1 constato estarrecida
comentários desfavoráveis. Coisas impressionantes tipo: ”Com tanta coisa
importante para pensar, perder tempo com estátuas” ou: ”Ela não era
ucraniana? Por que não fazer uma estátua na Ucrânia?” E por aí
vamos.
Enche-me de tristeza que o
povo brasileiro ignore tão grosseiramente esta escritora maior, que era mais
brasileira que muitos de nós, que deu sua vida, sua existência, seu talento
literário até a última gota no Brasil e no Rio de Janeiro. Sobre a
importância de homenagear escritores e literatos em geral, melhor nem
comentar. A afirmação é tão bruta, tão violenta em sua ignorância que
carece de toda e qualquer pertinência.
Então, não é importante a
obra literária de uma mulher como Clarice? Não é importante alguém, uma
escritora maior como ela, fazer o nome do Brasil nas letras transpor
fronteiras, conquistar mundos e inaugurar continentes novos na criação
literária? Onde estamos? Que povo somos? Só conseguimos dar
importância à mediocridade nossa de cada dia, à política suja que preside
tristemente nosso país e a cada dia se deteriora mais? Por que não
Clarice e a homenagem a ela?
Clarice é mulher e isso já
lhe dá uma conaturalidade e um “ parentesco” muito próximo ao mistério.
Mulher bonita, com olhos escuros e profundos, cheios de um desejo e uma
criatividade indomável. E com a escrita ia decifrando o mundo que a fazia
ver em um acanhado quarto de empregada um minarete desde onde observava o
universo. Ia também descendo até o último degrau de insignificância e
asquerosidade de um inseto, para desde ali comungar com a totalidade e a
transcendência. Refiro-me aqui ao livro A paixão segundo GH,
inegavelmente meu preferido na obra de Clarice.
Mas aconteceram também
para mim A maçã no escuro, Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, A hora da estrela e tantos mais. Todos mundos encantados
que me abriram as portas e me elevaram o espirito.
Clarice é mistério e
mística, é paixão, desejo e êxtase. E por isso o olhar da teologia,
debruçado sobre sua obra literária, percebe a transcendência que brota de suas
páginas mesmo quando não tiver havido intenção explícita de fazê-lo.
Em Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres, a teologia percebe o processo de iniciação
amorosa, que vai ser narrado como algo para além meramente do encontro físico e
apaixonado de um homem e uma mulher. Trata-se de um processo de encontro
profundo entre dois seres humanos; e, mais que isso e para além disso, de um
encontro com o Mistério. Que nome terá esse mistério? Em todo caso,
em nota da própria autora posta antes do começo da narrativa, trata-se de um
mistério maior, um mistério que está acima: “Este livro se pediu uma liberdade
maior que tive medo de dar. Ele está acima de mim. Humildemente
tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.”
Ao mesmo tempo, o
mistério maior e mais alto que pediu uma liberdade que provoca medo suscitou o
sentimento de humildade e a atitude da obediência que consente em tomar da pena
e escrever. E ao curvar a cabeça e obedecer a inspiração, percebe ser
mais forte que ela mesma. Parece-nos que Clarice anuncia aí o drama e a
beleza próprios da condição humana, de ser finitude, morada do Infinito e do
Incondicionado. E de encontrar sua força e alegria em obedecer a Outro
que a institui como aquilo que é: ser mortal criado para a vida.
O parágrafo final desta
obra é sobre Deus, que Lori diz ser erroneamente humanizado pelos seres
humanos. Mas que “embora não sendo humano, diviniza...” suas criaturas.
O livro inicia com uma vírgula e termina com dois pontos, deixando
evidente que a narração prossegue com a vida dos personagens em andamento e
finaliza também inconclusivo nos deixando a pensar o que teria acontecido. Lori
e Ulisses estão diante da porta aberta que prenuncia as coisas que ainda virão,
envoltos em esperança. Neles, Eros e ágape realizam o milagre do
amor. Sua experiência iniciática, sua aprendizagem, tem afinidades com a
mística aventura da alma ao atravessar a noite escura, como no “Cântico
Espiritual”, de São João da Cruz, para, enfim, vislumbrar e contemplar o rosto
do Amado.
Clarice é esse mistério
onde transcendência e imanência dançam de mãos dadas celebrando o mistério
maior de Deus e da vida. Como não havia ela de merecer essa urgente,
pressurosa e justíssima homenagem de estar esculpida à beira do mar, no bairro
onde viveu e que tanto amou?
Fica aí, Clarice, que é
teu lugar. Meu coração canta de alegria por ver-la aí imortalizada pela
arte de meu querido primo Edgard (Dedê) Duvivier com a ajuda de seu filho, o
também artista Gregório Duvivier. Ambos com suas mãos nos deram Clarice
para nossa contemplação toda vez que do mar nos aproximarmos para bebê-lo com
os olhos e com o corpo.
Maria Clara Bingemer
é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “Simone
Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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