Por Marcelo Barros
“Na escuridão da noite, a madrugada
silenciosa foi interrompida pelo barulho de tiros. Tudo ocorreu de repente. Mal
se viam os vultos dos agressores. Uns
vinham armados com paus, outros com armas de fogo. Gritos e gemidos. Apavoradas,
mães buscavam proteger seus filhos. Os encapuçados começaram a atear fogo nas
casas de palha. Logo, o fogo se alastrou e as pessoas, desarmadas, corriam para
salvar suas vidas. Atrás, ficaram dois mortos e vários feridos. Os invasores
tinham dado um aviso. Desapareceram tão de repente quanto tinham surgido”. Essa não é uma cena escrita para algum filme
de faroeste ou de gangster. Foi real. Ocorreu no Assentamento indígena União
dos Povos, no bairro Parque das Nações de Manaus, exatamente, na noite do
sábado 10 desse mês de janeiro (2015). Assim testemunhou a índia Cairé, da
etnia Tupiniquim, uma das vítimas do ataque que matou os irmãos Tayrê da etnia
Mura (25 anos) e Rudá da etnia Baré, jovem índio de 29 anos.
Esse acontecimento, trágico e
vergonhoso, não mereceu nenhuma coluna em algum jornal. Ninguém se mobilizou em
manifestação de solidariedade aos índios agredidos. Só os parentes puderam
chorar os seus mortos. De fato, isso ocorreu menos de uma semana depois que a
nova Ministra da Motosserra e do Agronegócio declarou enfaticamente que “o
problema dos índios é que eles deixam a floresta e vêm ocupar terras
produtivas”. Ao contrário, mais uma vez, foi a cidade (no caso, Manaus) que, destruindo
a floresta, se expande na direção das terras que sempre foram indígenas. A
especulação imobiliária ameaça os índios, agora legitimada pela conivência do
Estado, parceiro dos que destroem a natureza e aterrorizam a vida dos povos
indígenas.
Atualmente, segundo o Censo de 2010,
a população indígena no Brasil é calculada em 734.111 pessoas. Além disso, se
tem conhecimento de, ao menos 28 grupos indígenas isolados e sobre os quais ainda
não se têm dados completos. No Brasil, os índios pertencem a 220 povos
organizados. Falam 180 línguas diferentes. Todos os 27 estados da Federação têm
grupos indígenas. Há também uma população de quase 400 mil pessoas (388.298)
que se autodeclaram índias e que moram em periferias urbanas. De fato, muitos
foram expulsos de suas terras por garimpeiros e pelo latifúndio. Eles ou seus
pais fugiram para não morrerem. Alguns ainda escondem que são índios para não
perder emprego e não se isolar de vizinhos, em regiões, nas quais o preconceito
contra os índios ainda é gritante.
Embora as legislações internacionais
e a Constituição brasileira reconheçam os direitos dos índios a suas terras e
seu modo de viver próprio, as políticas de governo e os projetos de
desenvolvimento não os respeitam. O Estado brasileiro tem uma dívida histórica
e moral imensa com os povos ancestrais. A cada ano, no dia 07 de fevereiro, no
Rio Grande do Sul, as comunidades lembram a memória de Sepé Tiaraju, cacique
guarani que, em 1778, deu a vida pelo seu povo, quando os reinos de Portugal e
Espanha se uniram para destruir as missões dos jesuítas com os Guarani. Agora,
mais de 200 anos depois, a figura de São Sepé, canonizado pelo povo, ressurge
nos mártires indígenas de hoje e em diversos chefes indígenas que arriscam suas
vidas para defender os direitos dos povos indígenas e unir as diversas etnias em
associações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Quem tem fé acredita que o Espírito
Divino se manifesta na força de resistência e de ressurreição dos pequenos. No
Evangelho, Jesus orou: “Eu te agradeço, Pai, porque escondeste os teus segredos
dos sábios e entendidos do mundo e os revelaste aos pequeninos” (Mt 11,
25).
Marcelo
Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e
assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades
eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da
ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45
livros publicados no Brasil e em outros países
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