Por Juracy Andrade
Na contramão da liberdade de culto, algumas igrejas
protestantes e muitos políticos teimam em desconstruir o edifício do Estado
laico, tão frágil apesar de instituído constitucionalmente desde os albores da
República. A presidente Dilma, que inicia o segundo mandato com um governo do
Bradesco e dos ruralistas, corre a prestigiar a inauguração de mais um templo
(melhor dizendo, financeira) do autonomeado bispo Edir Macedo. Candidatos a
postos eletivos buscam avidamente o apoio de líderes protestantes e das assim
ditas “bancadas evangélicas”. Até ministérios são confiados a pastores. O do
Esporte, por exemplo, George Hilton, que de esporte entende tanto quanto o
comunista descafeinado Aldo Rebelo, ganhou a pasta por ser filiado ao PRB
(Partido Republicano Brasileiro, que ironia!), braço político de Macedo e de
sua teologia da prosperidade. Hilton é conhecido principalmente por ter sido
detido no Aeroporto da Pampulha (MG) com onze malas e mais umas caixas de
dinheiro.
A ONG Atletas pelo Brasil, que reúne dezenas de
jogadores de várias modalidades esportivas, incluindo Gustavo Borges (natação),
Hortência (basquete) e Ana Moser (vôlei), apitou em nota: “Infelizmente, há
anos, o Ministério do Esporte é usado na barganha política”. E tem mais: o
homem das caixas de dinheiro goza da simpatia dos herdeiros de João Havelange e
de Ricardo Teixeira na CBF, José Maria Marin e Marco Polo del Nero.
Bem, o meu objetivo não é falar de esportes, mas de
Estado republicano laico. Desde a mais longínqua antiguidade, a religião e os
deuses fizeram parte integrante do Estado, da sociedade, da cultura. Inclusive
entre os judeus. Tanto que um dos motivos do desentendimento e distância entre
judeus e cristãos é o fato de o nosso mestre Jesus Cristo pregar a extensão do
Reino de Deus a todos os povos da Terra. Fruto, no Ocidente, do iluminismo, do
enciclopedismo e da Revolução Francesa, o Estado laico ou secular é aquele que é
independente de qualquer organização ou confissão religiosa, em que as
autoridades políticas (de qualquer poder do Estado) não aderem publicamente a
nenhuma religião e onde as crenças religiosas não influem na política, no
governo, na administração.
É a definição mais clara e usual do conceito de Estado
Laico: Estado em que se prescinde, por exemplo, do ensino religioso e que é
independente de qualquer influência de qualquer religião. Claro que tudo isso
deve ser entendido dentro de um contexto de ampla liberdade de qualquer um e
qualquer agremiação religiosa, todos com direito à liberdade religiosa, isto é,
a praticar sua religião sem ser impedido pelo Estado.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, inclui a
liberdade de religião para qualquer pessoa entre as que nela são proclamadas.
Em seu artigo 18, consta que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião, direito que inclui a liberdade de mudar de religião ou
de crença, assim como liberdade de manifestar sua religião ou crença individual
e coletivamente, em público e privadamente, pelo ensinamento, a prática, o
culto e a observância.
Deve-se levar em conta, no entanto, conforme modernas
constituições, que a ordem pública é o limite para essas liberdades (tipo: o
meu direito termina quando começa o do outro). Os fiéis de uma confissão
religiosa são obrigados a respeitar os direitos humanos. O exercício da
liberdade religiosa não pode atentar contra a ordem pública. Abro uma digressão
para fazer dois comentários.
O primeiro se refere à barulheira de certas
manifestações religiosas, que tiram o sossego e o sono da vizinhança, invadindo
o espaço do direito alheio. E ao fato de o governo brasileiro ter sido levado a
instituir ensino religioso em escolas públicas (imposição dos assim ditos
evangélicos?). Além de o presidente Lula se ajoelhar aos pés do papa. Um chefe
de Estado não pode fazer isso, mesmo sendo católico.
O segundo é quanto a uma interpretação exagerada e
equivocada do que é ordem pública. Por exemplo, quando o governo direitista
francês de Nicolas Sarkozy proibiu as garotas muçulmanas de usar o véu na
escola e de portar símbolos religiosos. Um destempero. Mulheres católicas
usaram véu durante séculos. E os católicos não usam cruzes, os judeus não usam
a estrela de Davi, o quipá? Burca, sim, é justo proibir, pois, além de
anti-higiênico, a pessoa poderia carregar ali debaixo um arsenal. E, quando
digo isto, não estou associando muçulmanos a terrorismo. Quem praticou o
terrorismo de Hiroshima-Nagasaki? E o terrorismo das Cruzadas, da Inquisição,
do colonialismo?
No Brasil, a Igreja resmungou muito e demorou a aceitar
o laicismo do Estado republicano. Até hoje ainda há quem não aceite a
Constituição. Apesar de o Concílio Vaticano 2º haver proclamado, na declaração
Dignitatis humanae, que a Igreja aceita a liberdade religiosa. Mas muitas
confissões protestantes continuam brigando para tomar o Estado de assalto.
Muitos católicos também continuam defendendo símbolos como cruz em tribunais e
outras práticas que em nada contribuem para a manutenção de um Estado laico que
só fez bem à liberdade religiosa, à religião (qualquer uma) e à Igreja.
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Juracy Andrade é jornalista com formação em filosofia e
teologia
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