Por
Marcelo Barros
Em
várias cidades brasileiras, já estamos em tempo de Carnaval. No Rio de Janeiro,
Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos estão nas ruas e as
pessoas superam as dores e angústias do cotidiano através da dança, das
brincadeiras e da alegria do Carnaval. Ainda há pessoas e grupos que veem nisso
mera alienação. Alguns grupos religiosos condenam o mundanismo e julgam o
Carnaval como produto do diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo
mercadoria. No Carnaval, explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o
uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso
com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa não bem
canalizados. No entanto, apesar desses problemas, toda festa, mesmo a mais
aparentemente mundana, reúne pessoas em uma expressão de alegria e tem, por
isso, uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.
De
um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e
antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Jesus afirmou que o
reinado divino vem ao mundo, qual uma música deliciosa que convida todos a
dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som
da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria
ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida,
mesmo sofrida, uma festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Conforme o quarto
evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando
água em vinho simplesmente para que não faltasse alegria em uma festa de
casamento (Jo 2).
As
pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas. Cada ano, o
aniversário natalício recorda o dom da vida. Conquistas importantes, como
conclusão de um curso, obtenção de um novo trabalho e casamentos são celebrados
com festas. Todo país tem festas cívicas e cada religião, festividades
litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter
a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a
música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito.
Na
Bíblia, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas
para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. Davi dançou para agradecer a
bênção divina sobre o povo. Vários salmos aludem à dança como forma de oração.
Apesar disso, a dança não é muito valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o
uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas mais recentes,
principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no
nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um
artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e
não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”. A
dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica
abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças
são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afro-descendentes.
Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como
instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.
As
formas mais conhecidas de danças sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente
e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi
(muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos
ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais
obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.
Lamentavelmente
ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar o sagrado e o profano,
como se houvesse uma dança santa e a outra mundana e pervertida. É claro que, como
toda atividade humana, a dança também pode se tornar instrumentalizada em
espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana e
humanizadora, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e
da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de
cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante
valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.
Nos
anos 70, Chico Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval
chegar”, uma comédia musical de Cacá Diegues que tomava o Carnaval como
parábola da festa da libertação. Apesar de que superamos a ditadura militar e,
hoje, vivemos uma democracia formal, ainda há muito para alcançarmos uma
igualdade social e uma realidade de justiça que signifique uma verdadeira
libertação para todo o nosso povo. Por isso, continua válida a esperança
proposta nas imagens daquela música de Chico, cantada no filme, junto com Maria
Bethânia e Nara Leão: “Quem vê assim, tão parado e distante, parece que eu nem
sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”. É bom que nos
Carnavais que passam, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval
definitivo, mais profundo e transformador da vida.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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