Maria
Clara Lucchetti
As
primeiras acepções do verbo sapere em alguns dicionários são todas
ligadas a sabor, ao paladar. O substantivo saporis, aliás, surgiu
como derivado de sapere. Em latim, o saber propriamente dito, ligado ao
intelecto e ao conhecimento, nasceu mais tarde por extensão figurada.
Pode parecer meio estranha
esta conexão entre o paladar e o intelecto, mas a lógica dessa expansão
de sentido é bem semelhante à que liga o sentido do paladar e a sensação do
gosto (“sabor”) ao gosto (“juízo, discernimento”). Ter um paladar apurado
significava ter gostos cultivados, refinados – que como se diz hoje, tem
afinidade com o saber: “saber das coisas”.
O caso do adjetivo sapiens (“sábio”)
é elucidativo. Famoso por seu emprego na expressão homo sapiens: sua
primeira acepção em alguns dicionários é “que tem bom paladar, que é conhecedor
ou entendedor”. No verbete sapientia (“sapiência, sabedoria”), o nexo
entre uma coisa e outra fica ainda mais claro. Bom paladar, ao mesmo
tempo em que é gosto apurado para conhecer o sabor dos alimentos, também e não
menos consiste em aptidão, habilidade, capacidade, instrução; razão, bom
senso.
Inegavelmente, em nossos
dias, a questão do comer e da gastronomia tem andado em evidente alta.
Aquilo que para a minha geração tinha o acento mais na reunião ao redor da
mesa, seja da família ou de amigos; o que na militância política e social era
entendido, segundo a categoria marxista como “reposição da força de trabalho”,
passa a ser objeto de estudos apurados, refinamento de combinações de elementos
vários para obter um sabor especial, invenção criativa de novidades e
inusitadas surpresas.
A gastronomia passa a ser uma carreira promissora
para as novas gerações e área respeitada de pesquisas e estudos, o que
demonstra mais uma vez a conexão indissolúvel entre o sentido do gosto e a
razão.
O que passa pela boca
passa pela cabeça, então? Sim, sem dúvida. Assim como os excessos
da boca e do estômago refletirão seguramente sua conexão nos efeitos
desastrosos que produzirão na mente. É o caso do alcoolismo, que afeta a
tantos; da obesidade, que já se transforma em epidemia sob os aspectos nacional
e mundial; da bulimia, anorexia e outras doenças da beleza e da estética
ligadas à alimentação e ao comer, sintomáticas em uma sociedade desordenada
como a nossa.
Por isso, o paladar deve
ser educado, da mesma forma que todos os outros sentidos. Em nossos dias,
assistimos a um desvirtuamento desse importante sentido e também dos
outros. Os agrotóxicos poluíram nossas mesas; ingerimos alimentos para
satisfazer nossa fome, sem saber se estamos deglutindo doenças, pestes e
morte. O ato de tomar o alimento e degustá-lo em comunidade desapareceu
de nossas vidas. O advento da televisão, do celular, do tablet e de
outras tecnologias que nos capturam e aprisionam por inteiro impedem que o
estar à mesa, comendo e exercitando o paladar conviva com o exercício da razão,
do saber, da conversação, das trocas do coração.
A família raramente se
reúne em torno da mesa. Em geral, cada um tem um horário e a comida
pronta e requentada ao micro-ondas será engolida sem degustação e humanizante
saborear em frente à televisão, ou ao computador, ou ao celular.
Desconectaram-se paladar e pensar, paladar e sentimento. Comer volta a
ser um ato animal.
E, no entanto, “o reino
dos céus é como um banquete”, diz o evangelista Mateus. Nesta bela e sugestiva
metáfora jesuânica, encontramos o elemento definitivo para pensar a importância
do paladar como um sentido profundo para a vida humana. Quando comemos e
bebemos nos fazemos vivos, partilhando a mesa, vivendo a cumplicidade, a
amizade, a fraternidade. Ao saborear o alimento em comunidade
exercemos essa extraordinária capacidade que nos foi dada e nos diferencia dos
outros animais: celebrar a vida em todas as suas dimensões. O que é apenas
saciar uma necessidade biológica se transforma em ritual de louvação da vida,
aspiração principal do ser humano. Através do gosto da comida saboreada à
mesa e em convivência, Jesus de Nazaré identificou a beleza desse ato com o
Reino de seu Pai.
A presença de Deus junto
aos homens e mulheres por Ele amados se manifesta e revela de sua forma mais
plena e densa no banquete do qual participam pecadores que recebem o perdão,
mulheres que são valorizadas e reintegradas em sua dignidade e todos os que têm
fome e sede de justiça.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio, teóloga e autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
Copyright 2015 –
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário