Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Fechando nossa lista dos cinco sentidos, voltamo-nos hoje para o olfato, o
cheiro, a capacidade de captar os odores vários que entram em nossa
corporeidade aberta para a vida. O órgão principal do sistema olfativo é o
nariz. Ao inspirarmos, o ar entra pelo nariz e alcança as células
olfatórias, que, estimuladas pelas moléculas aromáticas, enviam impulsos
nervosos ao cérebro, onde são produzidas as sensações olfativas. A
sensibilidade das células olfativas é grande, de modo que poucas partículas são
capazes de estimulá-las e produzir a sensação de odor. Quanto maior o estimulo,
maior a intensidade da sensação de odor.
A palavra olfato vem do latimolfactus, que significa a ação de cheirar, de
farejar. Derivado do verboolfacere, que quer dizer sentir pelo
olfato, por sua vez deriva de olefacioe, que é ligado a olor, oloris,
cheiro, odor. Assim, a palavra que designa o sentido pelo qual enchemos
nossas narinas com os odores da natureza e da vida combina duas raízes: olor,
odor e fazer.
Dos cinco sentidos, o olfato é o primeiro a desenvolver-se no
recém-nascido. Não deveria surpreender-nos, portanto, quando vemos um
bebezinho com apenas algumas horas de vida apontar a boquinha em certeira
pontaria para o seio materno e ali plantar sua boquinha que sugará o leite que
será então seu alimento. Enquanto os outros sentidos só se desenvolverão
após alguns dias, o cheiro da mãe cativa o bebê desde sempre e, seguindo aquele
odor, ele aprenderá a reconhecer e localizar aquela que é a fonte palpável de
sua vida, que lhe dá alimento, carinho, contato e conforto.
Dali em diante, desde a mais tenra infância, a criança vai ser muitas vezes
guiada pelo olfato, inclusive quando lhe faltarem ou escassearem os outros
sentidos. Oitenta por cento do gosto de um alimento não vem do paladar, mas do
olfato. É por isso que temos dificuldade para sentir gosto quando estamos
gripados. Assim também o cheiro que provoca nossa capacidade olfativa pode
funcionar como memória corporal, desencadeando lembranças e associando
sensações e emoções agradáveis ou desagradáveis diretamente em nosso
cérebro. O olfato não apenas agudiza nossa capacidade de
identificar cheiros, aromas e perfumes, como também impacta nosso
comportamento.
Quem não se lembra do grande ator Al Pacino desempenhando o papel de um
veterano de guerra cego no primoroso filme “Perfume de mulher”? Mergulhado em
sua cegueira, Al Pacino identifica os perfumes que as mulheres usam. É
pelo perfume que ele acabará dançando o tango “Por una cabeza” com a jovem que,
sozinha no restaurante, esperava o namorado. O show de interpretação do
idoso cego que representava foi pelo perfume da jovem provocado em sua
virilidade, proporcionando-lhe a ela e a todos nós, espectadores de tão bela
cena, um momento estético inesquecível.
Sentido de fundamental importância, indica que nossa capacidade para
experimentar e expressar emoções se terá desenvolvido a partir da habilidade
para processar os odores. Só mais tarde a evolução da espécie haverá
desenvolvido outras estruturas orgânicas mais complexas, mas talvez menos
afetivas. A resposta imediata aos odores transmite uma mensagem simples
que gera o prazer ou a rejeição. Por isso quando, à raiz de um trauma, a
pessoa perde o olfato, todas as suas experiências vitais se encontram
diminuídas, provocando um decréscimo da vitalidade e de muitas das capacidades
e das experiências emocionais.
As memórias que incluem lembrança de odores têm tendência a ser mais intensas e
mais fortes emocionalmente. E um odor que haja marcado uma experiência
importante pode ter a memória evocada automaticamente quando há o reencontro
desse odor. Ainda que o conteúdo da experiência não tenha necessariamente
relação direta com o odor, será muito difícil que não apareça novamente sempre
que o odor em questão se fizer presente.
Assim também os odores que alegram e intensificam a humanidade – do pão quente
saído do forno, do ramo de flores frescas colhidas que vem alegrar o ambiente,
do frasco cheio de preciosa essência que empresta ao corpo o odor do amor e do
carinho – enchem a vida de alegria e avisam que é momento de festa e
celebração. Assim aconteceu com o profeta de Nazaré que na casa do
fariseu, sem receber os sinais da hospitalidade por parte do anfitrião, teve
seus pés ungidos e acarinhados por preciosa essência de nardo. Ou que em
seu refúgio de Bethânia, recebeu sobre sua cabeça que não tinha onde repousar o
dom do perfume caro que a mulher Maria não hesitou em derramar.
Deflorando o olfato esmaecido e insosso dos varões prisioneiros da Lei, a
liberdade feminina tem sido o canal por onde o sentido do olfato se sente
gratificado ao longo da história. Maternal, amistosa ou sensualmente, o perfume
do amor que o veterano cego foi capaz de identificar e que o Messias agradeceu
e abençoou não pode jamais faltar à memória corporal sob pena de que esta se
atrofie e não consiga mais inspirar a plenos pulmões o Espírito que, como o ar,
sopra onde quer e carrega em si o aroma da Vida que não morre.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga
e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc)
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