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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

NEM SACRIFÍCIOS NEM OBLAÇÕES: DESTE-ME UM CORPO




por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



      Nas  sociedades ocidentais, pensa-se normalmente que o corpo humano é um objeto  relevante apenas para as áreas do saber da biologia ou da fisiologia, por  exemplo, e que sua realidade material deve ser pensada de maneira  independente das representações sociais ou da preocupação das ciências  humanas. Por causa da longa tradição filosófico-religiosa da separação da  alma e do corpo, este último afastou-se do campo do conhecimento objetivo,  enquanto a apreensão do psiquismo estaria submetida à flutuação das  representações. Ora, os trabalhos antropológicos, assim como os filosóficos  e teológicos, apresentam uma extrema variedade de concepções do corpo  segundo as diferentes sociedades, de seu tratamento social, sua relação com  o outro e com o mundo.

         A teologia  encontrará na Bíblia as orientações que ensinarão como se deve entender o  corpo e regular a relação com ele. Os  livros do Primeiro  Testamento nos colocam diante da visão semita, que compreende o ser  humano como corpo animado pelo espírito de Deus, mas também percebe esta  corporeidade existencial conspurcada pelas muitas situações de conflito e  violência que perpassam a história da humanidade, que não é outra senão a  mesma história da salvação.
 

Assim, nestes textos, criação, bondade,  fecundidade, cuidado e bênção se misturam com atração pelo sexo oposto, que  é gozo e realização ao mesmo tempo que desvio, deturpação, excesso, ciúme,  maldição, traição etc., que resultam em violência, com assassinato, coerção,   segregação, mentira, desrespeito.
 

Ao olhar para o Novo  Testamento, percebemos que a experiência e a reflexão teológica no  cristianismo são experiência e reflexão teológica sobre um Deus encarnado.   Fora deste dado central e absolutamente necessário, não há  cristianismo.  Não havendo encarnação, não há a possibilidade de Deus  assumir todas as coisas por dentro e viver a história passo a passo, por  assim dizer “na contramão” de sua eternidade.  Não havendo encarnação,  não há cruz, não há redenção, não há salvação.  Não há, portanto,  aliança entre a carne e o Espírito.


Confessar com a boca e o coração  que o Verbo se fez carne e o Espírito foi derramado sobre toda carne implica  buscar a experiência e a união com o Deus que assim determina comunicar-se  com a humanidade através desta carne na qual é possível experimentá-Lo.  Desde aí somente é possível começar a reflexão sobre a corporeidade humana  sexuada e pensar igualmente sua conflitiva interlocução com a violência.
  

        O  corpo humano está no centro da revelação cristã, no momento em que se trata  de algo que foi assumido pelo próprio Deus, na Encarnação de seu Filho Jesus  Cristo.  A Encarnação do Verbo, que toma corpo humano e habita entre  nós, embora carregue consigo uma forte dimensão kenótica e humilhante, de  acordo com as palavras do hino da Carta aos Filipenses, por outro lado eleva  e engrandece a corporeidade humana, resgatando-a de uma vez para sempre,  pois a divindade a abraça por  dentro.


          Com  a vinda do Espírito Santo, a corporeidade humana redescobre novas dimensões  de si própria, que vêm completar a revelação que Jesus Cristo dela faz.   Percebendo-se semelhantes a Jesus de Nazaré encarnado, vivo e morto,  os discípulos da comunidade cristã primeva percebem-se igualmente destinados  a uma ressurreição semelhante à sua, onde o corpo humano, semeado  corruptível, ressuscitará  incorruptível.


         O  Espírito na Bíblia, porém, está sempre estreitamente vinculado ao corpo.   Não se trata de uma força etérea que leve o ser humano a ultrapassar a  barreira do tempo, do espaço e, sobretudo, da corporeidade e da espessura do  real. O Espírito tende para o corpo: esta é a realidade revelada através dos  textos do Primeiro Testamento, quando o Espírito de Deus cria mundos a  partir do nada, transforma desertos em jardim, ossos secos em militante  exército e engravida ventres estéreis.
 

         Nessa  vinda de Deus ao nosso encontro, o Espírito entra na violência do mundo, das  parcialidades, das relações conflitivas e entrecortadas, das intempéries,  das catástrofes, das carências de sentido.

Habitando na corporeidade  humana, o Espírito faz do ser humano seu templo, sua morada. O Cristianismo  traz, entre as grandes novidades que introduz na história da humanidade, o  fato de o eixo do Sagrado ser deslocado do Templo, lugar de culto e de  oração tradicional, para o ser humano, para a corporeidade humana, para a  carne.

         Portanto,  não é necessário multiplicar ritos e sacrifícios para agradar ao Senhor.   Basta o nosso corpo, onde Ele habita, oferecido e disponível para o  projeto de Seu Reino.



Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do  Departamento de Teologia da PUC-Rio Autora de "Simone Weil - A força e a  fraqueza do amor” (Ed.  Rocco).         

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