Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Relembramos neste mês o cinquentenário de anos
terríveis. Anos de opressão, de morte, de ditadura e de
obscurantismo. Lembro-me do presidente Jânio Quadros condecorando Che
Guevara e recebendo Fidel Castro em 1959. E em 1961, os tempos de
prelúdio do que se anunciava: a renúncia de Jânio, dizendo-se pressionado por
“forças ocultas” jamais reveladas. E a posse de João Goulart. Depois veio
1964, em seu inesquecível 1º de abril que, infelizmente, não era mentira.
No
rádio, Carlos Lacerda usava sua poderosa oratória em favor do golpe. Em
casa, todos sentiam medo. Minha avó, meu avô, minha mãe... era preciso
salvar o país dos comunistas. O Pe. Peyton, americano, mandara rezar o terço em
família. E aquela casa católica obedecia.
Eu ainda adolescente, sem saber muito das coisas, acompanhava o medo
personificado nos tanques que marchavam em direção ao esmagamento do governo de
João Goulart. Rezei muito para que o Brasil não caísse nas mãos dos comunistas
e disseram-me que os militares nos haviam salvado desse cruel destino.
Em
1968 entrei para a PUC, para o curso de jornalismo. E aí pude
experimentar na carne a verdade do que acontecia. Em cada sala de aula havia um
ou mais espiões, dedos-duros, pretensos colegas que anotavam o que se falava e
pensava para delatar “os perigosos subversivos” às forças da polícia do governo
militar. De repente, desaparecia um deles ou delas e não se sabia seu
paradeiro.
A
disciplina educação moral e cívica era obrigatória. E nos ensinava a história
que não passava pelos porões do DOI-CODI, onde jovens, trabalhadores,
religiosos eram barbaramente torturados e perdiam o juízo e a vida. Segundo os
professores de EPB, em geral militares reformados, o Brasil crescia e se
transformava em potência mundial.
Eu me
sentia emergindo de um torpor, e esse despertar continuou quando mataram o
estudante Edson Luís. Depois quando
levaram minha amiga, minha irmã de toda a vida, presidente do diretório central
de estudantes da minha universidade. Passei a fazer teatro, peças que
criticavam a burguesia e a alienação; a assinar papéis e manifestos contra a
ditadura; a ajudar no mimeógrafo a álcool que multiplicava textos contrários ao
regime.
Em
1969 casei-me e fui morar na França por um ano. Foi lá que ouvi pela primeira
vez a denúncia das torturas. Pela boca dos exilados, dos artistas, dos
brasileiros que se reuniam no restaurante “A Feijoada” para matar as saudades
do Brasil e comentavam, perplexos, o que acontecia no país, fiquei sabendo da
verdade. Ao voltar, em 1971, reabri minha matrícula na PUC-Rio. O AI-5
vigorava a pleno vapor, minha amiga se encontrava exilada, trocada pelo
embaixador americano. Não consegui reencontrar vários colegas, que não
mais frequentavam a universidade.
Em
1975, formei-me e fui trabalhar na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), cuja sede era no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. E ali vivi
outro capítulo definitivo de minha tomada de consciência do que o golpe de 64
semeava de terror e crueldade pelo país afora. Foi uma experiência de
indignação, mas também de maravilhamento. Pois foi então que conheci em
profundidade a face profética e santa de minha Igreja.
Em um
momento em que todos se calavam em apavorado silêncio, os bispos levantavam a
voz. Denunciavam, enfrentavam, agiam. Eram ameaçados e agredidos, como
dom Adriano Hipólito, em Nova Iguaçu, e dom Helder, em Recife. Quando
ninguém mais tinha coragem de defender os direitos humanos, dom Aluisio
Lorscheider, dom Ivo, dom Helder, dom Adriano, dom Waldir Calheiros se faziam
ouvir, para que a verdade ressoasse e libertasse o povo brasileiro do engano em
que se encontrava mergulhado.
Pela
sede da CNBB passavam jovens torturados e exilados, moças grávidas em estado de
choque, vindos de países vizinhos ou de outras partes do país. Os bispos
e a Caritas, que funcionava na parte inferior do edifício, lhes davam
passaportes, passagens de avião para a Europa ou para outros lugares do mundo e
lhes devolviam a esperança e a liberdade.
Depois
soube que minha doce amiga tinha sido acompanhada pessoalmente por dom Ivo à
prisão. Ele a visitara frequentemente e graças a isso ela dali saiu com
vida e com sua integridade preservada. Nenhum ou quase nenhum daqueles
militantes era católico ou cristão. Que importava? Eram seres
humanos e, portanto, tinham direito à integridade física e mental, à dignidade,
à liberdade que Deus lhes dera.
Ali
começou para mim uma nova etapa de vida, um novo aprendizado. Orgulhosa
de minha Igreja até a última dimensão de meu ser, dispus-me a estudar teologia
para poder estar ao lado daqueles que se arriscavam pela vida alheia e
defendiam os direitos dos outros, denunciando as agressões à vida humana
cometidas no país.
Hoje,
neste macabro cinquentenário, lemos horrorizados o relato descarado do
torturador Paulo Magalhães sobre seus métodos requintados daqueles terríveis
anos. Ele narra como cortava dedos, membros e abria vísceras dos prisioneiros
políticos antes de esquartejá-los e atirá-los nos rios da região serrana. Em
meio ao asco e ao horror da leitura, celebro a graça de fazer parte desta
Igreja que corajosamente se opôs a isso. Tão cheia de pecados e falhas, mas tão
destemida e santa é ela quando se deixa inspirar por Jesus e seu
Evangelho. Que sua atuação não seja esquecida na triste, mas necessária
memória destes 50 anos do Golpe militar.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Ser
cristão hoje" (Editora Ave Maria).
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