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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Dois Absolutos: Deus e a Fome.



Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



          Enquanto o mundo se inquieta com o silêncio em torno do paradeiro e do destino do jesuíta italiano Paolo dall´Oglio, desaparecido desde julho de 2013 quando, havendo saído da Síria, voltou a entrar no país pela parte norte, controlada pelos rebeldes, agora é a vez de chorar a morte de outro jesuíta, o holandês Frans van der Lugt.

          O Pe. Paolo queria negociar e obter a libertação de vários militantes em poder das forças rebeldes. O Pe. Frans queria apenas permanecer junto a um povo que sofria fome e desespero.  Havendo chegado à Síria em 1966, tinha formação de psicoterapeuta, que muito lhe valeu para conseguir estender pontes de paz e compreensão entre cristãos e muçulmanos.

          Em Homs, onde aportou em meados dos anos 1980, o Pe. Van der Lugt criou o projeto “Al Ard” (A Terra), um centro que surgiu em uma colina a poucos quilômetros da cidade. Juntamente com um projeto de desenvolvimento agrícola, o centro promovia retiros que o próprio padre Frans pregava a pessoas de diferentes religiões. A partir de 2000, o centro abriu suas portas a cerca de 40 jovens da região com deficiências mentais. Trabalhando em atividades agrícolas, esses jovens resgataram seu valor como pessoas e sua dignidade como cidadãos. 

          Quando o drama da guerra se abateu sobre Homs, a cidade conheceu o desespero da fome. Pe. Frans viu saírem da cidade todos que conseguiram deixá-la.  Ele escolheu permanecer.  Não podia deixar seu povo abandonado e faminto.  Ao contrário, devia cuidá-lo e ajudá-lo, abrigando e curando os mais fracos e sendo porta-voz daqueles cujas vozes não eram ouvidas pelo outro lado da guerra.

          Em janeiro de 2014, Pe. Frans gravou um vídeo que circulou pelo youtube, alertando sobre a situação de miséria e fome que o povo sírio passava na cidade de Homs. Com a eloquência e a autoridade concedidas por quem fala de dentro da tragédia, a voz do Pe. Frans se fez ouvir em termos dramáticos:  "Não aceitamos morrer de fome em Homs. Nós, cristãos e muçulmanos, amamos a vida e queremos viver". 

          Único europeu a permanecer na martirizada cidade de Homs, assediada pelo regime e pela presença letal da fome, Pe. Frans tentou chamar a atenção da comunidade internacional para a situação inaceitável na qual estava mergulhado juntamente com seu povo. Fez um apelo desesperado, declarando representar a comunidade cristã que se encontrava em Homs. "As pessoas não encontram comida. Nada é mais doloroso que ver mães pela estrada em busca de comida para os filhos". Como pai e pastor fiel daquele povo, mas com entranhas maternas de desvelo e compaixão por ele, Pe. Frans padeceu com as mães sírias o enlouquecedor sofrimento da fome, mais que a própria, a das crianças, a dos filhos.

          Em meio a toda a dor da qual era não só espectador, mas também vítima, o jesuíta de 76 anos clamava, ainda com um fio de teimosa esperança: "Nestas condições é impossível que a comunidade internacional e nós todos juntos não façamos nada. Não aceito que morramos de fome. Não aceito que sejamos afogados no mar da fome, devorados pelas ondas da morte, Nós amamos a vida. Queremos viver. E não queremos ser afogados num mar de dor e sofrimentos".

          Na segunda feira, dia 7 de abril, Pe. Frans foi sequestrado por homens armados, espancado e morto a tiros em frente à casa dos jesuítas. Selou com o martírio sua fidelidade ao povo sírio, ao qual dedicara toda a sua vida. Ali onde o povo sofria e morria, seu coração de pastor lhe impunha permanecer.  E assim fez, na esperança de que sua presença pudesse ajudar a comunidade que se encontrava totalmente desamparada em situação de emergência última.

          Diz o bispo e profeta Pedro Casaldáliga, de São Felix do Araguaia, que só há dois absolutos: Deus e a fome.  Os dois nortearam a vida e o testemunho do Pe. Frans van der Lugt.  Atendendo ao apelo de Deus, fez-se jesuíta e foi trabalhar no Oriente Médio. Chegou à Síria em 1966, e desde então deu o melhor de si como pessoa, como psicólogo e como padre.  Experimentou por vontade própria a fome que vitimava e enlouquecia o povo que servia, escolheu permanecer junto ao povo sírio que havia acolhido como seu e partilhar seu sofrimento e aliviá-lo na medida de suas possibilidades.

          A morte lhe veio ao encontro pelas armas e não pela fome. Pe. Frans morreu e agora vive em Deus.  Mas o povo pelo qual deu a vida continua padecendo fome e toda sorte de necessidades.  É de se desejar que enquanto subimos a Jerusalém para celebrar o mistério pascal de Jesus Cristo, alguma ajuda real chegue até Homs, para mitigar o sofrimento desses outros Cristos que não têm o que comer e alimentar seus filhos. A vida e o testemunho do Pe. Frans, do Pe. Dall´Oglio e de tantos e tantas outras, não podem acontecer em vão.

 Maria Clara Bingemer é    professora     do Departamento de Teologia da PUC-Rio e é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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