Por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
Enquanto o mundo se inquieta com o silêncio em torno do paradeiro e do destino
do jesuíta italiano Paolo dall´Oglio, desaparecido desde julho de 2013 quando,
havendo saído da Síria, voltou a entrar no país pela parte norte, controlada
pelos rebeldes, agora é a vez de chorar a morte de outro jesuíta, o holandês
Frans van der Lugt.
O Pe. Paolo
queria negociar e obter a libertação de vários militantes em poder das forças
rebeldes. O Pe. Frans queria apenas permanecer junto a um povo que sofria fome
e desespero. Havendo chegado à Síria em 1966, tinha formação de psicoterapeuta,
que muito lhe valeu para conseguir estender pontes de paz e compreensão entre
cristãos e muçulmanos.
Em
Homs, onde aportou em meados dos anos 1980, o Pe. Van der Lugt criou o projeto
“Al Ard” (A Terra), um centro que surgiu em uma colina a poucos quilômetros da
cidade. Juntamente com um projeto de desenvolvimento agrícola, o centro
promovia retiros que o próprio padre Frans pregava a pessoas de diferentes
religiões. A partir de 2000, o centro abriu suas portas a cerca de 40 jovens da
região com deficiências mentais. Trabalhando em atividades agrícolas, esses
jovens resgataram seu valor como pessoas e sua dignidade como cidadãos.
Quando
o drama da guerra se abateu sobre Homs, a cidade conheceu o desespero da fome.
Pe. Frans viu saírem da cidade todos que conseguiram deixá-la. Ele escolheu permanecer. Não podia
deixar seu povo abandonado e faminto. Ao contrário, devia cuidá-lo e
ajudá-lo, abrigando e curando os mais fracos e sendo porta-voz daqueles cujas
vozes não eram ouvidas pelo outro lado da guerra.
Em
janeiro de 2014, Pe. Frans gravou um vídeo que circulou pelo youtube, alertando
sobre a situação de miséria e fome que o povo sírio passava na cidade de Homs.
Com a eloquência e a autoridade concedidas por quem fala de dentro da tragédia,
a voz do Pe. Frans se fez ouvir em termos dramáticos: "Não aceitamos
morrer de fome em Homs. Nós, cristãos e muçulmanos, amamos a vida e queremos
viver".
Único
europeu a permanecer na martirizada cidade de Homs, assediada pelo regime e
pela presença letal da fome, Pe. Frans tentou chamar a atenção da comunidade
internacional para a situação inaceitável na qual estava mergulhado juntamente
com seu povo. Fez um apelo desesperado, declarando representar a comunidade
cristã que se encontrava em Homs. "As pessoas não encontram comida. Nada é
mais doloroso que ver mães pela estrada em busca de comida para os
filhos". Como pai e pastor fiel daquele povo, mas com entranhas maternas
de desvelo e compaixão por ele, Pe. Frans padeceu com as mães sírias o
enlouquecedor sofrimento da fome, mais que a própria, a das crianças, a dos
filhos.
Em
meio a toda a dor da qual era não só espectador, mas também vítima, o jesuíta
de 76 anos clamava, ainda com um fio de teimosa esperança: "Nestas
condições é impossível que a comunidade internacional e nós todos juntos não
façamos nada. Não aceito que morramos de fome. Não aceito que sejamos afogados
no mar da fome, devorados pelas ondas da morte, Nós amamos a vida. Queremos
viver. E não queremos ser afogados num mar de dor e sofrimentos".
Na
segunda feira, dia 7 de abril, Pe. Frans foi sequestrado por homens armados,
espancado e morto a tiros em frente à casa dos jesuítas. Selou com o martírio
sua fidelidade ao povo sírio, ao qual dedicara toda a sua vida. Ali onde o povo
sofria e morria, seu coração de pastor lhe impunha permanecer. E assim
fez, na esperança de que sua presença pudesse ajudar a comunidade que se
encontrava totalmente desamparada em situação de emergência última.
Diz o
bispo e profeta Pedro Casaldáliga, de São Felix do Araguaia, que só há dois
absolutos: Deus e a fome. Os dois nortearam a vida e o testemunho do Pe.
Frans van der Lugt. Atendendo ao apelo de Deus, fez-se jesuíta e foi
trabalhar no Oriente Médio. Chegou à Síria em 1966, e desde então deu o melhor
de si como pessoa, como psicólogo e como padre. Experimentou por vontade
própria a fome que vitimava e enlouquecia o povo que servia, escolheu
permanecer junto ao povo sírio que havia acolhido como seu e partilhar seu
sofrimento e aliviá-lo na medida de suas possibilidades.
A
morte lhe veio ao encontro pelas armas e não pela fome. Pe. Frans morreu e
agora vive em Deus. Mas o povo pelo qual deu a vida continua padecendo
fome e toda sorte de necessidades. É de se desejar que enquanto subimos a
Jerusalém para celebrar o mistério pascal de Jesus Cristo, alguma ajuda real
chegue até Homs, para mitigar o sofrimento desses outros Cristos que não têm o
que comer e alimentar seus filhos. A vida e o testemunho do Pe. Frans, do Pe.
Dall´Oglio e de tantos e tantas outras, não podem acontecer em vão.
Maria Clara
Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e é autora de "Deus amor: graça que
habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
(wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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