Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O
primeiro significado que os dicionários dão para a palavra “Paixão” (com
maiúscula) é o sofrimento de Jesus na Cruz; ou, como derivação: por metonímia,
o segmento do Evangelho que trata do martírio de Cristo e o dos santos; ou as
peças teatrais cantadas, ou oratórios sobre o tema da Paixão. Na vida e
na arte, portanto, o paradigma para o que seja paixão é dado pelo processo,
julgamento e morte de Jesus de Nazaré, reconhecido pela primeira comunidade
como o Filho de Deus.
Mas paixão tem também outro sentido: é sentimento, gosto ou amor intenso a
ponto de ofuscar a razão; fogo que arde sem se ver; ferida que dói e não se
sente, como diria Camões. Ou ainda ânimo favorável ou contrário a alguma coisa
e que supera os limites da razão; fanatismo.
Em todos os significados, paixão é compatível com excesso, superabundância,
seja de sentimentos, gosto, desgosto ou sofrimento. Não entra na zona dos
meios termos, dos tons de cinza, a paixão. Estar apaixonado é
necessariamente estar possuído, repleto, invadido por um excesso de sentimento
ou subjugado por um excesso de dor e sofrimento, ou cego por uma
superabundância de rancor.
É este excesso que se oferece à nossa contemplação nesta Semana que se inicia e
que o calendário chama Semana Santa. Infelizmente converteu-se em mais um
feriado. E, geralmente, sobra pouco espaço para se viver, experimentar,
celebrar a grande protagonista desse evento: a paixão. Pois o Mistério
Pascal nada mais é do que mistério de Paixão.
Paixão de Jesus por Deus que é seu Pai e cujo desejo é preciso acima de tudo
realizar. Ainda que doa, que custe, que mate. Paixão de Jesus - o
filho do carpinteiro, o filho de Maria, que ia à Sinagoga e conhecia a Lei -
pelo projeto do Reino de Deus. Projeto que exigia dedicação integral, que
implicava anunciar uma Boa Notícia a
tempo e a contratempo por cima dos telhados. Projeto de inclusão que
chamava à mesa para a refeição os excluídos de toda espécie: doentes, leprosos,
fariseus, publicanos, mulheres, crianças, prostitutas, ladrões.
Se algo se pode dizer de Jesus é que era um apaixonado. A paixão era o
motor de sua vida e sua história, o impulso de sua atuação, a inspiração de
suas palavras. Sob a força da paixão curou doentes e endemoniados, e
ressuscitou mortos. Por ela impulsionado, acolheu os gestos de amor da
prostituta no banquete, do publicano que lhe oferecia hospedagem, do leproso
que se apresentava para ser tocado, da samaritana que lhe dava de beber e lhe
fazia perguntas.
E ainda obedecendo à dupla paixão pelo Pai e pelo Reino enrijeceu o rosto e começou a caminhar para
Jerusalém seguido por apavorados e duvidosos discípulos que nada entendiam e
cujo coração tardava em arder. Chegando à cidade onde haviam morrido
tantos profetas, chorou. Derramou lágrimas de apaixonada compaixão que
nada tinha de autocomiseração pelo destino que o aguardava. Mas sim de
visceral dor por não haver conseguido reunir em seu misericordioso regaço os
filhos de Sião que tanto amava.
E ali a Paixão de Jesus – pelo Pai, pelo Reino, por aqueles e aquelas que o Pai
lhe dera – vai se converter no grande ritual, na grande liturgia da agonia e da
morte, que terminará no Gólgota, na hora nona, trazendo as trevas sobre a
terra. E ali, aos que o seguiram – e aos que com medo fugiram – será
proposta uma nova chave de leitura para a Paixão. O convite é abrir o
coração e a vida, para que a Paixão de Jesus se transforme em Paixão por Jesus.
Viver a Semana Santa, portanto, é ouvir o convite para apaixonar-se. Nada tem
de morbidez ou masoquismo tenebroso. Trata-se de um caminho luminoso esse
que se descortina na subida a Jerusalém, Paixão e Morte de Jesus.
Luminoso porque é caminho de vida. Apesar da dor, apesar do sofrimento,
apesar da morte que ninguém queria... é o caminho do amor.
Pois, sabemos nós, no fundo mais profundo: se não tivermos algo pelo qual
estamos dispostos a morrer... valerá a pena viver? Terá sentido uma vida
que se resume à magra moral, raquíticos prazeres, insípida segurança,
solitárias sensações? A Paixão de Jesus ensina que viver apaixonado é a única
maneira de viver em plenitude.
Como bem dizia Pedro Arrupe, um médico basco que um dia se fez jesuíta e foi
parar no Japão em meio à tragédia da bomba de Hiroshima e Nagasaki:
“Apaixona-te... tudo passará a ser diferente!” Apaixonemo-nos, pois, enquanto
acompanhamos Jesus que caminha para sua Paixão.
Uma
apaixonada Páscoa para todos!
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo –
Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – N
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