por Leonardo Boff
Considerando os cenários mundiais, a
violência bélica em várias nações com terríveis matanças de vidas humanas, ou a
violência de estudantes que, ensandecidos, invadem uma escola e abatem a tiros
dezenas de colegas, sem falar das torturas e dos abusos que se fazem a
inocentes, nos surge, espontânea, a pergunta: o ser humano tem jeito? Não somos
uma excrecência do processo da evolução?
Custa-nos identificar figuras
exemplares que nos desmintam desta tétrica impressão. Mas, graças a Deus, elas
existem como um Dom Helder Câmara, uma Irmã Dulce, a Irmã Tereza de Calcutá, um
Chico Mendes, um José Mujica, ex-presidente do Uruguai, um Ganhdi, um Dalai
Lama e um Papa Francisco, entre tantos.
Mas quero me deter numa figura
seminal em que a humanidade de modo convincente teve jeito: São Francisco de
Assis. Um dos legados mais fecundos do “Sol de Assis” como o chama Dante e
atualizado por Francisco de Roma é a pregação da paz, tão urgente nos dias
atuais. A primeira saudação que dirigia aos que encontrava pelas estradas era
desejar “Paz e Bem”, que corresponde ao Shalom bíblico. A paz que ansiava não
se restringia às relações inter-pessoais e sociais. Buscava uma paz perene com
todos os elementos da natureza, tratando-os com o terno nome de irmãos e irmãs.
Seu primeiro biógrafo Tomás de Celano
testemunha maravilhosamente o sentimento fraterno que o invadia:
”Enchia-se de inefável gozo todas as
vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia sua vista para as estrelas
e o firmamento. Quando se encontrava com as flores, pregava-lhes como se
fossemdotadas e inteligência e as convidava a louvar a Deus. Fazia-o com
terníssima e comovedora candura: exortava à gratidão os trigais e os vinhedos,
as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento”.
Esta atitude de reverência e de
enternecimento levava-o a recolher as minhocas dos caminhos para não serem
pisadas. No inverno dava mel às abelhas para que não morressem de escassez e de
frio. Pedia aosirmãos que não cortassem as árvores pela raiz, na esperança de
que pudessen se regenerar. Até as ervas daninhas deveriam ter seu lugar
reservado nos hortos, para que pudessem sobreviver, pois “elas também anunciam
o formossísmo Pai de todos os seres”.
Só pode viver esta intimidade com
todas as coisas quem escutou sua ressonância simbólica dentro da alma, unindo a
ecologia ambiental com a ecologia profunda; jamais se colocou acima das coisas
mas ao pé delas, verdadeiramente como quem convive como irmão e irmã,
descobrindo os laços de parentesco que une a todos.
O universo franciscano e ecológico
nunca é inerte. Todas asa coisas são animadas e personalizadas; por intuição
descobriu o que sabemos atualmente por via científica (Crick e Dawson, os que
decifraram o DNA) que todos os viventes somos parentes, primos, irmãos e irmãs,
pois possuimos o mesmo código genético de base.
Desta atitude nasceu uma
imperturbável paz, sem medos e sem ameças. São Francisco realizou plenamente a
esplêndida definição que a Carta da Terra encontrou para a paz:
”É aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 f).
”É aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 f).
O Papa Francisco parece ter realizado
as condições para a paz, fundada na compaixão pelos que sofrem, pela denúncia
corajosa ao sistema que produz miséria e fome e pela permanente busca da
justiça social que deixa para trás a filantropia para dar lugar às mudanças
estruturais.
A suprema expressão da paz, feita de
convivência fraterna e acolhida calorosa de todas as pessoas e coisas é
simbolizada pelo conhecido relato da perfeita alegria. Através de um artifício
da imaginação, Francisco apresenta todo tipo de injúrias e violências contra
dois confrades (um deles é ele próprio, Francisco). Embora tenham sido reconhecidos
como confrades, são vilipendiados moralmente e rejeitados como gente de má
fama.
No relato da perfeita alegria, que
encontra paralelos na tradição budista, Francico vai,passo a passo, desmontando
os mecanismos que geram a cultura da violência.
A verdadeira alegria não está na
autoestima, nem na necessidade de reconhecimento, nem em fazer milagres e falar
em linguas. Em seu lugar, coloca os fundamentos da cultura da paz: o amor, a
capacidade de suportar as contradições, o perdão e a reconciliação para além de
qualquer cobrança, retribuição ou exigência prévia. Vivida esta atitude,
irrompe a paz, a paz do coração, inalterável, capaz deconviver jovialmente com
as mais duras oposições, paz como fruto de um completo despojamento. Não são
essas as primícias de um Reino de justiça, de paz e de amor que tanto
desejamos?
Esta visão da paz de São Francisco
representa um outro modo de estar-no-mundo junto com as coisas, uma alternativa
ao modo de ser da modernidade e das pós-modernidade, assentado sobre o estar-sobre
as coisas, dominando-as e usando-as de forma desrespeitosa para o
enriquecimento e para o desfrute sem qualquer sentido de sobriedade.
A descoberta da irmandade cósmica nos
infundirá um espírito de respeito e nos devolverá a claridade e a inocência infantil
da idade adulta, importantes para sairmos bem da crise.
Leonardo Boff escreveu Francisco de
Assis: ternura e vigor, Vozes 2010.
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