O povo salvadorenho está em festa e saiu às ruas no sábado, 23 de maio, para
celebrar a beatificação de Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador –
capital do país – assassinado no dia 25 de março de 1980, enquanto celebrava a
Eucaristia. Após mais de trinta anos, Oscar Romero é declarado beato, o que na
Igreja Católica é o passo anterior à canonização, que declara alguém santo.
Por que proclamar beato ao manso, bondoso e ao mesmo tempo aguerrido profeta
Oscar Romero? O que significa a Igreja considerá-lo beato?
A
palavra “beato” quer dizer “feliz”, ditoso, bem-aventurado. Beato é feliz
em latim, assim como makarios é feliz em grego. A última é a palavra
usada no Novo Testamento, em Mateus 5 e em Lucas 6, para falar daqueles que são
felizes segundo a lógica de Jesus de Nazaré. Lendo integradamente Mateus
e Lucas, beatos - felizes – são os pobres, os famintos que passam fome, mas
também têm fome de Deus e confiam nele. São aqueles que tratam com amor e
carinho os outros; os que têm olhos limpos e puros para ver a verdade e
dizê-la. E também os que têm fome de justiça e lutam contra a injustiça e
a mentira. E por isso sofrem perseguição.
Ao proclamar beato Monsenhor Romero, a Igreja o declara feliz, bem-aventurado,
segundo a lógica do Evangelho de Jesus. Como encontramos essa felicidade,
essa bem-aventurança na vida desse arcebispo algo tímido, que, de repente, se
fez consciente da injustiça que padecia seu povo e transformou-se no mais
intrépido e corajoso profeta de que já se ouviu falar na América Latina?
Ao anunciar que Oscar Romero seria beatificado, o Vaticano o declarou “mártir
por ódio à fé”. No entanto, é importante deixar bem claro que a Romero não o
mataram por recitar bem ou mal um credo, ou por enunciar correta ou
incorretamente verdades dogmáticas. Quem o matou não foram bandidos ou
marginais da sociedade salvadorenha. E sim pessoas que se consideravam e
eram vistas como muito católicas.
Aí
vemos a diferença entre fé e religião. Monsenhor Romero foi acusado de
comunista, traidor da pátria e outras tantas ofensas por defender os pobres e
contestar os que os perseguiam e matavam. Seus assassinos eram católicos
de missa dominical e ritos praticados, mas não lhes interessava a defesa que o
arcebispo fazia dos pobres. Queriam continuar a gozar em paz de seus
privilégios. Talvez os assassinos de Romero fossem muito religiosos, mas
é de se perguntar se realmente tinham fé. Romero, por outro lado, acusado
de, como religioso, meter-se em política, sem dúvida, tinha fé. E por
ódio a essa fé foi morto.
Odeia-se a quem tem fé e
põe em prática a justiça que brota da fé e é sua consequência. Praticar
essa justiça é mostrar um grande amor aos que sofrem o peso mortal da
injustiça. Esse é o amor maior, segundo o Novo Testamento, em palavras de
São João Evangelista. Amor maior de quem é assassinado por defender os pobres
que não têm quem os defenda.
Os que conheceram de perto Oscar Romero são unânimes em afirmar que ali estava
um homem de paz: que não queria violência nem morte, mas ao contrário, que a
paz florescesse e brotasse como fruto maduro. Mas também um homem que
sabia que a paz é fruto da justiça e, portanto, há que combater a injustice, a
fim de que a paz possa florir e frutificar.
Era igualmente um homem de Deus. É bem conhecida a frase de Ignacio
Ellacuría, padre jesuíta igualmente assassinado nove anos depois de Romero, na
mesma cidade de San Salvador, reitor da Universidade Católica e amigo próximo
do arcebispo: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”.
O padre Jon Sobrino, que igualmente trabalhou muito próximo ao arcebispo
mártir, nos transcreve essa oração que monsenhor Romero escreveu em seu último
retiro antes de ser assassinado.
“Assim concretizo minha consagração ao coração de Jesus, que foi sempre fonte
de inspiração e alegria cristã em minha vida. Assim também ponho sob sua
providência amorosa toda a minha vida e aceito com fé nele minha morte por mais
difícil que seja. Nem quero dar-lhe uma intenção como gostaria pela paz
de meu país, e pelo florescimento de nossa Igreja, porque o coração de Cristo
saberá dar o destino que queira. Me basta para estar feliz e confiante
saber com segurança que nele estão minha vida e minha morte; que apesar de meus
pecados, nele pus minha confiança e não serei confundido, e outros prosseguirão
com mais sabedoria e santidade os trabalhos da Igreja e da Pátria.“
Bastava-lhe para estar feliz, bem-aventurado, “beato”, sua fé e sua confiança
em Deus. Que o beato Oscar Romero nos ensine essa felicidade tão
diferente da que o mundo de hoje propõe, a fim de que possamos investir nossa
vida naquilo que é realmente importante. Amém.
A teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
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