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quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A questão do sacerdócio corporativo.

 por Eduardo Hoornaert.

Num determinado momento de sua navegação pelos séculos, o cristianismo oficial decidiu optar por uma organização interna da Igreja por meio do sacerdócio corporativo. Esse é um tema pouco discutido, mesmo nos círculos que se situam mais à esquerda do espectro eclesial, embora seja de fundamental importância. Importa saber se a opção pelo sacerdócio corporativo, que tem data, lugar e protagonistas, foi um desvio dos propósitos originários do movimento de Jesus ou uma evolução positiva. Para tal, proponho que façamos uma incursão pela história, em traços breves, pois aqui não se trata da defesa de uma tese acadêmica, mas de um convite à reflexão.
Antes de iniciar essa incursão, faço questão de escrever aqui que, ao colocar em discussão o sacerdócio corporativo, não tenho a intenção de criticar os sacerdotes. Todos e todas conhecemos sacerdotes exemplares e não se trata, pois, de discriminá-los. Uma proposta como a que vai apresentada aqui vai além dos propósitos da Igreja Católica hoje, muitos deles altamente louváveis. A questão é outra. Ela consiste em cavar fundo na história do cristianismo para ver o que a proposta original do movimento de Jesus tem a ver com o sacerdócio corporativo.

Convido você a entrar comigo num tema que tratei mais extensivamente em meu livro ‘Origens do Cristianismo’, publicado pela Paulus de São Paulo em agosto de 2016.

Iniciemos então nossa breve incursão pelo passado.

1. Quando Jesus de Nazaré, seguindo o exemplo dos pais, empreende a peregrinação anual a Jerusalém para a Festa da Páscoa, ele se decepciona profundamente ao entrar no Templo. Não, pensa ele, isso aqui não é a ‘casa de meu Pai’, é ‘um covil de ladrões’.Ele se defronta dolorosamente com a corporação religiosa que controla o Templo e comporta sumos sacerdotes (alta hierarquia), sacerdotes comuns, letrados e fariseus. Nada menos de 19.000 sacerdotes (hoje o Brasil tem apenas 12.000 sacerdotes católicos!) se espalham pelas aldeias da Palestina, um país com apenas um milhão de habitantes, para verificar se os camponeses observam a Torá e principalmente pagam os impostos.  É uma opressão terrível, quase insuportável. Basta ler os primeiros 11 capítulos do Evangelho de João, particularmente do capítulo 8 por diante, para se convencer que Jesus não aceita essa situação.

2. Desse modo, o movimento de Jesus nasce em oposição ao sistema sacerdotal corporativo, hegemônico na religião judaica da época. O jovem movimento opta pelo sistema sinagogal, de cunho comunitário. Os primeiros líderes do movimento de Jesus são chamados ‘mestres, profetas, doutores, rabinos, rabis’, nomes diversos a indicar lideranças que se destacam por suas qualidades pessoais, não são investidos de poder por meio de uma legitimação (ordenação) por parte de alguma instância religiosa, não recebem pagamento por seus serviços nem se distinguem por alguma roupa especial. Emanados do sistema sinagogal judaico, esses mestres modelam o movimento de Jesus pelo menos até a segunda parte do século II, e em diversos lugares até bem mais tarde. É um modelo sem templo nem sacerdócio, sem ritos nem ordenamentos, centrado numa ação alimentada pela leitura da Palavra de Deus na cotidianidade da vida. Até o Concílio de Niceia (325), não há distinção jurídica entre pessoas sagradas e profanas no seio do movimento de Jesus. Todos são leigos, entre os quais alguns se destacam como ‘mestres’. Trabalhei esse tema extensamente nas pp. 143-162 de meu livro ‘Origens do Cristianismo’.

3. Já no século II, muitos mestres passam a ser chamados ‘hereges’ (embora a palavra ‘heresia’, de início, não tenha nada de pejorativo, pois o termo grego significa ‘livre escolha’: os cristãos escolhem livremente os mestres que gostam de ouvir e acompanhar). O que isso significa? A pesquisa histórica mostra que a luta contra heresias frequentemente esconde a luta por um novo modelo de liderança na Igreja, um modelo hierárquico e corporativo. Essa luta árdua, surda e oculta, está na base de páginas e mais páginas de documentos que possuímos dos séculos II a VI.

4. O clero, como classe separada do laicato, é uma inovação do século IV. Ele traz consigo o postulado de uma religião como base da evangelização. Se, ainda hoje, a religião católica tem como modelo a cultura clerical romana, é por um tipo de resiliência particularmente resistente. Sob a bandeira da ‘ortodoxia’ (leia: hegemonia sacerdotal), o metropolita Atanásio (de Alexandria) difunde, ao longo de uma vida agitada (século IV), a luta pela sacerdotalização e pela formação da corporação sacerdotal. Ele pode contar com muitos bispos seguidores, que aos poucos conseguem impor o novo modeloÉ uma luta de séculos. A partir do século VII, a ‘heresia’ está sob controle e o modelo sacerdotal corporativo reina soberana. Orígenes, o Mestre genial do início do século III, é um dos últimos ‘hereges’ a serem condenados, no ano 533. 

5. Mesmo assim, há documentos que nos revelam que, por parte do modelo comunitário (o modelo dos mestres), sinais de resistência tenaz continuam aparecendo ao longo dos séculos.  Ainda no Concílio de Calcedônia, em 451, há um Cânone em que se declara que ‘a ordenação de um sacerdote que não mantenha um vínculo efetivo e duradouro com uma determinada comunidade, é inválida’ (Schillebeeckx, E., Por uma Igreja mais humana, Paulus, São Paulo, 1989). Esse texto é uma preciosidade, pois mostra que ainda no século V o modelo comunitário (sinagogal) se mostra vivo.

6. Por que considerar a sacerdotalização da organização eclesial um problema? É que importa prestar atenção ao vínculo entre a sacerdotalização e a formação corporativa. O clero é uma corporação e seu efeito sobre a igreja povo de Deus é deletério e corrosivo, desmancha aos poucos o vínculo comunitário. Em vez de se relacionar diretamente com uma comunidade concreta (como ainda se verifica no século V), o líder cristão passa a se relacionar em primeiro lugar com sua corporação. Ele se torna membro de um clero. Escuta antes o bispo que as pessoas de sua comunidade. Historicamente há de se reconhecer que o retrocesso sacerdotal provém fundamentalmente de forças que atuam dentro da Igreja (não vem só de Constantino, por exemplo, como se diz tantas vezes). É um processo que se estende por séculos e que provoca aos poucos uma mudança de mentalidade. Quando, em muitas comunidades, aparecem ritos e preces (em vez de leituras bíblicas e comentários), logo aparecem líderes que se comportam como sacerdotes e que tendem a formar uma hierarquia (o fenômeno dos ‘mini-padres’). Iniciativas comunitárias e movimentos contrários aos interesses da hierarquia são gradativamente abafadas e marginalizadas, quando não violentamente eliminadas.

7. De onde provém o silêncio que se observa em torno dessa fundamental mudança de rumo na organização eclesial? É uma questão a ser analisada com cuidado e espírito isento de preconceitos. Tem-se a impressão que, ao longo da história, os homens da Igreja se acomodaram aos poucos à nova situação e passaram a se beneficiar com o sistema corporativo. Muitos teólogos passaram a ser teleguiados pelo clero, quando já não pertenciam a ele. Hoje predomina a imagem do teólogo sacerdote ou clérigo.

8. Hoje, o que nos anima a colocar esse tipo de reflexão é a postura do Papa Francisco. Tem-se a impressão que ele vê a igreja como ‘um trampolim para a sociedade’ (como costumava dizer Dom Hélder Câmara). Ele dá a impressão de querer ir para além da igreja, fala em ‘igreja em movimento’. Outro sinal: ele tem atribuído uma grande importância aos ‘Movimentos Populares’, que emergem da sociedade civil, muitos fora do âmbito da Igreja. São movimentos democráticos, não programados de cima para baixo, que em si não aspiram ao poder, mas inspiram e pressionam o poder a cuidar do povo que vive ‘na base’. Não são de cunho corporativo. Parece que o Papa coloca toda sua alma na animação desses Encontros de Movimentos, que já somam três: Roma 2014, Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) 2015, e ultimamente Roma, entre 3 e 5 de novembro de 2016. Será que o atual Papa rejeitaria em tese um movimento que critica o caráter corporativo da organização da igreja? É de se entender que ele não aborda essa questão em público. Mas isso não invalida uma posição crítica diante do sistema eclesiástico vigente. Não se pode esperar que as autoridades em Roma questionem o corporativismo sacerdotal, como se propõe aqui. Essa é uma tarefa que nos cabe como ‘Povo de Deus’ adulto e livre. O Povo de Deus é capaz de externar muita coisa que a hierarquia não pode dizer, por razões óbvias.


9. Não será que chegou a hora de se propor uma organização não corporativa da Igreja Católica, em vista de uma sociedade mais humana? 

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

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