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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Bruxas ou Santos?



 Por Maria Clara Bingemer
 
    Às vezes tenho saudades de alguns espetáculos teatrais ou musicais que vi na minha juventude: Naquele tempo, “a escola era risonha e franca”, e havia só amanhã e nenhum ontem. Lembro-me, quando começava a crítica ao imperialismo americano a ganhar espaço entre a minha geração, do show de Ary Toledo intitulado “Por que me ufano do meu país”.

     Ali, entre canções e piadas de sua autoria, o artista lançava farpas contra a mania que o povo brasileiro tem de imitar o grande irmão do norte. E dizia, já mais para o final do show, que o brasileiro, “embora pense como americano, embora dance como americano... tem uma coisa que o distingue dos demais: personalidade, personalidade...” E por aí ia a crítica.

     Não faço coro irrestrito ao que dizia o cáustico Ary, porque acho que nesses anos todos de ditadura, de luta pela democracia, de democracia efetiva, e de abertura cultural, crescemos muito.  E nossa personalidade também.  Mas vamos confessar aqui baixinho e que ninguém nos ouça:  algo daquele espírito mimético ainda nos resta. 

     E, para confirmar, digo: estou perplexa.  Pois li recentemente, em um de nossos maiores jornais, a notícia que a festa do Halloween, celebrada com esmero e empenho nos EUA no dia 31 de outubro, ganha cada vez mais espaço aqui. Será possível? Esta, sim, é tradição totalmente importada e que não tem nada a ver com nossas raízes.  E mais: não creio que seja assim tão positiva.

     O Dia das bruxas ou Halloween é um evento tradicional e cultural, que ocorre basicamente em países anglófonos, sobretudo nos Estados Unidos, Canadá, Irlanda e Grã Bretanha.  E tem como base e origem as celebrações dos antigos povos celtas. A festa tem duas origens, uma pagã e outra cristã. E em ambas encontramos o cristianismo seja como assimilador da tradição pagã, seja como criador de uma celebração posteriormente paganizada.

     A versão pagã tem origem em uma festa celta cujo objetivo era dar culto aos mortos. Aliás, aí encontramos uma das primeiríssimas manifestações religiosas da humanidade.  Procurar comunicação com os que já se foram, celebrar os mortos, ritualizar seu sepultamento é um dos primordiais testemunhos da relação do ser humano com a Transcendência e sua intuição original de que a vida não acaba no bios, mas se estende para além do tempo cronológico de duração.  Nesse espírito, celebravam os celtas sua festa.  Para eles, os mortos ficam em um lugar de felicidade perfeita, sem fome nem dor. 

      A festa cristã de todos os santos começou com a celebração dos mártires, que se multiplicaram nos primeiros séculos do cristianismo e finalmente encontraram um dia determinado para realizar sua celebração.  Seria o dia de “Todos os mártires”. Por volta do ano 600, o Papa Bonifácio IV transformou um templo romano dedicado a todos os deuses (o famoso Panteão que visitamos em Roma) em templo cristão e o dedicou a “Todos os Santos”.  Ou seja, às testemunhas de Jesus Cristo, àqueles e àquelas que nos precederam na fé. O dia 1 de novembro, que é atualmente o dia da festa, foi confirmado como tal porque era o dia da dedicação da capela de Todos os Santos na Basílica de São Pedro em Roma.

     Como toda festa grande da Igreja Universal, esta tinha sua vigília, ou seja, a preparação da festa no dia anterior, que é 31 de outubro. Encontramos aí a fonte da posterior paganização da festa, pois daí nasceu a terminologia Halloween, em inglês, que queria dizer All Hallow’s Eve (Vigília de todos os santos), sofrendo depois corruptelas que foram dar no atual Halloween.
Minha memória e cultura não chegam ao ponto de saber como por essa brecha entraram as bruxas, essas senhoras feias e narigudas, vestidas de preto e montadas em vassouras, que metem medo às criancinhas.  Vi quando pequena a genial peça de Maria Clara Machado “A bruxinha que era boa” e adorei.  É a desmistificação da crença nas bruxas que – desculpem – não existem. 

     A festa de todos os santos nos lembra para que fomos criados: para o amor e a beleza, para a partilha e a alegria.  Não para ter medo de bruxas e fantasmas, que são produto da imaginação e não têm o direito de assustar as crianças.  Sobretudo quando se trata de uma festa que nada tem a ver com nossa cultura, que gosta de celebrar santos, sobretudo Maria, a mãe de Jesus, a dos muitíssimos nomes: Aparecida, de Nazaré, dos Navegantes etc. E os amigos de Jesus: Antônio de Pádua, Francisco de Assis e Clara, Inácio e Paulina.  E os outros muitos e muitas que ainda não foram canonizados.

      Nada contra as brincadeiras feitas pelas crianças.  Mas precisa ser com bruxas?  E precisa ser calcada na imitação de uma cultura outra que não a sua?  Desejo a todos e todas uma bela celebração de todos os santos e santas, nossos irmãos que nos precederam marcados com o sinal da fé.  E aos que choram seus mortos, consolo e paz, na esperança da ressurreição.  Amém.

 Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio. A   teóloga é autora de “Ser cristão hoje" (Ave Maria).
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