Por Maria Clara Bingemer
Às vezes tenho saudades de alguns espetáculos teatrais ou
musicais que vi na minha juventude: Naquele tempo, “a escola era risonha e
franca”, e havia só amanhã e nenhum ontem. Lembro-me, quando começava a crítica
ao imperialismo americano a ganhar espaço entre a minha geração, do show de Ary
Toledo intitulado “Por que me ufano do meu país”.
Ali, entre canções e piadas de sua autoria, o artista lançava
farpas contra a mania que o povo brasileiro tem de imitar o grande irmão do
norte. E dizia, já mais para o final do show, que o brasileiro, “embora pense
como americano, embora dance como americano... tem uma coisa que o distingue
dos demais: personalidade, personalidade...” E por aí ia a crítica.
Não faço coro irrestrito ao que dizia o cáustico Ary, porque
acho que nesses anos todos de ditadura, de luta pela democracia, de democracia
efetiva, e de abertura cultural, crescemos muito. E nossa personalidade
também. Mas vamos confessar aqui baixinho e que ninguém nos ouça:
algo daquele espírito mimético ainda nos resta.
E, para confirmar, digo: estou perplexa. Pois li
recentemente, em um de nossos maiores jornais, a notícia que a festa do
Halloween, celebrada com esmero e empenho nos EUA no dia 31 de outubro, ganha
cada vez mais espaço aqui. Será possível? Esta, sim, é tradição totalmente
importada e que não tem nada a ver com nossas raízes. E mais: não creio
que seja assim tão positiva.
O Dia das bruxas ou Halloween é um evento tradicional e
cultural, que ocorre basicamente em países anglófonos, sobretudo nos Estados
Unidos, Canadá, Irlanda e Grã Bretanha. E tem como base e origem as
celebrações dos antigos povos celtas. A festa tem duas origens, uma pagã e
outra cristã. E em ambas encontramos o cristianismo seja como assimilador da
tradição pagã, seja como criador de uma celebração posteriormente paganizada.
A versão pagã tem origem em uma festa celta cujo objetivo era
dar culto aos mortos. Aliás, aí encontramos uma das primeiríssimas
manifestações religiosas da humanidade. Procurar comunicação com os que já
se foram, celebrar os mortos, ritualizar seu sepultamento é um dos primordiais
testemunhos da relação do ser humano com a Transcendência e sua intuição
original de que a vida não acaba no bios, mas se estende para além do tempo
cronológico de duração. Nesse espírito, celebravam os celtas sua
festa. Para eles, os mortos ficam em um lugar de felicidade perfeita, sem
fome nem dor.
A festa cristã de todos os santos começou com a celebração
dos mártires, que se multiplicaram nos primeiros séculos do cristianismo e
finalmente encontraram um dia determinado para realizar sua celebração.
Seria o dia de “Todos os mártires”. Por volta do ano 600, o Papa Bonifácio IV
transformou um templo romano dedicado a todos os deuses (o famoso Panteão que
visitamos em Roma) em templo cristão e o dedicou a “Todos os Santos”. Ou
seja, às testemunhas de Jesus Cristo, àqueles e àquelas que nos precederam na
fé. O dia 1 de novembro, que é atualmente o dia da festa, foi confirmado como
tal porque era o dia da dedicação da capela de Todos os Santos na Basílica de
São Pedro em Roma.
Como toda festa grande da Igreja Universal, esta tinha sua
vigília, ou seja, a preparação da festa no dia anterior, que é 31 de outubro.
Encontramos aí a fonte da posterior paganização da festa, pois daí nasceu a
terminologia Halloween, em inglês, que queria dizer All Hallow’s Eve (Vigília
de todos os santos), sofrendo depois corruptelas que foram dar no atual
Halloween.
Minha memória e cultura não chegam ao ponto de saber como por
essa brecha entraram as bruxas, essas senhoras feias e narigudas, vestidas de
preto e montadas em vassouras, que metem medo às criancinhas. Vi quando
pequena a genial peça de Maria Clara Machado “A bruxinha que era boa” e
adorei. É a desmistificação da crença nas bruxas que – desculpem – não
existem.
A festa de todos os santos nos lembra para que fomos criados:
para o amor e a beleza, para a partilha e a alegria. Não para ter medo de
bruxas e fantasmas, que são produto da imaginação e não têm o direito de
assustar as crianças. Sobretudo quando se trata de uma festa que nada tem
a ver com nossa cultura, que gosta de celebrar santos, sobretudo Maria, a mãe
de Jesus, a dos muitíssimos nomes: Aparecida, de Nazaré, dos Navegantes etc. E
os amigos de Jesus: Antônio de Pádua, Francisco de Assis e Clara, Inácio e
Paulina. E os outros muitos e muitas que ainda não foram canonizados.
Nada contra as brincadeiras feitas pelas crianças. Mas
precisa ser com bruxas? E precisa ser calcada na imitação de uma cultura
outra que não a sua? Desejo a todos e todas uma bela celebração de todos
os santos e santas, nossos irmãos que nos precederam marcados com o sinal da
fé. E aos que choram seus mortos, consolo e paz, na esperança da
ressurreição. Amém.
Maria Clara Bingemer é professora do departamento
de teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Ser cristão hoje"
(Ave Maria).
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não
é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação,
eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário