Por Juracy Andrade
O que é um santo, para o cristão? Uma
pessoa que, por sua vida e testemunho, ganhou a veneração do povo de Deus, como
ocorreu durante muitos séculos antes que os papas tomassem para si o direito de
dizer quem é santo ou não, de acordo com normas burocráticas e ideologias
políticas incapazes de apreciar o carisma da santidade. Parece que o Hermano
Francisco ainda não atentou pra isso, pois se anuncia aí a canonização às
pressas do papa Wojtyla (João Paulo 2º), grande paladino anticomunista, como o
foi também o papa Pacelli (Pio 12), que preferia claramente o nazifascismo ao
comunismo. E não há só canonizações individuais duvidosas. O padre mexicano Marcial
Maciel, que criou a Legião de Cristo, é candidato, apesar de acusado de
pedofilia, mas era muito apreciado pelo papa polonês e também pelo papa alemão.
Tem também as beatificações ou canonizações no atacado, em linha de montagem, como
ocorreu há cinco anos, quando Bento 16 beatificou, de uma lingada, 498
espanhóis (padres e leigos) fuzilados durante a Guerra Civil que devastou a
Espanha de 1936 a 1939, opondo os que defendiam o governo republicano
legitimamente eleito e os insurgentes fascistas do general Franco, que levaram
a melhor com a ajuda de Hitler. O papa alemão os considera “mártires”, mas o
que eles fizeram na verdade foi financiar e organizar o levante franquista. Do
lado dos republicanos, também houve muitos religiosos mortos por se oporem ao
franquismo, mas Ratzinger não os vê como “mártires”.
Não lembro se foi no papado de Wojtyla ou no
de Ratzinger, mas também mereceu a santificação uma quantidade grande de
católicos supostamente “martirizados” no sul do Rio Grande do Norte durante a
ocupação holandesa no Nordeste. Mas, eles foram mortos por serem católicos (no
Recife, conviveram em paz, na mesma época, calvinistas holandeses, católicos
portugueses e judeus) ou por se oporem aos holandeses? Donde se pode concluir
que é a política, mais que a religião, que orienta os burocratas do Vaticano na
escolha de “santos” impostos à força a toda a Igreja.
E tem o caso escandaloso do Padre Pio,
muito venerado na Itália e desmascarado por um livro do historiador Sergio
Luzzato (Miracoli e politica nell’Italia
del Novecento). Também mal visto pelo papa Roncalli (João 23, aquele que
convocou o Concílio dos anos 1960), o qual deixou anotações em que diz que toda
aquela conversa de pretensos estigmas que Padre Pio expunha nas mãos, como um
Cristo crucificado, não passa de “um imenso engano” e que “suas relações
condenáveis com os fiéis provocam um desastre de almas”. Para João 23, a
amizade de Padre Pio com algumas mulheres não era assim tão espiritual e
inocente. Em suas anotações sobre o caso, disse que “há cerca de 40 anos, essa
contaminação atingiu centenas de milhares de almas, imbecilizadas em proporções
inverossímeis”. Inúteis anotações. Seu substituto Paulo 6º não tomou nenhuma
providência e, finalmente, João Paulo 2º
elevou Padre Pio às honras dos altares. Cadê a infalibilidade? Foi
também o papa Wojtyla que carimbou como santo o fundador da organização secreta
Opus Dei, nascida à sombra do fascismo franquista na Espanha, o padre fascistoide
Josemaría. Escrivá.
Na limpeza que o Hermano Francisco está
fazendo nas Estribarias de Áugias reinstaladas na colina do Vaticano após o
grande trabalho de Hércules, está faltando essa de que santo é santo, política
e ideologia são outra coisa. Como ele tem se mostrado um autêntico servo dos
servos de Deus, título ostentado por tantos papas para fingir humildade e
melhor poder dominar a Igreja de Cristo, podemos aguardar isso dele. E talvez
não esteja longe o dia em que o papa será apenas o bispo de Roma (como
Francisco gosta de se apresentar) e que teremos uma Igreja sem papa (ver artigo
do teólogo Leonardo Boff neste Porta-Voz), de braços mais abertos à unidade
pregada pelo nosso mestre Jesus Cristo. Num grande concílio verdadeiramente
ecumênico se congregariam patriarcas orientais e líderes de outras igrejas
cristãs fiéis ao Evangelho em busca da unidade perdida quando a Igreja de Roma
aliou-se a um decadente Império Romano e deu no que deu.
Juracy Andrade é
jornalista com formação em filosofia e teologia
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