Por Maria Clara
Lucchetti Bingemer
O papa Francisco
ancora sua reflexão sobre a ecologia na Escritura. Diz, então, que na
Bíblia «o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo. [...] n’Ele
se conjugam o carinho e a força» (73). A narrativa da criação é central
para refletir sobre a relação entre o ser humano e as outras criaturas e sobre
como o pecado rompe o equilíbrio de toda a criação no seu conjunto: «Essas
narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações
fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e
com a terra. Segundo a Bíblia, essas três relações vitais romperam-se não só
exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado» (66).
A Palavra criadora de Javé
é elemento constitutivo da natureza na sua origem e atividade (Is 40,26;
Jó 37,6; Sl 147,15). E o cosmos é fonte de revelação de Deus. É
Deus, portanto, que faz existir. Que chama as coisas de onde não são para que
sejam. E o faz por sua palavra. Deus diz e aquilo é feito do nada.
Só Deus é Deus, como será repetido muitas e muitas vezes na Bíblia, no sentido
de que só ele é capaz de criar a partir do nada, o cosmos e tudo que existe
(cf. Is 40,25-30; Jó 38).
Porém, Deus cria colocando
ordem no criado. Sua Palavra estrutura o caos. Ao mesmo tempo, a Bíblia
nos relembra que o Criador dialoga com a sua criatura humana, o que é uma
maneira de conceder-lhe um imenso respeito. Tudo isso numa ausência
absoluta de violência, numa espécie de doçura fundante que será sustentáculo
para o Sermão da Montanha posteriormente, no NT, quando será proclamada a
perfeição do Pai (cf. Mt 5).
Neste criar no tempo, “no
princípio”, o relato bíblico não sonha em opor à eternidade de Deus a
eternidade do mundo criado. Somente Deus é princípio e começo de tudo que
existe e o mundo vem depois, ainda que não se possa estabelecer datas
cronológicas para essa posterioridade do criado.
Esse “começo”, essa
“origem sem origem” que só encontra sua fonte na inefável Paternidade divina, é
incompreensível sem um “fim”. Mas este fim, sem o qual o mundo perderia
seu dinamismo, nos é radicalmente desconhecido. Este desconhecimento nos
impede de buscá-lo entre os fenômenos deste mundo. Este fim não compete
aos cientistas. E é desconhecido do próprio Filho, que deixa este segredo
para o Pai (cf. Mt 24,36).
De certa maneira, a
encíclica Laudato Sí recolhe o esforço que vem fazendo a
teologia cristã, nos últimos tempos, para debruçar-se sobre a problemática da
Criação. Esta atitude denota uma tomada de consciência, por parte dos
cristãos, de que o que está em jogo na questão ecológica é muito mais que
um novo tema a ser trabalhado pelo pensamento teológico. E, sim, o futuro das
relações homem-natureza-Deus, ou seja, o próprio conceito de Deus que é central
ao cristianismo : Deus Pai, autor da vida, criador e salvador.
O mandato de "dominar a terra" que o livro do Gênesis (Gen 1,28) coloca
na boca do Deus Criador dirigindo-se ao homem recém moldado do barro e animado
com o hálito da vida divina passou por muitas interpretações ao longo da
tradição cristã. Uma delas - e talvez a que mais se impôs em meios
não cristãos - tendia a interpretar a consigna divina no sentido de
domínio arrogante do homem sobre a natureza, em nome do Criador. Essa tendência
continua a apresentar problemas quando se trata de confrontar, ainda hoje, a
problemática ecológica com o Cristianismo. E a acusação e a desconfiança
que permanecem em relação à interpretação do mandato genesíaco, no sentido de
uma primazia absoluta e sem limites do homem sobre a natureza, carregam consigo
sérias consequências: a suspeita de uma concepção de ser humano equivocadamente
individualista, aliada a um determinismo econômico e tecnológico onipotentes; a
visão do homem separado da natureza, vendo nesta uma inimiga a ser conquistada
e destruída impunemente em nome de um equivocado progresso; a luta do homem
pela vida transformada em ameaçador instinto de morte que pesa sobre todas as
outras formas de vida.
Teologicamente, as consequências não são menos graves. Optar por
tal tendência e assumir essa interpretação é introduzir uma cisão irreparável
na própria ideia de criação, separando o homem do cosmos. É banir da vida
cristã, de sua teologia e espiritualidade, a noção tão presente para os antigos
de ver o cosmos como uma epifania, ou seja, como a manifestação de um mistério,
que pede reverência e respeito para quem dele se aproxima.
A encíclica insistirá em que o fato de o ser humano não ser o dono
do universo «não significa igualar todos os seres vivos e tirar do ser humano
seu valor peculiar» que o caracteriza; «também não requer uma divinização da
terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua
fragilidade» (90). Nessa perspectiva, « todo o encarniçamento
contra qualquer criatura é contrário à dignidade humana» (92), mas
«não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da
natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e
preocupação pelos seres humanos» (91). Necessita-se da consciência
de uma comunhão universal: «criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços
invisíveis e formamos uma espécie de família universal, […]que nos impele a um
respeito sagrado, amoroso e humilde» (89).
Embora boa e digna de
reverência, lugar e morada da vida, a criação não é, no entanto, considerada
pelo Cristianismo uma grandeza harmônica e em si mesma reconciliada. É,
sim, grandeza dividida, conflitiva, sofrida, porque atravessada pelo mal e por
ele "submetida". Todas as criaturas participam dessa
condição e juntas gemem e esperam pela libertação (cf.Rom 8, 19-22).
O Cristianismo, por sua vez, proclama que só a passagem pelo crivo messiânico
da nova criação, inaugurada com a encarnação, vida, morte e ressurreição de
Jesus Cristo permite dizer, afinal, que o mundo é graça.
A Laudato
Si reconhece essa dimensão agônica em que vive a criação e aponta para
nossa responsabilidade em relação à terra e aos seres
criados.
A teóloga é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e
autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
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CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
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