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terça-feira, 14 de julho de 2015

A CRUZ, ENTRE A PARADA GAY E A IGREJA

Por Marcelo Barros



Na recente Parada Gay de São Paulo, no domingo 07 de junho, a atriz Viviane Bebeloni, transexual, desfilou presa a uma cruz. Ela afirmou que fazia isso como forma de protesto pelo que a população GLBT sofre de preconceitos e exclusão social. Desde que isso aconteceu, o assunto tem sido comentado nos meios de comunicação e por pessoas  de alguns segmentos religiosos. Uma nota assinada por bispos católicos de São Paulo condena o fato e protesta veementemente. Chega a pedir que a autoridade pública intervenha contra esse tipo de evento. Segundo eles, a parada gay teria desrespeitado a religião católica, ao usar o seu símbolo mais importante: a cruz. No dia seguinte, independente da nota dos bispos, circulavam pela internet ameaças de morte à atriz. Chegaram a divulgar a imagem de um travesti morto e de braços abertos como em cruz, afirmando ser Viviane e que aquilo teria sido castigo de Deus. É pena que ainda haja cristãos que possam pensar tal coisa de um Deus que é só amor e misericórdia. De fato, a tal fotografia espalhada na rede era de um travesti cearense, encontrado morto em abril de 2014. Viviane tem sido ameaçada de morte por telefone, mas está viva.

Na própria Igreja, mesmo sem vir a público, outros ministros e a maioria dos agentes das pastorais sociais pensam diferentemente. O padre Júlio Lancellotti, que trabalha com os sofredores de rua em São Paulo, declarou que ficou emocionado, ao ver pela televisão, a cena da atriz pregada na cruz. Ele viu ali o próprio Cristo crucificado. Outros lamentaram ironicamente que os bispos que assinaram a nota tenham esquecido de pedir a assinatura de políticos e pastores neopentecostais conhecidos por suas posições rancorosas e fundamentalistas, já que defendem o mesmo tipo de pensamento e postura. 

A justiça exige, ao menos, o direito de defesa a quem é acusado, antes de condená-lo sem escutar. De fato, a atriz em questão, declarou na televisão que se prendeu a uma cruz “para representar a dor e a humilhação que os homossexuais e população LGBT sofrem todos os dias” (declaração na internet e na TV Bee). Espiritualmente,  quando um fato pode ter ao menos duas interpretações (uma favorável e outra negativa), um cristão deveria sempre optar pela mais ecumênica e amorosa.

Sem dúvida, os bispos que assinaram a nota querem defender a fé cristã e os símbolos do Cristianismo. Apesar das aparências, certamente eles não se sentem donos dos símbolos sagrados da fé. Sabem que a Cruz é símbolo de todo o Cristianismo. Em São Paulo, ortodoxos e cristãos de Igrejas evangélicas históricas, todos usam a cruz. No entanto, sabem que um símbolo da fé não é grife ou marca comercial patenteada por alguma empresa. Se fosse assim, em breve, qualquer pessoa para usar uma cruz no pescoço teria de pedir permissão ao bispo.  A reação dos bispos é compreensível quando se vê a história de séculos da Igreja Católica. No entanto, são pastores esclarecidos. Mesmo se parece, devemos crer que eles não fizeram isso por preconceito contra transexuais e nem por homofobia. Ainda há muitas pessoas de fé e mesmo bispos que, infelizmente, separam o sagrado do profano. Assim, se escandalizam pelo fato de uma atriz transexual ter se identificado com Jesus na cruz para expressar a opressão que sofre todos os dias.

Nos anos 80, a Pastoral da Terra divulgou uma cartilha na qual a capa estampava um lavrador crucificado por uma cruz formada por uma enxada e uma foice. Alguns bispos e padres acusaram a CPT de fazer um uso político e redutivo da cruz. No entanto, esses mesmos não sentiam nenhum desrespeito à cruz quando os generais da ditadura militar usavam a cruz e a Bíblia em suas cerimônias de posse. Até pouco tempo, salas de tribunal e o Congresso Nacional tinham uma grande cruz na parede. De alguns desses espaços, a cruz foi retirada por que o Brasil é um país leigo e não porque algum bispo mais preocupado com o respeito à religião tenha protestado. Será que Jesus não se sente mais ofendido com certos julgamentos que temos presenciado no Judiciário brasileiro ou com um Congresso que legisla tantas vezes contra o povo pobre do que com um pobre transexual que tenta chamar atenção para a sua dor? E a cruz continua pregada nas paredes de bancos que ganham 400% de lucro ao ano e exploram de várias formas os pobres. Quando algum desses bispos tão fervorosos vão protestar contra isso?


Esse tipo de conflito nos faz compreender melhor porque Jesus foi condenado pelo pretório (poder político) e pelo sinédrio (poder religioso do seu tempo). Conforme os evangelhos, ele foi acusado de “blasfemar contra o templo”. O templo era o símbolo mais importante do Judaísmo da época e ele o desrespeitou. Ele afirmou: “Podem destruir esse templo e eu o reedificarei em três dias” O evangelho diz que “ele falava, não da construção de pedra, mas do templo do seu corpo” (João 2, 13 – 21). Sem dúvida, esses bispos são discípulos de Jesus e concordam com ele que, de fato, o transexual em questão, é como pessoa, um símbolo muito mais sagrado para a Igreja do que a cruz. 

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

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